O alegre canto da perdiz – DublinenseAs mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de passageiros, de vagabundos. Tudo começou no princípio. Vieram os árabes. Os negros converteram-se. E começaram a chamar se Sofia: Zainabo, Zulta, Amade, Mussá. E tornaram- se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se: Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Batizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivana, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Soila, Karen, Erica, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos.

Os aventureiros entrarão e sairão como quem entra no ar e não se molha. Línguas nossas? Aprenderão apenas sons. Nomes? Invocarão alguns. Crenças? Profanarão todas as nossas. Nós aprendemos tudo: árabe, português, francês, inglês, norueguês, russo, alemão e tantas outras desconhecidas. E continuaremos escravos. Faremos guerras uns contra os outros. Matar-nos-emos. Elegeremos presidentes. Golpearemos presidentes. Mataremos presidentes. Ergueremos bandeiras. Mudaremos bandeiras, hinos e símbolos. E continuaremos escravos.

Paulina Chiziane. O Alegre Canto da Perdiz.

 

Paulina Chiziane é da região da Zambézia, em Moçambique, país africano colonizado por portugueses e, portanto, lusófono. O que isso quer dizer para nós brasileiros além do fato de que o livro foi escrito em português? Quer dizer que reconheceremos traços da dominação ibérica nessas belamente escritas e sofridas páginas.

GRIFO NOSSO: “Eu, mulher: por uma nova visão do mundo”, de Paulina Chiziane | by Isadora Attab | grifapodcast | Medium

Paulina Chiziane

Essa história se passa no Moçambique colonizado, que viu seus filhos nativos vivendo como cidadãos de segunda classe, passando a ser humilhados pelos brancos vindos da Europa. Aquela terra, que presenciou o sumiço de pessoas sequestradas para serem escravizadas em outras partes do mundo, que teve que se adaptar como pôde nos papeis que lhes restaram ou que lhes foram impostos, sendo levados, por vezes, a serem cruéis com os seus iguais.

Os cortes de etnia, tom da cor da pele e gênero são primordiais nesse contexto.

É uma história da colonização? É. Essa é a trama principal? Não. É o pano de fundo, o contexto.

O leitor chega à da colonização moçambicana, por meio das mulheres de uma mesma linhagem: Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta.

Também tem homens importantes para a compreensão do contexto e para o enredo, José dos Montes, por exemplo, chega a estar em pé de igualdade de importância com as mulheres principais.

O casalzinho José dos Montes + Delfina, para mim, tem um quê de Macbeth e Lady Macbeth. Depois me contem se concordam.

Vamos começar estabelecendo que os moçambicanos daquele tempo preferiam ter filhas do que ter filhos, porque ter filhos representava o risco de eles serem traficados e nunca mais serem vistos por aquelas paragens. Por outro lado, tendo filhas, estas ficariam com a família que poderia mais tarde obter ganhos com a menina, fosse vendendo-a para algum homem mais velho e nojento que pagaria pela virgindade ou explorando-a como prostituta para por dinheiro em casa. Se essa menina se casasse com alguém de posses, principalmente um branco ou “mulato”*, a sorte grande estava tirada e os problemas econômicos da família resolvidos.

Serafina era casada com um homem preto e eles tiveram uma filha, chamada Delfina, também negra retinta e de beleza inigualável. A própria Delfina, assim que aconteceu o primeiro ciclo menstrual, teve sua virgindade trocada pelo pai. É uma cena de partir em mil pedaços o coração.

“Ah esse pai é horrível!”

Bacana de tudo ele não é, entretanto não seja tão rápido no julgamento. Não há anjos ou demônios nessa obra. Bem… talvez o curandeiro/feiticeiro amigo de Delfina seja só mau e Maria das Dores seja só boa, mas os demais personagens são bem duais, capazes das coisas mais horríveis e de acertos e bons sentimentos. Ganância e arrependimento são duas palavras boas para definir muitas situações nesse livro.

Depois de ter sua virgindade vendida pelo pai, Delfina passa a ser explorada sexualmente a pela mãe e a família melhora suas condições financeiras vivendo do dinheiro que a filha fazia no cais.

As opções da família de Delfina eram: plantar e produzir alimentos e bens de consumo para trocar por outros bens da mesma categoria e garantir a sobrevivência e mais nada ou viver da prostituição da filha que rendia dinheiro e outros bens mais valiosos.

Um dia, Delfina conheceu José dos Montes. Eles se casaram e ela deixou de ser prostituta. A renda da família era insuficiente para as exigências de Delfina, que tinha mais dinheiro na época do cais. José dos Montes então aceita ser um assimilado.

Os assimilados eram moçambicanos que se alistavam para lutar pelas causas dos portugueses. José dos Montes recebeu a atribuição de ser um Sipaio, cuja função era perseguir, delatar e matar seus compatriotas para que os colonizadores obtivessem sucesso em seus planos. O pai de Delfina sempre se negou a prestar esse papel por considerar que os assimilados eram traidores. Só digo que daí foi só ladeira a baixo. Desgraceira atrás de desgraceira.

Falei ali acima de uma tal Maria Jacinta. Maria Jacinta não é uma personagem tão central quanto Delfina, Maria das Dores e José dos Montes, entretanto ela exemplifica bem uma das consequências da crueldade do colonialismo que hoje é conhecido nos estudos de racialidade como colorismo.

