Pobrezinha de mim, que cheguei a imaginar, ouvindo-te, que o Senhor me havia escolhido para ser a sua esposa naquela madrugada, e afinal foi tudo obra de um acaso, tanto poderá ser que sim como poderá ser que não, digo-te até que melhor seria não teres descido aqui na Nazaré para vires deixar-me nesta dúvida, aliás, se queres que te fale com franqueza, um filho do Senhor, mesmo tendo-me a mim como mãe, davamos por ele logo ao nascer, e quando crescesse teria, do mesmo Senhor, o porte, a figura e a palavra, ora, ainda que se diga que o amor de mãe é cego, o meu filho Jesus não satisfaz as condições, Maria, o teu primeiro grande engano é julgares que eu vim cá apenas para te falar desse antigo episódio da vida sexual do Senhor, o teu segundo grande engano é pensares que a beleza e a facúndia dos homens existem à imagem e semelhança do Senhor, quando o sistema do Senhor, digo-to eu que sou da casa, é ele ser sempre o contrário de como os homens o imaginam, e, aqui muito em confidência, eu até acho que o Senhor não saberia viver doutra maneira, a palavra que mais vezes lhe sai da boca não é o sim, mas o não, Sempre ouvi eu dizer que o Diabo é que é o espírito que nega, Não, minha filha, o Diabo é o espírito que se nega, se no teu coração não deres pela diferença, nunca saberás a quem pertences, Pertenço ao Senhor, Pois é, dizes que pertences ao Senhor e caíste no terceiro e maior dos enganos, que foi o de não teres acreditado no teu filho, Em Jesus, Sim, em Jesus, nenhum dos outros viu Deus, ou alguma vez o vera, Diz-me, anjo do Senhor, é mesmo verdade que meu filho Jesus viu Deus, Sim, e, como uma criança que encontrou o seu primeiro ninho, veio a correr mostrar-to, e tu, céptica, e tu, desconfiada, disseste que não podia ser verdade, que se ninho havia estava vazio, que se ovos tinha, eram goros, é que se os não tinha, comera-os a serpente, Perdoa-me, meu anjo, por ter duvidado, Agora não sei se estás a falar comigo, ou com o teu filho, Com ele, contigo, com ambos, que posso eu fazer para emendar o mal feito, Que é que te aconselharia o teu coração de mãe, Que fosse procurá-lo, dizer-lhe que creio nele, pedir que me perdoe e volte para casa, aonde o Senhor o virá chamar, em chegando a hora, Francamente, não sei se vais a tempo, não há nada mais sensível do que um adolescente, arriscas-te a ouvir más palavras e a levar com a porta na cara (…)”

José Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Levei vinte e três anos para concluir esse livro (conto essa história mais adiante).

Aproveito para informar que não tenho religião e que nem problemas com possíveis heresias, ainda menos com as bem escritas como essa.

Imagino que estejam familiarizados com a versão bíblica da história de Jesus Cristo. Então o que é mundialmente conhecido não será tratado como spoiler. Por exemplo, Jesus morre crucificado no final, na última página.

O que seria spoiler numa história como essa seriam as lacunas que ela preenche e as alterações que o autor fez em relação do texto bíblico. José Saramago partiu das escrituras, inclusive dos evangelhos apócrifos e do velho testamento, para criar essa história perturbadora, filosófica, de um Jesus que teve uma vida mais parecida um pouco com a nossa.

Não quero dizer que o personagem Jesus dessa história foi pintado como uma pessoa ordinária. Longe disso. O mágico, o misterioso e o inexplicável pelas leis naturais, da física e da química estão lá. Vai aparecer Deus, o Diabo, vai ter milagre e tudo mais de grandioso que se espera em uma história sobre Jesus. É tipo o bordão das peças comerciais do cigarro Free nos anos 80: diferente, mas com alguma coisa em comum.

Essa resenha vai ter spoilers. Aviso quando for a hora.

A principal inovação em relação aos testemunhos dos evangelistas bíblicos é o ponto de vista. Apesar de se chamar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não é Jesus Cristo quem conta, mas um narrador em terceira pessoa com acesso aos pensamentos de Jesus que é o personagem principal. Esse narrador é tão onisciente que até o que acontecia nos nossos tempos ele sabia.

O próprio José Saramago em uma das três entrevistas que deu ao programa brasileiro Roda Viva, disse ter recebido inúmera cartas de católicos portugueses acusando-o de heresia e às vezes praguejando contra a vida além túmulo que ele levaria. Ele deixou bem claro na entrevista que nem outras religiões cristãs e nem judeus o acusaram de nada. Sim, eu sei que os judeus não são cristãos, mas é que eles também não são particularmente descritos no livro como um povo bom e racional.

