Junky | Amazon.com.brO vicio de comer é o pior vicio que existe. E mais difícil de largar que o vício da agulha, e os sintomas de abstinência são muito piores. Na verdade, não é raro um junky com vício de comida morrer quando cortam sua cota de peru defumado na cadeia. Um junky com vício de comida sofre de cólicas de estômago terríveis quando não consome o alimento. E os sintomas duram até três semanas, enquanto os do vício de agulha levam uns oito dias.

Quando você larga a seringa, passa muito mal até o terceiro dia, e aí você pensa: seria impossível me sentir pior que isso. Mas o quarto dia é pior. Depois disso, o alívio é absurdo. E no sexto dia
fica apenas uma sombra pálida do mal-estar do junk. 

Mas com o vício de comer você pode esperar pelo menos dez dias de um sofrimento terrível. Então quando você está se curando com lúpulo, é preciso ter muito cuidado pra não adquirir o vício de comer. Se você não consegue seguir um cronograma, é melhor voltar para a agulha.”

 William S. Burroughs. Junky.

 

 

Eu e, ao que parece, a maior parte da população consumidora de obras de ficção no mundo adoramos histórias de pessoas com dependência química em drogas pesadas. vide o sucesso de histórias como: Trainspotting, Christiane F., Breaking Bad, Réquiem para um sonho, Querido Menino.

Junky (1953), só pelo nome, já diz do que se trata. Junky ou junkie é a pessoa viciada em drogas altamente viciantes e o termo é mais usado para se referir aos usuários de heroína. Se acaso o título não for suficiente para entender o conteúdo, basta pousar os olhos na capa do livro que sai pela Companhia das Letras.

William S Burroughs: 'The godfather of punk' remembered - BBC Culture

Burroughs e Warhol

William Seward Burroughs II é considerado o padrinho da escrita Beatnik. Era amigo de Jack Kerouac e de Allen Ginsberg, que aliás prefacia esta edição do livro Junky. Nasceu em 1914 e viveu por 83 anos, tendo depois sido da turma de Andy Warhol e frequentado o lendário Studio 54 em Nova York. Era uma personalidade que encantou e se relacionou com muitas correntes artísticas de cunho contestador do século XX.

Esse senhor usava qualquer tipo de droga que lhe passasse pela frente, teve boa formação acadêmica (Artes em Harvard) , residiu em diversos lugares e visitou tantos outros, foi casado pelo menos duas vezes com mulheres e era homossexual assumido.

The beat goes on: 100 years of William S Burroughs

Burroughs e Kerouac

Depois das drogas a outra paixão de Bill Burroughs eram as armas. A vida desse homem foi marcada por uma tragédia, posto que num dia de farra pesada, ele e sua esposa, Joan Vollmer, da qual ele realmente gostava, resolveram brincar de tiro ao alvo. Na ocasião, Burroughs deveria acertar um tiro em um copo posicionado na cabeça da esposa. Ele acertou o tirou na testa dela matando-a na hora.

Tanto Junky quanto seu livro mais conhecido, Almoço Nu (1959), são autobiográficos e foram escritos depois do falecimento de Joan Vollmer (1951).On Bitch Magazine's Response to Joan's Death

O diferencial desse livro em relação às outras histórias de junkies é que não há arco de redenção o vício é uma constante. Ele via sua dependência química não como uma condição, nada glamorizado ou recomendado. É difícil explicar, portanto tentemos com as palavras dele: “Aprendi a equação do junk. Droga pesada não é um meio de aumentar o prazer de viver. Junk não é um barato. é um meio de vida.”

Fiquei muito interessada em ler uma biografia sobre esse senhor, uma visão de um terceiro sobre essa vida tão intensa e diferente da minha. O documentário William Burroughs: A Man Within, se aproxima do que minha curiosidade quer como biografia.

Esse homem foi um usuário consistente, pode-se dizer até um profundo conhecedor de entorpecentes, um sommelier.

