“_ Seja bem-vindo, sr. Castorp. Espero que o senhor se aclimate rapidamente e se sinta bem entre nós. Permita-me perguntar: veio como paciente?
Era comovente ver como Hans Castorp se esforçava por mostrar-se cortês e dominar a sonolência. Sentia-se irritado pelo fato de estar tão pouco apresentável, e, com a desconfiada soberba peculiar aos jovens via no sorriso e na atitude confortante do médico apenas sinais de ironia indulgente. Respondeu que passaria três semanas ali, ao passo que mencionou também seu exame e acrescentou que, graças a Deus, gozava da mais perfeita saúde.
– Será? – perguntou o dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto seu sorriso se acentuava. Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem sequer em perfeita saúde. Posso perguntar que exame o senhor prestou?
– Sou engenheiro, doutor .- comunicou Hans Castorp com dignidade e modéstia.
– Ah, engenheiro! – E o sorriso do dr. Krokowski como que se retraiu, chegou por um momento a perder a força e a cordialidade.
– Uma profissão excelente! De maneira que o senhor não pretende receber aqui qualquer assistência médica, nem de ordem física nem psíquica?
– Não, muito obrigado! – disse Hans Castorp, a ponto de dar um passo para trás.
O sorriso do dr. Krokowski reapareceu vitorioso. E, enquanto tornava a apertar a mão do jovem, ele exclamou em voz alta:
– Pois então, sr. Castorp, durma bem, na plena convicção de sua saúde inatacável! Durma bem, e até amanhã! – Com essas palavras, despediu-se dos jovens e voltou a seu jornal.
Não havendo mais ascensorista àquela hora, subiram a pé pela escada, silenciosos e um tanto perturbados pelo encontro com o dr. Krokowski.”
Thomas Mann. A Montanha Mágica.
Não foi essa semana que terminei de escalar A Montanha Mágica. De fato, lá se vai quase um mês, sem falar no tempo enorme que demorei para lê-lo.
Os motivos da demora para concluir a leitura são vários. Primeiro uma crise de esgotamento mental que fez parar a leitura e ficar bem uns quinze dias sem ler nada, isso nada teve a ver com o livro em si. Depois porque são mais de oitocentas páginas, alternando entre capítulos de leitura mais leve e fluida com outros em que discussões mais densas que requeriam mais atenção e raciocínio.

Thomas Mann
Se Thomas Mann, levou doze anos para concluir essa obra, porque deveríamos nós mortais ler correndo, não é mesmo?
É para degustar, pensar na própria vida, se emocionar, pensar nas questões propostas pelo autor que versam sobre aspectos importantíssimos para a organização e natureza humana. Esse livro é uma delícia. É bem engraçado, irônico. Garante umas boas risadas.
Uma pausa para falar de Thomas Mann. Sabia que a mãe desse fabuloso escritor vencedor do Nobel de Literatura de 1929 era brasileira? Sim. Júlia da Silva Bruhns, carioca, e esposa do senador, cônsul e comerciante Johann Heinrich Mann, teve cinco filhos, todos de reconhecido mérito em suas áreas de atuação. Entre eles nosso querido Thomas e seu irmão Heinrich que se notabilizaram pelas belas letras. Júlia mesmo chegou a publicar um livro de memórias chamado Da Infância de Dodô, sobre seus primeiros anos de vida no Brasil.
Thomas Mann apesar de sua obsessão germânica pela ordem e disciplina, que o tornaram escritor profícuo, atribui à origem materna uma certa faceta latina que temperou seus escritos. Olha que combinação excelente. Esse moço, que nasceu em 1875 e faleceu em 1955, passou por duas guerras mundiais, pela instalação dos regimes fascistas em seu continente, especialmente no seu país, viveu no exílio, participou da implementação da república de Weimar, passou metade da vida interessado apenas em cultura alemã e terminou a como ativista político.
Thomas começou a escrever A Montanha Mágica em 1912 e concluiu em 1924, ou seja, começou antes e terminou depois da Primeira Guerra Mundial. Essa informação é importante para entender o livro.
Hans Castorp é o personagem principal, um jovem engenheiro recém formado, com vaga de trabalho garantida em um estaleiro. No período de férias entre o final da faculdade e a admissão no estaleiro, foi visitar seu primo Joachim que se encontrava em um sanatório para recuperação de tuberculosos em Davos na Suíça. O plano era passar três semanas com o primo e descer para a planície (como é chamado o resto do mundo abaixo da montanha).

Um hotel sanatório em Davos
Aí… naquelas três semanas, Hans descobre ser ele também um tuberculoso e seu retorno à planície acaba sendo adiado por muito mais tempo do que ele previa.
