“sempre me deixo queimar
pelos incêndios alheios
sou cerrado em mês de setembro
altamente inflamável
esperando que alguém acenda o seu cigarro
e o esqueça
me desfazendo em labaredas
coloridas
e por fim
cinzas”

Pâmela Rodrigues. Areia Não é Sujeira.

 

 

Coloquei uma enquete no Instagram essa semana perguntando que livro deveria ser comentado e ganhou Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie.

Acreditem: estou muito animada para conversar sobre Hibisco Roxo e até já escrevi um pouco.

Massss, a semana virou… Na sequência da Chimamanda viria Areia não é Sujeira, de Pâmela Rodrigues, que é um livro de poesia. Aí sentimentos invertidos, invertemos também a sequencia das resenhas.

A virada que bagunçou sentimentos e percepções fez com que a esponja que vos fala simplesmente precisasse de poesia para ajudar a assimilar a vida. Então, sem mais delongas apresento-lhes o sensível, engajado e lindo: Areia não é Sujeira.

Há alguns dias, recebi esse livro, que estava curiosa para ler por diversos motivos. Bairrismo. Pâmela é brasiliense e eu moro em Brasília, amo e considero meu lugar no mundo.

Curadoria. Areia não é sujeira sai pela editora Patuá, que tem aquele olhar que a gente respeita, ao selecionar os projetos que irão publicar. A Patuá lança primeiros livros de diversos autores, mas não quaisquer primeiros livros.

Eis o link para facilitar para quem quiser comprar. A Patuá só vende em seu próprio site, pelo menos até onde eu sei.

Eu sabia, de ler sobre a Pâmela em algumas matérias na imprensa e no Instagram dela, que a obra tinha uma pegada autobiográfica.

Bissexual, feminista e sagitariana: conheça a poeta Pâmela Rodrigues

Pâmela Rodrigues

Autobiografia em versos: irresistível!

A literatura te põe na pele de outras pessoas e isso é incrível e fundamental para nossa formação como humanos. Quando se trata de poesia a interpretação e o impacto variam ainda mais do que na prosa, conforme a bagagem do leitor. A poesia é de uma matéria que permite que enxerguemos a nós mesmos e que interpretemos as palavras de modo diferente ao sabor das emoções do dia ou de experiências vividas no intervalo entre leituras e releituras. Li Areia não é sujeira semana passada e percebi X, li de novo, de ontem para hoje e percebi X+Y. Uma nova informação na minha bagagem de mulher e leitora e pronto: o livro já não é o mesmo.

Areia não é Sujeira era o que eu precisava nesse momento. E me parece uma leitura que vou precisar de novo de tempos em tempos.

O livro se divide em três partes: O Solo; Areia e Cinzas.

Na primeira Pâmela escreve sobre suas bases, com especial destaque para as mulheres da família. Fica evidente a influência da ascendência feminina na formação da pessoa que escreve. Muita delicadeza. Memórias entrelaçadas a percepções, bastante sensorial, valorização das miudezas que fazem a família especial para aquela que rememora.

Como me lembrei das minhas! Avós, tias e mãe.

Depois na parte da Areia, que, no meu entendimento, trata da formação da personalidade por influências alheias às mulheres que a criaram, um dos que mais me tocou foi o poema sobre a irmã. Tenho uma irmã daquelas. Que é simplesmente um pedaço da minha alma. Ali encontraremos temas como política, religiosidade x sexualidade, absorção do universo que a cerca, segundo informações que chegam para ela e segundo suas próprias percepções e como essas duas pontas se chocam, se unem e viram uma opinião, uma conclusão. Essa parte e a última (Cinzas)… vamos combinar que salvaram aí uns reais que seriam gastos em terapia. Simplesmente amo leituras que fazem isso por mim.

E em fim, as Cinzas. A maturidade, a mulher forjada de infância e adolescência

O feminismo, causa cara à autora, está presente de uma forma muito bacana, percebe-se o posicionamento em relação às origens, destinos e dificuldades enfrentadas por pelo menos três gerações de mulheres, a partir do ponto de vista da mais nova, a neta, e permeia todo o livro, acompanhando o amadurecimento do eu lírico.