Ele sabia as diferenças entre a heroína mexicana, a do Texas, a de Nova Orleans e a de Nova York. Começou seu vício com morfina e outros opiáceos conseguidos com receitas obtidas de médicos, que aliás sabiam muito bem que estavam sustentando o vício de seus “pacientes”. Depois experimentou heroína que vinha de fora dos Estados Unidos e para se manter estável em tempos de escassez alternava a heroína com os remédios comprados em farmácia com as receitas dos médicos picaretas que, pelo entendido, tinham quase o mesmo efeito e eram igualmente traficáveis na comunidade junkie.

A escrita é muito fluida e dinâmica. acontecem coisas o tempo todo, ele dá a visão de como é o universo junky dos Estados Unidos em três diferentes regiões e na Cidade do México nas décadas de 1940 e 50. Isso é realmente interessante de ler. Tudo é muito interessante de ler e por muitas vezes é penoso também.

Não é um livro de que se possa falar muito sem dar spoilers.

Então, a partir daqui, vai ser com detalhes que podem estragar a experiência de leitura de quem curte a surpresa.

Bill, que é como ele é chamado no livro, tem teorias muito pouco ortodoxas sobre vício e sobre os efeitos de diversas substâncias químicas.

Por exemplo, ele garante que para ser um junky o usuário demora pelo menos quatro meses usando todos os dias, algumas pessoas levariam anos, até o dia em que acorda com fissura e aí pode ser considerado um viciado. Também seria fácil “desviciar”. Ele próprio, só em Junky, passou por várias desintoxicações e um belo dia recaiu. Só lá para os finais do livro ele chega a dizer que preferiria não ser junkie e que parece não ter mais controle sobre sua vontade.

É muito interessante ver como funciona o raciocínio do junkie, as desculpas que ele dá para justificar os erros e até crimes que comete e como põe a culpa no sistema, nos médicos, nos traficantes, nos outros junkies…. em todo mundo, menos em si próprio.

Christiane F., outra junkie famosa, talvez até mais famosa que William Burroughs, no seu segundo livro, Eu, Christiane F., A vida apesar de tudo, caiu na conversa de um viciado barra pesada, pegou o filho e mudou com esse cara para Amsterdã onde expôs o filho a uma vida bem insalubre e pôs a culpa em tudo menos nela por suas decisões equivocadas. é a mesma linha de Burroughs nesse livro. Pelo que vi sobre ele, biograficamente falando, parece que as opiniões mudaram ao longo da vida. Entretanto, essas reflexões não estão presentes em Junky. Era outro momento. Esse livro foi publicado quando ele tinha aproximadamente quatro anos de contato com os opiáceos, em uma vida junkie que durou 50 anos dos 83 que William viveu.

Burroughs chega a dizer que cocaína não vicia e que, portanto, a vida para os heroineiros é mais complexa, num tom que dá a ele e sua categoria de adição um certo ar de superioridade em relação aos usuários de outras drogas. Os maconheiros então… estão lá embaixo na cadeia alimentar. Depois em um malabarismo do pensamento ele fala do vício em comida como se fosse pior que o em heroína.

Entendem a dificuldade em enxergar como de fato são as coisas?

É um livro muito bom. Li em duas noites. Confesso que é a primeira vez que leio um livro beatnik e acho bom. Desculpem-me os fãs de Kerouac, mas é isso. No caso de Kerouac pode ser que eu tenha começado com o livro errado. Não li On The Road, tentei ler Tristessa a alguns anos atrás e achei chatérrimo, abandonei o livro.

Pode ser que dê outra chance para outro escritor beat depois da experiência com Junky. Certamente, Almoço Nu entrou na lista de desejos. E quem sabe On The Road aparece por aqui…?

No Youtube é possível encontrar na íntegra o documentário William S. Burroughs: A Man Within.

BURROUGHS, Wiliiam S. Junky. Tradução: MORAES, Reinaldo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FELSCHERINOW, Christiane & VUKOVIK, Sonja. Eu Christiane F.: A vida apesar de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

LEYSER, Yoni. William Burroughs: A Man Within. USA: Oscilloscope Laboratories, 2010.

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