O tempo é fundamental nesse livro. É quase um personagem. Depois de chegar a Davos ainda era preciso pegar uma condução para subir a montanha e se instalar no Berghof (nome do hotel/sanatório). Se na planície cada minuto conta, na montanha o tempo é medido em meses e anos, variando de acordo com a “sentença” que o médico aplica a cada paciente quando da avaliação do estado de saúde. A prescrição mínima é de três meses e ela vai sendo alargada à medida que se observa o avanço da doença. As estações não são bem marcadas e os dias são basicamente iguais o que dificulta a mensuração do tempo pelos pacientes. O próprio Hans larga essa preocupação para lá e simplesmente se deixa levar, chegando a não ter a menor ideia de quanto tempo está durando sua hospedagem.
Não há pobres nessa luxuosa hospedagem. Hans pode se manter ali em cima porque a herança que recebeu dos pais e posteriormente a do avô, permitem que ele viva de rendimentos e custeie as diárias do Berghof. As pessoas sem condições financeiras favoráveis ficam em Davos, vivendo como dá, ou se viram na planície mesmo.
No Berghof as pessoas são distribuídas em panelinhas As refeições são servidas em mesas com lugares preestabelecidos para os hospedes e ditam o grupo social com que determinada pessoa deve conviver. Tem a mesa dos aristocratas russos, que é a mesa dos “russos distintos”; a dos russos ricos porém plebeus; a da madame Stöhr, Hans, Joachim e Setembrini; uma outra com a família mexicana e outros hóspedes e por aí vai.
Na mesa dos russos distintos fica a madame Clawdia Chauchat, que será o interesse amoroso de Hans, sendo inclusive um dos motivos de ele ter ficado tanto tempo no Berghof. A interação entre eles é das coisas mais deliciosas do livro.
Além de Madame Chauchat, outros personagens serão fundamentais: Setembrini, o humanista que iniciará Castorp no mundo da filosofia e política; Naphta, um judeu convertido jesuíta, que travará com Setembrini as discussões mais acaloradas posto que divergem em tudo; e o Senhor Peeperkorn, de quem não posso falar muito, mas que vai encantar Castorp e ensiná-lo a aproveitar a vida.
O Berghof é como um microcosmo cultivado em uma redoma de vidro. As pessoas lá hospedadas estão doentes com baixíssima perspectiva de melhora na saúde, numa vida sem sentido, basicamente aguardando a morte.
A tuberculose, que aterrorizou principalmente no século XIX a meados do século XX, até 1882 era considerada uma doença de “humores”, sem causa definida. Foi naquele ano que Robert Koch identificou a bactéria que causa a tuberculose: o Bacilo de Koch ou Mycobacterium tuberculosis.
Já o tratamento mais eficiente só viria depois de 1928, quando Alexandre Fleming descobriu a penicilina, ou seja, o antibiótico. Até então, tuberculose era tratada com repouso, de preferência em lugares frios, de ar seco e rarefeito. Como os Alpes Suíços, onde ficava o Berghof, ou para versões mais tropicais, lugares como Campos do Jordão, no estado de São Paulo.
O estado em que a tuberculose deixava os acometidos era até a descoberta do antibiótico uma sentença de morte. Muito poucos se recuperavam. E tinha aquela coisa da pele meio azulada e de cuspir sangue que, bizarramente, dava aos poetas um certo glamour. Tinha gente que era tuberculoso ostentação e declarava fazer arte de melhor qualidade por estar vivenciando a morte.
Isso era para quem podia. Talvez possamos dividir os doentes em três categorias: os ricos que podiam se dar ao luxo de bancar os sanatórios e ficar lá aguardando o desfecho feliz ou derradeiro; os artistas ricos ou não, que usavam a tuberculose até como inspiração; e a massa de pessoas pobres que eram trabalhadores em plena revolução industrial, submetidos a trabalhos com longuíssima jornada em lugares fechados e insalubres. As duas primeiras castas até se misturavam, a última nem tinha a opção de se afastar do que lhes fazia mal, quanto mais se isolar no friozinho de uma montanha. Foi entre os trabalhadores que a tuberculose fez o maior strike e não tinha nada a ver com melancolia ou genialidade artística.
Uma listinha de tuberculosos famosos: Edgar Allan Poe; Honoré de Balzac; Emily e Anne Brontë; Molière; Voltaire; Castro Alves; Frederic Chopin; Noel Rosa; Goethe; Sarah Bernhardt; Florence Nightingale, Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo; Manuel Bandeira…
“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos, /
A vida inteira que poderia ter sido e não foi. /
Tosse, tosse, tosse. /
Mandou chamar o médico. /
Diga trinta e três. /
Trinta e três… trinta e três… trinta e três… /
Respire /
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo /
e o pulmão direito infiltrado. /
Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax? /
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”
Manuel Bandeira. Pneumotórax.

