Capa de 20 Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne

– Resumindo, a liberdade de ir e vir, de ver, até mesmo observar tudo o que acontece aqui, salvo em algumas circunstâncias; a liberdade, enfim, de que nós mesmos gozamos, meus companheiros e eu. 

Estava Claro que não nos entendíamos.

Perdão, cavalheiro – insisti -, mas essa liberdade é igual à que todo prisioneiro tem de percorrer a sua prisão! Ela não pode nos bastar!

– Mas terá de lhes bastar! (…)

– Cavalheiro – respondi exaltado a contragosto –, o senhor abusa de sua posição! Isso é Crueldade!

– Não, cavalheiro, é clemência! Os senhores são meus prisioneiros de guerra! O que faço é preservá-los, já que uma palavra minha poderia sepultá-los nos abismos do oceano! Os senhores me atacaram! Vieram surpreender um segredo que homem nenhum no mundo deve desvendar, o segredo de toda minha existência! E pensam que vou devolvê-los a essa terra que não deve mais me conhecer! Nunca! Retendo-os, não é aos senhores  que preservo, mas a mim mesmo!”

VERNE, Jules. 20 Mil Léguas Submarinas. Pg. 92.

Em 1870, Jules Verne publicava 20 Mil Léguas Submarinas. Aventura que se passa nas profundezas dos oceanos, em que um homem desiludido com a humanidade dita civilizada nos padrões do século XIX, constrói um maravilhoso submarino com seus avançados conhecimentos de engenharia e, com uma tripulação composta de outros desiludidos, passa a viver isolado das confusões da superfície terrestre. Ao que parece, fora os ataques e acidentes com embarcações do mundo emerso, eles vivem tão bem quanto os habitantes do Yellow Submarine, famoso submarino da música dos Beatles.

Yellow Submarine

O nome desse quase eremita é Capitão Nemo e Nemo significa ninguém em latim. O que combina com o Capitão cujo maior desejo é passar incólume, desaparecer. É um homem muito misterioso. As reais motivações que o levaram a tamanha desilusão e à opção pelo isolamento não estão explícitas no livro.

Todos os personagens dessa aventura submarina são homens, sendo os principais o Capitão Nemo e o professor Aronnax, seguidos de dois coadjuvantes importantes: Conselho e Ned Land. O submarino Nautilus, que Capitão Nemo define como navio submerso, é também um personagem, tão ou mais importante que os outros. Já conversamos aqui sobre espaços-personagem em O Corcunda de Notre Dame e Harry Potter e a Pedra Filosofal.

O Professor Pierre Aronnax, narrador da aventura, leciona História Natural no Museu de Paris. Estudioso das criaturas marinhas e dos mares, um obcecado pelo tema pode-se dizer. Vive com seu criado Conselho e dedica-se quase exclusivamente a sua profissão.

Conselho, o criado, muito dedicado ao patrão, é uma espécie de mordomo/assistente/pau para toda obra. Por influência de Aronnax estudou profundamente a classificação de seres marinhos, sabendo de cor todos os reinos, filos, classes, famílias, espécies e características de cada coisa que habite o oceano.

Já o arpoador Ned Land, não era um homem europeu, era canadense. É bruto, caçador de baleias famoso por sua competência nesse setor. Muitos conhecimentos práticos e poucos formais, homem intempestivo, de ação. Ned Land é grande, forte, impaciente e turrão. Vive como um lobo solitário.

Primeiro submarino de guerra do mundo: Nautilus.

Observem que todos esses homens estão entre os 30 e 50 anos, são solitários, aventureiros, corajosos e donos da verdade, cada um dono da sua própria.

Apesar de Ned Land ter conhecimentos que o fazem personagem fundamental no desenrolar da história, ele, além de ser o único não europeu entre os mais relevantes, também é o único sem refinamento e conhecimentos acadêmicos.

Isso é o retrato do imaginário construído em torno do homem branco europeu do século XIX. São desbravadores, conhecedores de tudo, indomáveis, tudo o que fazem é louvável mesmo que prejudique outros considerados menos magnânimos. Assim, como os homens criados por Jules Verne, há também Victor Frankenstein, Dr. Jekyll, Capitão Ahab e tantos outros. Paralelamente, são tratados como selvagens e exóticos os humanos de outros continentes que tenham modos de vida diversos.

Por falar em Capitão Ahab, que é personagem de Moby Dick, clássico de Herman Merville, a temida baleia branca Moby Dick, que dá nome àquele livro, aparece algumas vezes citada como caso real para ilustrar a grandiosidade do suposto animal marinho que perseguiriam para salvar seus navios da destruição. Moby Dick era o terror dos baleeiros e ao que parece serviu de inspiração para o Nautilus de Jules Verne.

Tudo acontece porque vários navios estão sendo destruídos pelo que acreditavam ser uma criatura marinha gigantesca e implacável. O Professor Aronnax faz uma palestra sobre suas hipóteses de que tipo de animal poderia estar fazendo aquele estrago e conclui ser um narval de tamanho jamais dantes visto. Então é convocado, na qualidade de especialista em seres do mar, para compor equipe que sai com a missão de destruir o tal narval. Eis que o narval é na verdade um submarino, tripulado por homens como eles. Ao atacar o Nautilus, recebem um contrataque que lança alguns de seus caçadores ao mar. O Capitão Nemo os recolhe tomando-os como prisioneiros. Esse submarino é chamado Nautilus.