Maria Jacinta é filha de Delfina com o português José Soares. Ela tem a tez bem mais clara que a irmã mais velha. As duas filhas de Delfina terão vidas bastante diferenciadas justamente por conta do tom da pele das duas. Acho que nem preciso explicar qual delas terá melhores chances e tranquilidade.

Maria Jacinta me lembrou bastante o filme Passing (2021), disponível da Netflix com o nome de Identidade.

Duas mulheres negras de pele mais clara vão tentar se passar por brancas na cidade de Nova York da década de 1920.

A primeira cena do filme é uma delas entrando em um refinado café frequentado por pessoas brancas. Ela está bem vestida com um chapéu delicado de abas largas, é visível o desconforto da mulher na porta do tal restaurante. Ela entra, faz seu pedido e tenta não fazer contato visual com o garçom ou com as outras pessoas. Eis que uma outra freguesa do luxuoso lugar se aproxima e pergunta se não a conhece. Essa outra também muito bem vestida, tem a pele ainda mais clara e cabelos loiros.

Imediatamente elas se reconhecem, eram as velhas amigas Irene (Tessa Thompson) e Clare (Ruth Negga).

Irene está se fazendo passar por branca para passear por Manhattan, entrar e tomar um lanche naquele restaurante e Clare está na mesma condição só que ela foi mais longe que a amiga. Clare se casou com um homem rico, branco e racista que acredita que ela seja realmente branca. Clare não toma sol, usa os cabelos pintados de loiro e fez isso porque queria ter uma vida tão boa quanto às dos brancos de Manhattan.

Irene tem uma vida confortável, pode se dizer até luxuosa, no bairro nova-iorquino do Harlem, é casada com um médico negro de pele mais escura que a dela e tem uma família feliz, sem segredos.

No Brasil o título foi traduzido para Identidade, o que não é um mau título. Compreendo que é complicado traduzir o termo “passing” e manter um título curto com mesmo significado, mas devo dizer que o nome original é muito bom para aquela história.

O termo passing é usado para se referir a pessoas pretas de tez clara que se passam por brancas.

Passing é a adaptação para o cinema de um livro do mesmo nome da escritora Nella Larsen. No Brasil, o livro também se chama Identidade e sai pela Harper Collins. Ainda não li.

O primeiro capítulo de O Alegre Canto da Perdiz, traz a personagem Maria das Dores, adulta nadando nua em um rio, no trecho destinado aos Homens. Maria das Dores que àquela altura da vida vivia como uma andarilha, causa espanto e confusão entre as mulheres da localidade, pela nudez, pela desenvoltura e naturalidade com que está agindo, mas sobretudo por sua beleza herdada da mãe.

É uma cena bem peculiar. As pessoas ficam confusas tentando entender se era apenas uma mulher ou uma entidade mítica como uma sereia. Portanto, antes de passar à parte com spoilers, deixo-lhes com a música A Novidade, de Gilberto Gil e Herbert Vianna.

Paulina Chiziane foi a vencedora do Prêmio Camões de 2021. Entregue dias depois do Camões do nosso Chico Buarque. O discurso dela ao receber o prêmio é sobre a descolonização da língua portuguesa e é sensacional.

 

 

O final de O Alegre Canto da Perdiz é polêmico. Tem gente que gosta e tem outros que não curtem. Eu sou da segunda turma. Não me desceu.

É um final muito corrido e feliz do tipo: magicamente resolvemos nossas diferenças e todo o mal que fizemos uns aos outros.

A pobre Maria das Dores, que é a personagem mais maltratada dessa obra em que graves violações aos direitos humanos acontecem o tempo todo merecia um final melhor.

Não sou contra finais felizes. O desfecho de A Cor Púrpura, de Alice Walker, me serviu muito bem, por exemplo. Serviu porque foi bem trabalhado, o arco de redenção da personagem principal foi bem construído.

Ouso dizer que Chiziane poderia ter gasto mais umas trinta páginas para tornar esse final mais verossímil e tudo estaria bem. Até porque a justificativa da autora para o final feliz é compreensível e até louvável.

Segundo a Paulina Chiziane, o final de O Alegre Canto da Perdiz é uma proposta de rearranjo para resolver os problemas moçambicanos, que é um país marcado por guerras e colonialismo muito longo. Moçambique só foi se tornar independente em 1947. Para Paulina o final é uma proposta de Moçambique daqui para a frente, o que seria deixar o passado para trás e viverem sem mágoas, posto que a coisa é tão complicada que se os moçambicanos se concentrassem em fazer pagar a cada um pelos erros que cometeram, aquele país nunca terá uma chance real de paz.

Veja que a explicação é linda e convincente. Ao contrário do final de Tudo é Rio, da Carla Madeira, que para mim não tem justificativa possível, é só ruim.

Ainda assim, recomendo muito a leitura de O Alegre Canto da Perdiz, porque tudo até o quase final é muito esclarecedor e é daquelas leituras que realmente nos põem em outras peles, transformando alguma coisa dentro da gente para melhor.

Quero dizer que conheço pessoas bastante inteligentes e que gostam muito de literatura que gostaram do final de O Alegre Canto da Perdiz. Vai que você gosta também?

 

 

*A autora usa o termo mulato diversas vezes em seu livro para se referir aos negros de pele mais clara.

 

CHIZIANE, Paulina. O Alegre Canto da Perdiz. Porto Alegre: Dublinense, 2018.

HALL, Rebeca. Identidade. Título original: Passing. EUA & UK: Netflix, 2021.

https://amzn.to/3OpvvD3