Augusto dos Anjos
Falar somente uma linguagem rouca, /
Um português cansado e incompreensível, /
Vomitar o pulmão na noite horrível /
Em que se deita sangue pela boca! /
Expulsar aos bocados, a existência /
Numa bacia autômata de barro /
Alucinado, vendo em cada escarro /
O retrato da própria consciência…
Augusto dos Anjos. Os Doentes.
E por aí vai…. muitas poesias lindas e agoniantes escritas em homenagem à “peste branca”.
O próprio Thomas Mann teve a ideia para A Montanha Mágica, no ano de 1910, ao deixar sua esposa, Katharina Mann, em um desses sanatórios ilustres de Davos. Felizmente, para ela veio a recuperação e essa senhora viveu 97 anos.
Na ficção ainda citamos dois exemplos de personagens com tuberculose bastante marcantes. Comecemos por Nikolai Dmitrievich Levin, o irmão problema de Konstantin Dimitrievich Lievin, da obra Anna Kariêninia de Liev Tolstói.
Nikolai era um personagem lado B, era alcoolista e o encontro dos irmãos no fim da vida de Nikolai deixará profundas marcas e pensamentos filosóficos na cabeça de Lievin.
O livro não menciona tuberculose, eu é que acho que era, por causa dos sintomas no leito de morte. A febre, tosse, dificuldade de respirar e a hemoptise, por exemplo.
Queria saber mais sobre esse personagem. Tolstoi devia ter feito um spin off para ele.
Um personagem com pensamentos políticos e sobre a organização social russa divergentes dos irmãos Konstantin e Sergei. Vai ser peça fundamental para aumentar as caraminholas na cabeça já inquieta do irmão.
Junto ao leito de morte de Nokolai estarão o irmão Konstantin Lievin, é claro, e sua companheira, a ex-prostituta Maria Nikolaievna.
São cenas muito tocantes os momentos finais desse personagem.
Lembro que Anna Kariênina foi publicado em 1877, quando ainda nem mesmo se sabiam as causas da tuberculose.
Uma mulher agora. Essa uma artista na Paris do final do século XIX: Satine, do musical Moulin Rouge.
Estamos no auge da glamourização da doença dos artistas. É Paris durante a Belle Époque, entre 1870 e o início da primeira Guerra Mundial, um período que consagrou aquela cidade como a capital da cultura mundial (veja que coincide com o período abarcado em A Montanha Mágica).
O Moulin Rouge era um importante cabaré da cidade, em um tempo que Paris atraía poetas, romancistas, músicos, pintores, desenhistas, escultores…. artistas de todos os tipos e de todas as partes. E Satine (Nicole Kidman) era a principal vedete do Moulin Rouge.
Tudo ia razoavelmente bem na vida daquela estrela parisiense até que… aparece um poeta bonitão, pobre, mas ágil nas palavras e romântico incurável, precisando se apaixonar para dar força a sua arte. É uma paixão fulminante. Satine e Christian (Ewan McGregor) vão passar por uns bons bocados em nome do amor e da liberdade dela.
Para saber de que liberdade estamos falando, vai ter que ver o filme. É um dos mais lindos musicais de todos os tempos na minha modesta opinião.
Um único e comedido spoiler para ficar coeso com a nossa conversa aqui: Satine vai ser agraciada com o Bacilo de Koch e essa peste será responsável por uma lindíssima cena, como tudo nessa obra.
Deixo-lhes com a música A Montanha Mágica, da Legião Urbana, inspirada pelo livro de Thomas Mann e pela temporada do compositor Renato Russo em uma clínica para desintoxicação de um vício em Heroína.
MANN, Thomas. A montanha Mágica. Tradução: CARO, Herbert. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução: FIGUEIREDO, Rubens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LUHRMANN, Baz. Moulin Rouge. Austrália & EUA: 20th Century Fox, 2001.
22/05/2023 at 15:07
Olá, apesar da pausa, vc não perdeu a mão! Ótima visita a Montanha Mágica! Deixo aqui a dica do belíssimo filme (desculpe o pleonasmo) dw Hayao Miyazaki “Vidas ao vento”, a Montanha Mágica está todinha lá!
29/05/2023 at 14:40
Obrigada! Pelo comentário e pela dica de filme. Assistirei com certeza. Miyazaki é sempre bom! =)