O nome Nautilus, hoje em dia, está em uma profusão de marcas e menções. Será que todas elas têm a ver com o sensacional submarino da obra de Jules Verne?

Nautilus foi um nome que Verne escolheu com base em outro submarino. O primeiro submarino do mundo projetado com propósitos de guerra se chamava Nautilus. Este submarino da vida real, foi obra do inventor Robert Fulton, nascido nos Estados Unidos, e foi lançado ao mar na década de 1790. Os trabalhos de Fulton foram patrocinados por Napoleão Bonaparte. Esse Nautilus chegou a derrubar duas embarcações e mesmo assim nem a França nem a Inglaterra quiseram prosseguir com os investimentos. Por sua vez, o tal submarino napoleônico teve seu nome advindo de um molusco, descrito em 1758 por Carolus Linnaeus.

Molusco descrito em 1758: Nautilus.

Embora o nome do Nautilus do livro possa ter sido inspirado pelo submarino napoleônico e pelo molusco, acredito serem de 20 Mil Léguas Submarinas os créditos por tantos Nautilus espalhados por aí, posto que nenhum dos dois precedentes têm a mesma fama.

O autor dedica um capítulo inteiro a descrever o interior, o design e a mecânica do Nautilus. É um capítulo um tanto longo e detalhado, porém importante. Nele está demonstrado a grandiosidade do submarino e o orgulho que seu Capitão sentia por ele.

O trecho citado no início desse texto, é a parte em que os prisioneiros chegam a bordo do Nautilus e conhecem o Capitão Nemo. Naquele trecho há um detalhe da linguagem que remeteu à linguagem usada por membros dos poderes legislativo e, sobretudo, judiciário brasileiros. Existe uma passivo-agressividade decorosa. O cavalheiro pra cá, o cavalheiro pra lá… uma briga polida.

Um exemplo recente que serve para ilustrar e que já é um clássico desse decoro agressivo foi o momento em que um Ministro do STF se dirigiu a outro Ministro usando “Vossa Excelência” como sujeito e soltando toda a raiva nos predicados:

“Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É uma absurdo V. Exa. aqui fazer um comício, cheio de ofensas, grosserias. V. Exa. não consegue articular um argumento. Já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para V. Exa. é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. V. Exa. nos envergonha, V. Exa é uma desonra para o tribunal.”

Capa do álbum Space Oddity, de David Bowie.

Voltando a Verne, o Capitão Nemo é tão interessante que o próprio autor usou o personagem em outra obra: A Ilha Misteriosa.

O reaproveitamento de personagens é bastante comum na literatura e em outras artes. Para ficar em apenas um exemplo, o Major Tom, originalmente criado por David Bowie na música Space Oddity, também foi usado pelo compositor em Ashes to Ashes e Hallo Spaceboy.

Posteriormente, Major Tom foi utilizado por outros artistas como: Peter Schilling (Major Tom – comming home),  K.I.A (Mrs. Major Tom) e  Def Leppard (Rocket). Há uma possibilidade de que o Rocket Man de Elton John também tenha vindo do Major Tom.

Em Space Oddity, Major Tom é um astronauta que sai em uma missão espacial e fica tão fascinado pelo espaço que para de seguir as orientações do Ground Control para continuar viajando em sua tin can. Bowie se inspirou no filme de Stanley Kubrick 2001: a Space Odissey para compor Space Oddity.

Cartaz do Filme Liga Extraordinária.

Além de Major Tom, precisamos voltar ao Capitão Nemo e citar que ele é também parte de outras histórias que não foram escritas por Jules Verne.

Em Liga Extraordinária, filme de 2003, é formada uma equipe de personagens icônicos da literatura mundial, cada um com suas habilidades específicas, com o objetivo de  combater um gênio do crime. Além de Nemo, também fazem parte da liga, Dorian Gray; Mina Harker; Allan Quatermain, Dr. Jekyll e Mr, Hyde; Tom Sawyer e Homem Invisível.

Cartaz da animação Procurando Nemo

O peixinho alaranjado e preto, com uma barbatana menor que outra, que atravessa o oceano quando é capturado por um mergulhador, traz em seu nome uma homenagem a 20 Mil Léguas Submarinas. Estamos falando de Procurando Nemo, animação da Pixar. O peixinho Nemo reaparece, 13 anos depois, em Procurando Dory, também da Pixar.

Por vezes, durante a leitura de 20 Mil Léguas Submarinas, me perdi na quantidade de informações sobre as profundezas do oceano e suas criaturas (meus amigos ictiólogos, oceanólogos e afins talvez discordem que tenha sido excessivo). É importante dizer que apesar de ter achado muito longas essas passagens, elas demonstram o conhecimento tanto do Professor Aronnax quanto de Conselho sobre o tema e dão a dimensão do deslumbramento que aquela oportunidade tão exclusiva lhes causava.

Um livro que ensejou tantas menções e referências, só pode ser caracterizado como uma obra prima. E para terminar, fiquem com a música Beyond the Sea, interpretada por Bobby Darin, que encerra a animação Procurando Nemo.

VERNE, Jules. 20 Mil Léguas Submarinas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

STANTON, Andrew. Procurando Nemo. EUA: Pixar Animation Studios, 2003.

STANTON, Andrew. Procurando Dory. EUA: Pixar Animation Studios, 2016.

NORRINGTON, Stephen. A Liga Extraordinária. Alemanha, Reino Unido, EUA, República Tcheca: 20th Century Studios, 2003.