O deserto dos tártaros | Amazon.com.br“Claro, com os outros, com os colegas oficiais, devia comportar-se como um homem, devia rir com eles e contar histórias ousadas sobre militares e mulheres. A quem mais, senão a sua mãe, podia dizer a verdade? E a verdade de Drogo naquela noite não era uma verdade de soldado valente, talvez não fosse digna do austero forte, os companheiros teriam rido dela. A verdade era o cansaço da viagem, a opressão dos muros sombrios, o sentir-se completamente só.

‘Cheguei esgotado após dois dias de viagem’, era o que escreveria, ‘e ao chegar soube que, se quisesse, poderia voltar à cidade. O forte é triste, não há povoados por perto, não há nenhuma diversão e nenhuma alegria.’ Era o que iria escrever.

Mas Drogo lembrou-se da mãe, àquela hora ela estaria pensando justamente nele, consolando-se com a ideia de que o filho passava seu tempo alegremente com amigos simpáticos, quem sabe em agradável companhia. Ela certamente acreditava que ele estivesse contente e sereno.

‘Querida mamãe’, sua mão escreveu. ‘Cheguei anteontem após ótima viagem. O forte é grandioso…’ Ah, fazê-la entender a esqualidez daqueles muros, aquele vago ar de punição e exílio, aqueles homens desconhecidos e absurdos… Ao contrário: ‘Os oficiais daqui me acolheram afetuosamente’, escrevia. ‘Também o ajudante-mor de primeira foi muito gentil e deixou-me completamente livre para voltar à cidade se quisesse. Contudo eu…’ “

Dino Buzzati. O Deserto dos Tártaros.

 

Dino Buzzati (1940) fez com que eu refletisse muito, mas muito mesmo, sobre minha própria vida com esse livrinho curto e poderoso.

Duzentas páginas. Era para ser uma sentada, mas não foi assim. Muitas pausas para digestão e para aplicação na própria realidade.

Dino Buzzati

Acredito que a história do Tenente Giovanni Drogo, permita muitas aplicabilidades metafóricas para vidas completamente distintas da minha. Meu envolvimento foi tão  intenso e o livro bateu tão fundo que só consigo pensar na interpretação que me serviu de carapuça.

Como pode uma história de um jovem oficial do exército, sendo designado para um forte de guarda fronteiriça e passando sua vida nesse trabalho, se parecer com a de uma mulher que trabalha com meio ambiente, mora na cidade grande e se mete em assuntos literários?

Vai ser difícil explicar, mas é o que me impele a escrever esse texto.

Giovanni Drogo, recém formado pela academia militar, filho amado, querido pelos amigos, sai de casa quando recebe sua primeira designação de posto para servir ao exército. Até então ele ansiava por essa designação, seria a oportunidade de ser realmente um oficial e de ter aventuras heroicas por seu país.

O posto em questão é chamado forte Bastiani, fica longe de qualquer cidade, perto apenas de uma pequena vila. Drogo viajou dois dias de cavalo, dormindo ao relento até encontrar um outro oficial que servia no mesmo forte e andar com ele os quilômetros finais até o forte Bastiani.

De longe a imagem do forte o deixou emocionado, parecia uma fortificação de guerra e tanto. Mas foi logo ao conhecer esse primeiro colega de trabalho que as ilusões começaram a se desfazer. Aí ele teve uma noção mais aproximada do que lhe esperava: um forte isolado, que do outro lado da fronteira era cercado por um deserto e que nunca tinha sido atacado. Esse colega era o Major Ortiz, que já estava no forte há muitos anos e entendia que para ele não havia mais volta, ia ficar até o fim. Esse homem alerta o Tenente Drogo de que ele pode e deve ir embora na primeira oportunidade para não deixar passarem-lhe os seus melhores anos enfurnado naquele fim de mundo tedioso.

Dei umas risadas, tranquei os dentes de nervoso em várias cenas, quis estapear Drogo e logo depois consolá-lo. Ele, primeiro por vaidade, depois por vaidade de novo, depois por má sorte, depois por já estar enredado demais naquela atmosfera e suas redes que prendiam os oficiais sem que fossem coagidos a tal, foi simplesmente ficando no posto.

E as palavras e frases são lindas. Que livro bem escrito. Podia ser esticado e não é, é enxuto, cirúrgico.

O que mantém esses homens naquele rincão no meio do nada são as vaidades e as esperanças que eles mesmos criam como desculpas para não ir. (Pessoas que esperam Godot? São vocês?)

Vamos conversar sobre as esperanças e o título do livro. O tal do deserto do outro lado da fronteira é de onde se esperava “o ataque inimigo”. Além daquele deserto existia a possibilidade e até o anseio por um ataque dos povos da Tartária. Em um dado momento no livro algum novato faz o questionamento aos superiores sobre se ainda existiam os Tártaros e fica sem resposta. Ao que parece, apesar de a história não ter seu período histórico definido, arrisco afirmar que a resposta ao soldado era não.