 

“seu peito dói com as injustiças rurais

e urbanas que a vó viveu

ela conta e ri, algo nela endureceu

o desejo de levar alegria

para memórias tão difíceis

é parte do que te move”

(Árvore Genealógica ou Notas para um Momento de Dúvida/ Solo)

 

“o sangue carmesim

Tingiu o fundo de sua

Calcinha pela primeira vez

Dando luz à cruz

De carregar um útero habitável”

(O Saque/ Areia)

“o convite era

pra pôr em ordem

aquela gaveta metafórica onde achei ser possível esconder  

as minhas maiores dores

de mim mesma”

(Personal Organizer/ Cinzas)

Que livro lindo! Ouso oferecer uma das definições possíveis para o que acabei de ler: é uma coletânea de poesias que formam uma obra coesa de formação daquele eu lírico. Entenderam? É como um romance de formação em que o personagem nasce ou aparece ainda criança, se forma como indivíduo, amadurece e vive sua vida adulta conforme as conclusões possíveis tiradas das fases anteriores da vida. O bônus que Areia não é Sujeira nos dá é trazer esse processo em versos.

Esse livro, pode ser visto de  diversos pontos de vista, e por isso tive alguma dificuldade em fazer a curadoria do infinito de sugestões que meu cérebro ia trazendo à medida que eu lia. Escolhi então indicar como obras com temas correlatos um romance dramático em que as personagens são mulheres e uma novela, que se tornou um marco feminista e é uma das histórias de terror mais aterrorizantes que já li, porque o monstro é a loucura. Não estou aqui dizendo, como querem nos fazer crer as mentes mais machistas, que mulheres tenham maior propensão a perder o juízo, mas esse livrinho pequeno e poderoso fala justamente de como podemos ser conduzidos a um descolamento da realidade, quando o mundo em volta resolve nos tratar como seres incapazes de se conduzir vida a fora por nós mesmas.

Como já falei um pouco sobre a loucura, começarei pela novela O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman.

O elo entre Areia Não é Sujeira e O Papel de Parede Amarelo, está nas temáticas feministas, na força das palavras e só. Um é gracioso, apesar dos temas fortes, e o outro é assustador, apesar dos temas sensíveis.

Uma mulher é levada para uma casa de campo para se curar dos humores perturbados por seu “amoroso” esposo. Segundo o esposo e as ordens médicas isso a ajudaria a se recompor. Essa criatura não pode escolher nada, absolutamente nada. A casa de campo têm outros quartos, mas ela é forçada a ficar em um em que há um medonho papel de parede amarelo. As horas de solidão que essa mulher passa trancada no tal quarto vão criando uma relação entre ela e a padronagem do papel de parede. De feio e mal cuidado, ela passa a interagir com a estampa do papel como se ele fosse uma criatura. É muito muito bom. Esse livro curtinho é um dos meus preferidos da vida.

Agora uma história que é originária de um dos livros mais vendidos do mundo e que eu ainda não li. Mas assisti a duas adaptações para o audiovisual que são pura poesia. Aterei-me ao filme de 2019 Adoráveis Mulheres, baseado no livro Mulherzinhas de Louisa May Alcott.

Uma família composta por cinco mulheres, a mãe e quatro irmãs, cada uma com uma personalidade e desejos diversos. A vida não vai ser fácil para essas mulheres que acabaram de perder o pai na guerra de Secessão, que era um homem decente e amoroso. Além da perda do pai, existe a questão da administração de finanças e da dificuldade de sobrevivência digna para uma família só de mulheres. A personagem principal é Jo March (Saroise Ronan) uma jovem mulher que pretende ser escritora, aliás já era escritora, mas vai esbarrar com as dificuldades de publicar que são relacionadas a seu gênero. Imagina só, se hoje temos menos autoras que autores e nós mulheres temos mais dificuldade em obter reconhecimento, como deveria ser lá no século XIX. As outras personagens também são muito maravilhosas, a começar da mãe. Não vou dar detalhes sobre elas para não estragar a experiência. É parte da diversão descobrir do que cada uma é feita, inclusive a tia (Meryl Streep), que será fundamental na vida de uma das sobrinhas em particular. Esse filme é dirigido pela maravilhosa Greta Gerwig, onde essa mulher puser a mão, vai ficar interessante.

Por fim na onda do meu bairrismo brasiliense, da poesia das letras de música e dos guardados da mente que compõem o lirismo de Areia Não é Sujeira, fechamos esse texto com a música Tendo a Lua, dos Paralamas do Sucesso.

Em homenagem a duas extraordinárias mulheres: minha amiga Janaína Juliana e a filha dela Taya Carneiro que nos deixou esses dias.

Jana, te amo!

 

RODRIGUES, Pâmela. Areia não é sujeira. São Paulo: Patuá, 2022.

GILMAN, Charlotte Perkins. O papel de parede amarelo. 7a edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.

GERWIG, Greta. Adoráveis Mulheres. EUA: Sony Pictures, 2019.