Eu podia sentir o cheiro de giz do desodorante de Mama debaixo de seus braços. Seu rosto marrom, que seria perfeito se não fosse pela cicatriz recente em sua testa, não demonstrou emoção.

Kpa – disse ela. – Não vou comprar novas.

Talvez Mama soubesse que não ia mais precisar das estatuetas; que quando Papa atirou o missal em Jaja, não foram apenas elas que se quebraram, mas todo o resto. Só agora eu percebia isso, permitindo-me pensar naquela possibilidade.

Fiquei deitada na cama depois que Mama foi embora, deixando minha mente remexer o passado, pensando nos anos em que Jaja, Mama e eu falávamos mais com nosso espírito do que com nossos lábios. Até Nsukka.

Nsukka começou tudo; o jardinzinho de tia Ifeoma perto da varanda de seu apartamento em Nsukka começou a romper o silêncio. A rebeldia de Jaja era como os hibiscos roxos experimentais de tia Ifeoma: rara, com o cheiro suave da liberdade, uma liberdade diferente daquela que a multidão, brandindo folhas verdes, pediu na Government Square após o golpe.

Liberdade para ser, para fazer.

Mas minhas lembranças não começavam em Nsukka. Começavam antes, quando todos os hibiscos do nosso jardim da frente ainda eram de um vermelho chocante.”

 Chimamanda Ngozi Adiche. Hibisco Roxo.

 

 

A literatura me apresentou vários personagens, reais ou fictícios, dos quais queria ser amiga: Olívia, de Olhai os Lírios do Campo; Hans Castorp, de A Montanha Mágica; Elke Maravilha, de Elke Mulher Maravilha; o casal de Pílulas Azuis… e por aí vai.

Em Hibisco Roxo, a personagem Ifeoma despertou não só a vontade de tomar um café com ela, mas de pedir conselhos. A mulher é maravilhosa, corajosa, imperfeita, possível. Aliás, Ifeoma é o nome do meio da mãe de Chimamanda, a senhora Grace Ifeoma Adichie, falecida em 2021.

Pelo que entendi, a personagem Ifeoma reúne em si características dos pais de Chimamanda, a quem a autora define como pessoas sensacionais. Os dois trabalhavam na mesma universidade que a personagem do livro: a Universidade da Nigéria, onde o pai de Chimamanda era professor de estatística e a mãe trabalhava na administração.

Chimamanda chegou a cursar um ano e meio do curso de Medicina e Farmácia na Universidade da Nigéria.

Hibisco Roxo vai te pegar já no primeiro parágrafo. É tão bem escrito que faz essa história cheia de acontecimentos graves e tristes ser altamente devorável. foi o primeiro romance escrito por Chimamanda Ngozi Adichie e é um livro muito forte, que trata de aspectos sensíveis para qualquer ser humano vivente no planeta Terra. A história da família Achike está mergulhada no contexto cultural e político nigeriano, mais especificamente da região ocupada majoritariamente pelos nigerianos da etnia igbo, que partes nos estados nigerianos de: Enugu, Delta, Ebonyi, Anambra, Rios e Abio.

Vamos ao enredo.

Chimamanda Adichie

Kambili e Jaja são irmãos adolescentes, filhos do casal Beatrice e Eugene Achike. Eles são muito ricos. Eugene tem fábricas de alimentos e um bem sucedido jornal: o Standard. São católicos e, aparentemente, têm uma vida faustosa e organizada. Tipo uma família de comercial de margarina.

Eugene é um grande benfeitor da sociedade tanto na cidade em que moram, Enugu, quanto na de origem, Aba. Faz grandes doações a projetos sociais e à igreja e não gosta de receber agradecimentos públicos.

Kambili e Jaja são os melhores alunos de suas classes na escola, sempre o foram, e Beatrice é a dona de casa com seus filhos e marido perfeitos. Só que não.

Ao longo da leitura, vamos descobrindo como aquela família guarda segredos e o quão forte e prejudicial é o fanatismo religioso do pai.

Eugene não é filho único, ele tem uma irmã, Ifeoma Achike, uma professora universitária, feminista, pragmática e independente. Ifeoma, acho que deixei claro, é a minha queridinha nesse livro. Também é católica, mas lida com a religião de uma forma diferente do irmão. Essa mulher tem uma relação de respeito e até de interesse genuíno pelas religiões tradicionais da Nigéria.