Todo dia as sentinelas e outros oficiais olhavam o deserto por lunetas e outros instrumentos para se certificar de que não estava vindo o inimigo. E todo dia nada acontecia.

Vale mencionar alguns personagens bem peculiares além do nosso amado Giovanni Drogo. Tronk: já serve no Bastiani a bastante tempo, é Major e é o maior conhecedor do estatuto do forte, apegadíssimo às regras, chega a ser cômico e triste o modo como cobra o regramento do pelotão mesmo que as regras não façam o menor sentido. Matti: era o segundo na hierarquia do Bastiani quando Drogo chegou, um ensaboado, percebe-se que sua conversa tem método e que por esse método conseguiu que vários oficiais permanecessem ali pensando estarem escolhendo estar ali e fazendo o melhor para si e suas carreiras no exército. No Bastiani o tempo de serviço valia dobrado. Era um bônus que a administração dava a quem se propusesse ficar naquele  posto non sense. E por fim o próprio Major Ortiz que foi o primeiro amigo de Drogo e estava no Bastiani há 15 anos quando Drogo chegou, era lúcido e sabia, sem auto-enganação, que nada viria do deserto para justificar a existência do forte, ele simplesmente deixou tempo passar demais para se ajustar socialmente na planície tendo vivido naquele cafundó do Judas por longos anos.

A passagem do tempo é um trabalho primoroso de Dino Buzzati. O leitor percebe que Drogo está passando mais do que uns dias, quando ele tira licença (uma espécie de férias), quando ele fica sem traquejo social frente aos conhecidos da cidade, quando estimam quanto tempo demoraria para construir uma tal estrada, quando muda o comando do Bastiani ou chega gente nova. São sinais sutis, que põe o leitor em contato com a passagem lenta daquele tempo.

A vida no Bastiani parece a dos bergens na Vila Bergen do primeiro longa metragem Trolls. É aquela coisa lerda, sem vitalidade, todo mundo cumprindo suas funções no automático sem  entusiasmo. Os Tártaros seriam para os bastianenses o equivalente a comer trolls para os bergens.

E aí é que a história me pegou pessoalmente. É comum que as pessoas tenham um tanto de coisas que querem fazer para sua realização pessoal e que vão procrastinando e inventando outras prioridades e enquanto isso o tempo vai passando e… nada acontece.

Meu caso, por exemplo, não é tão grave como o dos oficiais do Bastiani. Não penso na minha vida como jogada fora em nome de uma causa perdida. Mas tem uma coisinha que precisa sair do papel e não sai e eu nem largo mão dela e nem arrumo a coragem para fazer logo. Quero escrever o meu próprio romance (há milhões de anos). E aí a pessoa começa, mostra pros outros, ouve as críticas e os elogios e passa um caminhão de desculpas na frente como se houvesse o tempo ideal, do tipo: depois disso com certeza trabalharei no livro.

Alguns livros serão eternamente deixados na minha cabeceira, para consultar quando algumas encruzilhadas se apresentarem, já falei isso sobre Sidarta, do Hermann Hesse e agora elevo O Deserto dos Tártaros também à essa categoria. Literatura que dá os insights para a vida.

Ouvi numa entrevista com a professora Aurora Bernardini, que é uma das tradutoras de O Deserto dos Tártaros, na série Literatura Fundamental, episódio 59, que Antônio Cândido tinha tanto apreço por O Deserto dos Tártaros, que lia esse livro todo início de ano. Achei boa essa prática.

Essa obra, a eterna espera e a esperança no futuro se assemelha ao conceito de dois livros que também falam sobre a passagem do tempo e as escolhas de seus protagonistas: A Montanha Mágica (Thomas Mann) e Esperando Godot (Samuel Beckett). Ambos têm resenha aqui. Drogo, Castorp e a dupla que espera Godot chegar (Estragon e Vladmir) passam considerável tempo de suas vidas justificando aquela espera irracional aos olhos de muitos, mas impregnada de significado como se fosse tudo o que lhes resta.

O Deserto dos Tártaros é uma reflexão sobre as escolhas, as esperas, as esperanças, a inércia, o medo, ao que se dá importância, à rigidez da disciplina e a ritualística militar, ao arrependimento. As imagens e as sensações que a narrativa cria para deleite de nossas imaginações é  impressionante. Que estilo!

Em 1976, foi lançado o filme que adaptou essa obra. Não vi, mas deixo aqui o trailer para quem se interessar.

Dino Buzzati também era pintor e fez coisas muito interessantes também nesse setor, como a tela que abre esse texto. Vale a pena uma googlada para ter um vislumbre desta faceta do autor.

BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. Tradução: BERNARDINI, Aurora Fornoni & ANDRADE, Homero Freitas de. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

ZURLINI, Valerio. O Deserto dos Tártaros. Itália: 1976.

DOHRN, Walt & MITCHELL, Mike. Trolls. EUA: DreamWorks, 2016.