É isso: um escritor ateu contando a história mais famosa do planeta terra com o dom que lhe é notório de por as coisas em palavras incríveis.

É maravilhoso esse livro, está no meu ranque dos melhores definitivamente.

Uma coisa que eu queria ter sabido antes de ler é que a gravura, cuja descrição abre o livro é a Crucificação, do artista alemão Albrecht Dürer, que data de 1498 e faz parte de um grupo de doze gravuras, compondo a coleção A Paixão de Cristo. A Crucificação é a imagem principal deste texto.

José Saramago – Filmes, Biografia e Listas na MUBI

José Saramago

O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi indicado pela amiga Carol Gonçalves, maravilhosa, grande leitora. Isso foi a há aproximadamente 26 anos.

Lembro que ela ficou impressionada com a leitura, nós tínhamos uns 16 anos de idade na época e eu estava lendo outras coisas, não corri pra buscar na biblioteca, mas fiquei com aquela sinopse na cabeça.

Em 1999, que peguei pela primeira vez esse Saramago para ler. Simplesmente não consegui passar da descrição do quadro. Devolvi. Quando acabou o primeiro período do curso de História, peguei ele de novo para levar para casa nas férias, empaquei na parte do anjo da anunciação e parei. Depois peguei de novo mais ou menos um ano depois, desse tempo me lembro bem, precisei parar tudo para estudar para as disciplinas da universidade deixei, o livro em stand by, acabei me esquecendo dele e tive que pagar multa na biblioteca porque, além de não ler, também não devolvi nem renovei a tempo.

Seguiu o baile e esse livro ficou me assombrando. Eu pensava “Talvez Saramago não seja para mim.” Não no sentido da intransponibilidade da escrita, nunca acreditei nisso, porém sei não há autores capazes de agradar todo mundo e podia ser que fosse esse o caso.

Em 2012, voltando de uma viagem a Recife, o voo atrasou muito, o livro que estava lendo acabou e na La Selva tinha O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Comprei. A partir daí ele era meu. Avancei a leitura até a parte em que José arruma o emprego em Jerusalém (sim, vai ter isso no enredo). O voo pousou, cheguei em casa e coloquei o livro na minha estante e lá ficou até três semanas atrás.

De 2012 para cá, li, pelo menos, quatro Saramagos e amei todos. Vencido o bloqueio e tendo agora maior musculatura intelectual, chamei de novo O Evangelho para o ringue com um único pensamento: essa obra não iria me vencer. Sangue nos olhos!

Foi fácil? Claro que não. É um Saramago. Exige tutano. Aquele nível de exigência maroto que o transformou em um dos meus livros preferidos da vida. Com certeza o melhor Saramago lido por mim até aqui.

Fico na verdade grata à Aline do passado por ter guardado essa pérola para um momento de menos imaturidade.

 

Vamos começar a debater contando partes que podem estragar a experiência de quem prefere saber o menos possível antes de ler um livro. Sou dessas, por isso deixo bem marcada a parte com spoilers.

Em primeiro lugar, no livro, existe na crença dos judeus da palestina o pecado original que tornava as mulheres que se tornavam mães automaticamente culpadas, tendo inclusive que oferecer animais em sacrifício a Deus na Sinagoga para se purificar depois de dar luz a seus rebentos. Foi assim que Jesus foi concebido, pelo método usual. José morreu acreditando que Jesus era filho dele e nenhum anjo apareceu para avisar nada para aquele carpinteiro.

Jesus era um menino normal para a idade dele até a morte de José, aí ele passa a ter pesadelos e a coisa vai ficando esquisita.

Depois de saber porquê os pesadelos que acometiam o pai passaram para ele, Jesus abandona o lar em Nazaré e vai em busca de respostas sobre seu nascimento em Belém. Onde encontra “Pastor” (ou é encontrado por ele) e passa a ser auxiliar na lida com o rebanho gigantesco de cabras e ovelhas, que eles não vendiam e não comiam só pastoreavam.

Pastor é o melhor personagem. Prestem muita atenção nele.

Aliás, prestem atenção nele, no anjo, na tigela de barro. Essa tigela aparece algumas vezes e é um detalhe muito interessante da história.

Maria de Magdala, mais conhecida por nós como Maria Madalena, é outra personagem sensacional. Ela se parece muito em entendimento, profissão e papel que representa na vida de Jesus com a personagem Kamala do livro Sidarta de Hermann Hesse. É prostituta, forte de caráter e convicções, vai ensinar muito a Jesus.

Maria de Magdala ao contrário de Kamala deixará a prostituição depois de se apaixonar por Jesus. Eles terão uma história de amor bem bacana.