Talvez ela seja a única pessoa capaz de convencer o irmão a mudar de ideia, ainda que em assuntos de menor importância, em todo o livro. Ifeoma é viúva e tem três filhos Amaka, Obiora e Chima, os dois primeiros são mais ou menos das idades de Kambili e Jaja. Esse núcleo familiar mora em Nsukka, que fica a algumas horas da cidade de Enugu em que a família de Kambili vive.

Esses são os núcleos principais. Biologicamente todos esses personagens citados são descendentes de Papa-Nnukwu, que é o pai de Ifeoma e Eugene, com quem o filho não fala há anos por não aceitar que o pai não tenha se convertido ao catolicismo, prosseguindo com suas crenças “pagãs”.

A narradora desse livro é Kambili. É pelas palavras dela que vamos entendendo como funcionava a sociedade nigeriana dos anos 1990, com seus golpes de Estado, resquícios culturais e traumas da colonização britânica, carência de infraestrutura e insumos. Muitos paralelos possíveis com a política e as condições de vida brasileiras, principalmente dos anos 1990 para trás.

Pelo que apresentei do livro até agora, vocês podem ter a ideia de que Eugene era nada mais que um hipócrita e ele era realmente um hipócrita, mas não só isso. Apesar de todos os seus defeitos, era muito admirado por seus filhos, ajudava muita gente e era um democrata. O jornal do qual era dono foi uma das vozes mais ativas contra os avanços autoritários e os ditadores nigerianos.

Sobre as características menos elogiosas, estas são a própria causa dessa história sensacional existir. O que Kambili narra é o processo doloroso de amadurecimento, ressignificação e superação dos traumas vividos em casa por ela, o irmão e a mãe.

Nenhum dos descendentes de Papa-Nnukwu é plano. Os personagens são cheios de nuances e contradições e é muito interessante a construção deles.

Tem hora que dá vontade de sacudir Kambili, Amaka, Obiora, Beatrice e Jaja. Ifeoma é ótima e Eugene é causa perdida, não iria adiantar nada sacudi-los.

As coisas começam a mudar para Kambili e Jaja quando vão passar uns dias na casa da tia em Nsukka. Inicialmente, seriam apenas sete dias com o objetivo de conviver com os primos e visitar a cidade de Aokpe, região de peregrinação em que estariam ocorrendo aparições de Nossa Senhora. A estadia acabou sendo esticada por motivos de força maior, tanto os políticos quanto os familiares.

Nesse tempo em que as crianças ficam sob os cuidados de Ifeoma, eles vão experimentar outra organização familiar, outras regras cotidianas, outra forma de ver a religião, tanto a deles quanto a dos tradicionalistas, como são chamados os cidadãos que professam as religiões originárias da região tal qual eram antes do imperialismo britânico por suas garras sobre a Nigéria.

O final dessa obra é surpreendente, não vou falar nada mais sobre isso, só digo que gostei bastante. Gostei bastante do livro todo. Foi o meu primeiro e, certamente, não o último Chimamanda Adichie.

Hibisco Roxo é um livro muito delicado e bem escrito sobre a história de uma adolescente oprimida, vítima de abusos domésticos, compreendendo o mundo e se libertando, ao mesmo tempo que é uma história da Nigéria em si, política, costumes, religiões, colonialismo, mazelas do período pós-colonial, riqueza x pobreza, racismo, identidade cultural, sobrevivência.

Para nossos propósitos comparativos, como não sou uma expert em literatura nigeriana e todos os aspectos que pensei em relação a Kambili ou mesmo Ifeoma me pareceram bobos em relação à força dessas personagens, escolhi tratar de um tema do contexto religioso da época, provavelmente serei rasa, porque, para a surpresa de ninguém, é bastante difícil encontrar informações sobre a história recente nigeriana em português ou mesmo em inglês.

Apparition and Miracles - Our Lady of Aokpe

Chistiana no santuário de Aokpe. Ao fundo a imagem de Nossa Senhora de Aokpe.

O que me permitiu situar de que golpe de Estado o livro trata e em que época se situa essa história foi a aparição da Virgem Maria na cidade de Aokpe, cidade perto de Nsukka em que a tia Ifeoma leva os filhos e os sobrinhos.

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Capa do programa de governo de Moshood Abiola (1993)

As aparições que, segundo a Igreja Católica regional e a então adolescente Christiana Agbo, iniciaram em outubro de 1992, estão cronologicamente próximas ao não reconhecimento dos resultados eleitorais que deram vitória a Moshood Abiola com 58,36% dos votos.

O Governo Militar de Ibrahim Babangida alegou fraude eleitoral e conseguiu a anulação do pleito. Assim, Ernest Shonekan assumiu interinamente o governo da Nigéria em vinte e seis de agosto de 1993.

Segundo o que se lê em Hibisco Roxo, essa anulação eleitoral foi um golpe articulado por militares que destruiu sonhos de uma grande parcela da população Nigeriana que acreditava em uma virada democrática com a ascensão de Abiola.

Na obra de Chimamanda, o jornal Standard foi uma das poucas vozes contra o golpe. Essa integridade política e jornalística era importante tanto para Eugene quanto para seu editor Ade Cocker.

Ade Cocker será perseguido politicamente até seu assassinato, que terá as marcas do governo autoritário no atentado. Inclusive, o envelope que continha a bomba que matou Ade tinha o timbre do governo.

Só para constar, na vida real a deposição de Shonekan se deu em apenas três meses depois do início do governo, em dezessete de novembro de 1993. Essa deposição aparece também em Hibisco Roxo, que não cita nome de governo nenhum em suas páginas, daí minha alegria em encontrar a peregrinação a Aokpe e conseguir situar historicamente o enredo do livro.

Em 1992, Christiana Agbo anunciou ter tido contato com a Virgem Maria, que ficou conhecida como Nossa Senhora de Aokpe. Nquele país que já era bastante católico, milhares de pessoas iniciaram peregrinações para dar conta do milagre. Não consegui encontrar menção a reconhecimento ou mesmo investigação da autenticidade das aparições por parte da Igreja. Em Aokpe foi construído um santuário, onde são celebrados os ritos católicos por padres e membros daquela Igreja. Aokpe se tornou ponto importante de visitação religiosa.

Corrijam-me se estiver errada, mas parece que a única aparição na África reconhecida pelo Vaticano é a da Nossa Senhora de Kibeho, em Ruanda, iniciada em 1981. O reconhecimento veio em 2022.

A primeira pessoa a testemunhar as aparições em Kibeho foi Alphonsine Mumureke, no ano seguinte outras duas mulheres, amigas de Afonsina também alegaram ter visto e recebido mensagens da santa: Anathalie Mukamazimpaka e Marie-Claire Mukangango.

Nessas aparições, Nossa Senhora teria avisado que Ruanda passaria por uma grande tragédia e recomendou que saíssem do país. Quatro anos depois ocorreu o evento que ficou conhecido como O Massacre de Ruanda, quando pessoas das três etnias, hutus, tutsis e twas foram brutalmente assassinadas. O massacre, que marca a segunda fase da guerra civil de Ruanda, também é conhecido como Genocídio Tutsi, posto que as pessoas dessa etnia foram as mais afetadas tendo sido mortos cerca de 800 mil tutsis entre os aproximadamente 1 milhão de mortos no total.

Esse horror, que durou três meses, foi a continuação de um horror mais duradouro: a guerra civil de Ruanda, que teve sua primeira fase entre outubro de 1990 e agosto de 1993 e foi retomada nesse conflito que durou de abril a julho de 1994, furando o acordo de paz proposto pelo governo ruandês. Esse genocídio está representado em um filme maravilhoso, de chorar baldes, chamado Hotel Ruanda (2004), que conta a história real do gerente de hotel Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle). Hotel Ruanda está disponível no Prime Video.

Paul Rusesabagina (1954- ) •

Paul Rusesabagina – Gerente do Hotel que inspirou o filme Hotel Ruanda

Aqui no Brasil também tivemos aparições da mãe de Jesus. Atualmente, em Cimbres, no estado de Pernambuco, o fenômeno está em investigação pela Igreja. Na década de 1930, houve um registro com reconhecimento do bispo regional em Campinas, São Paulo.

O centro mais importante de peregrinação católica no Brasil é o de Aparecida do Norte, também no estado de São Paulo, onde foi construída uma basílica no local em que os pescadores João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia teriam encontrado a imagem da santa de pele negra no rio Paraíba do Sul, no ano de 1717.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GEORGE, Terry. Hotel Ruanda. UK, Itália, EUA & África do Sul: MGM, 2004.

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