Outras obras de arte literária e audiovisuais retrataram a vida de Jesus de formas não convencionais. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e nas outras duas que escolhi para comentar Jesus é essencialmente bom. Realmente ele quer o bem dos outros, dá bons conselhos daqueles que se seguidos por todos tornariam o mundo um lugar muito melhor e é um enviado de Deus.

Em O Mestre e Margarida , de Mikhail Bulgákov, a obra dentro da obra e também a intervenção do próprio capiroto quando se intromete na conversa entre dois russos soviéticos ateus, delineia um Jesus que existiu, foi condenado pelos homens injustamente, vive de olho e no intento de ajudar a humanidade e tem boas relações com diabo, que, nesse caso, atende pelo nome de Woland e passa uma temporada em Moscou.

É outro livro imperdível.

O diabo do escritor russo apenas revela o mal que já existe nas pessoas, nada de punição para quem não fez por merecer e ainda dá benesses àqueles que se propõe a ajudá-lo, como foi o caso da personagem Margarida.

É um ser extravagante por certo e pode ser extremamente cruel, afinal é o diabo, mas… incoerente ele não é e nem o mal purinho e simples.

O diabo de Bulgákov, assim como o de Saramago, é capaz de enganar, assumir outras personalidades, de fazer o mal a outrem, mas também de fazer o bem.

Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo pode-se dizer que o diabo tinha leis mais razoáveis que as de Deus, ele não era tanto um malvado, era mais rebelde em relação às determinações de Deus.

O personagem Deus é aquele do velho testamento: vaidoso, egoísta, autoritário, punidor dos mínimos deslizes. Muitos desses deslizes o diabo nem considera erros dos humanos. Ou seja, ele é mais tolerante.

No tempo que Jesus passa pastoreando no deserto, o diabo vai inclusive tentar ensiná-lo a ser desobediente a Deus, de um jeito que essa desobediência, a meu ver, nada mais era do que não obedecer às regras cruéis e sem sentido que eram impostas ao povo judeu, como a de queimar carneiros e ovelhas entregando esses animais aos sacerdotes nos templos. A páscoa é retratada por Saramago como uma carnificina de rebanhos inteiros, que ficavam para os sacerdotes e anciãos se banquetearem.

É fato que o diabo, Pastor, ofereceu a Jesus que resolvesse suas questões de desejo sexual com as cabras, porém eram proibidos de sacrificá-las para comer ou transformá-las em oferendas.

Na prática o diabo estava tentando fazer com que Jesus tivesse a oportunidade de não ser crucificado e poder fazer suas próprias escolhas. Como sabemos, isso não rolou.

Gente, a cena da conversa entre os três, Jesus, Deus e o diabo, é uma coisa inesquecível! Perfeição!

Martin Scorcese, em 1988, atuou e dirigiu o filme A Última Tentação de Cristo. Adoro esse filme. Jesus é interpretado por Willem Dafoe e David Bowie fez Pôncio Pilatos. O próprio Scorcese interpretou o profeta Isaias.

Um salve para o meu ex-professor de física que apresentou esse filme para nós, porque ele entendia que filosofia e física são indissociáveis e propunha às vezes algumas conversas assim. Salve, Doro!

A Última Tentação de Cristo é baseado no livro homônimo de Niko Kazantzákis, escrito em 1952 e que eu não li.

O Jesus do filme é um homem atormentado, inseguro, que faz o que lhe é exigido por Deus, mas tem sentimentos mais humanos, assim como o Jesus de Saramago. Os dois “Jesuses” terão dúvidas, tentarão em vão escapar a seus destinos, serão usados por Deus para dar vazão aos planos divinos e se tornarão mártires do cristianismo.

Outra coisa a se levar em consideração nas tramas do filme e do livro que estamos discutindo é o papel de Judas. Em ambos os casos Judas Iscariote era fidelíssimo a Jesus e não o traiu. Mesmo que, na visão do roteirista de A Última Tentação de Cristo, Judas (Harvey Keitel) tenha tido dificuldades em engolir as coisas que Jesus, seu melhor amigo, o contava, ele estava sempre lá para ele.

Deixo-lhes com a música Judas, de Raul Seixas e não digo mais nada além de recomendar tudo o que citei nesse artigo.

SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras: São Paulo, 2005.

HESSE, Hermann. Sidarta. Tradução: CARO, Herbert. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2016.

BULGÁKOV,  Mikhail. O Mestre e Margarida. Tradução: PERPÉTUO, Irineu Franco. Rio de Janeiro: Editora 34, 2021.

SCORCESE, Martin. A Última Tentação de Cristo. EUA & Canadá: Universal Studios, 1988.

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