
Capa de Sidarta
“— As coisas passaram-se exatamente como eu pensara. O rio falou contigo. É teu amigo também. Dirige-se também a ti. Que bom que seja assim, que bom! Fica comigo Sidarta, meu companheiro! Em outros tempos tive uma mulher. Seu leito achava-se ao lado do meu. Mas faz muitos anos que ela faleceu. Há tempos vivo sozinho. Daqui em diante, tu viverás aqui comigo. Tem espaço e comida para nós dois.
— Eu te agradeço – respondeu Sidarta. — Eu te agradeço e aceito o convite. E também te fico grato, ó Vasudeva, por teres escutado tão bem o que te contei. São muito raros os homens que saibam escutar, e ainda não encontrei nenhum que dominasse essa arte com tamanha perfeição. Também neste ponto serei seu aprendiz.
— Hás de aprender isso – replicou Vasudeva -, porém não de mim. Quem me ensinou foi o rio e ele será teu mestre também. O rio sabe tudo e tudo podemos aprender com ele. Olha, há mais uma coisa que a água já te mostrou: que é bom descer, abaixar-se e procurar nas profundezas. O rico e nobre Sidarta converte-se num remador; o erudito brâmane Sidarta torna-se balseiro. Também isso te sugeriu o rio. O resto ele te ensinará ainda.”
HESSE, Hermann. Sidarta. p.100.
Sidarta é um livro pequeno e poderoso, escrito em 1922 por Hermann Hesse.
Nessa obra, Hesse conta a história do Brâmane Sidarta que deixa sua vida confortável em busca de iluminação, acompanhado de seu amigo Govinda.
Buda não é uma pessoa, mas um título. Buda é aquele que atinge a iluminação, o estado de espírito mais elevado, sábio e desprendido das vontades terrenas.
O personagem Sidarta realmente existiu, registros dão conta de seu nascimento em 563 a.C. e seu falecimento em 483 a.C. Seria ele um membro das castas mais altas da região da Índia, um príncipe, com acesso a estudos e conhecimento formal. Sidarta, enquanto viveu entre os Brâmanes, teria sido um ávido estudioso, mas quando entendeu que aquela condição já havia lhe dado tudo o que podia absorver em termos de conhecimento, partiu de seu lar em busca do que o levasse ao Nirvana, o estado mais elevado da alma.
Na caminhada rumo à iluminação, Sidarta vai passar por várias situações e viver entre homens e mulheres das mais variadas condições financeiras e profissões. Mesmo tendo recebido conselhos de seu pai e dos demais personagens com quem conviveu, especialmente depois de ter conhecido o primeiro Buda, ele fez o seu próprio caminho, aprendendo com experiências e erros.
Um dos maiores aprendizados de Sidarta é quando ele entende o Samsara, quando identifica que foi enredado por um ciclo vicioso da vida mundana sem sentido profundo e compreende a necessidade de romper repetição das buscas terrenas por satisfação material a fim de prosseguir rumo ao seu objetivo. Paralelamente, ele entende a importância de ter passado por aquela fase e de ter experienciado os mais diversos confortos e prazeres mundanos para que sua formação chegasse àquele nível de percepção.
Posteriormente, após se livrar do Samsara, Sidarta vira aprendiz de um balseiro e é junto desse homem simples que obtém importantes ferramentas para finalizar seu propósito de atingir a sabedoria.
O conhecimento formal, somado à capacidade de jejuar e esperar aprendida dos Samanas, a fase dos prazeres materiais e o tempo de convívio com o balseiro foram acumulando experiências para que a derradeira lição o conduzisse ao fim de sua estrada, que foi a capacidade de compreender que não poderia ensinar tudo a seu filho.
A recapitulação de toda a bagagem de vida o fez compreender que cada um só pode atingir a iluminação por si só. É claro que a busca e o esforço são importantes, mas a iluminação não pode ser ensinada, os conselhos pouco valem. É preciso viver de forma atenta para conseguir conhecimento, experiência de vida, capacidade de desapego e amor pelas demais criaturas.
É um livrinho lindo demais. Com uma mensagem poderosa.
Pretendo lê-lo muitas outras vezes, até porque algumas das lições serão muito úteis não só para mim quanto para os que me rodeiam. Na verdade, essa obra despertou a curiosidade de estudar mais o budismo, que já figura entre meus interesses há um tempo, mas nunca houve estudo sistemático. Quem sabe agora com esse incentivo?
O que se leva para a vida? Não adianta esperar que os demais aprendam pelo seu exemplo ou que não cometam erros porque leram como se portar em livros ou foram doutrinados em algum seguimento religioso. Os humanos só aprendem vivendo, tropeçando, se levantando e analisando o que foi apreendido de determinadas experiências particulares.
Você pode aconselhar um filho adolescente, por exemplo. Aliás, é dever dos pais fazê-lo. Mas, saiba que não conseguirá evitar que eles deem cabeçadas e nem é prudente criar a expectativa de que que eles vão te escutar todas as vezes. Nossos filhos são indivíduos que se esfolarão mundo a fora e eventualmente podem nos dar razão. Descobrirão quem são e onde querem chegar por suas próprias pernas.
Perceber e aceitar o momento de vida, a individualidade, os limites e as necessidades dos outros (sejam filhos, amigos, companheiros de trabalho) é um ato de amor.
Esse ensinamento não só alivia a carga que tendemos a colocar sobre aqueles a quem amamos, como alivia também a carga que colocamos sobre nossos próprios ombros, uma vez que entendemos não ser nossa responsabilidade as cabeçadas de outras pessoas, por mais que as amemos.
Também ficou muito forte a mensagem de que está tudo bem errar, todo mundo erra e o erro leva a algum lugar mais elevado do que o que ocupávamos antes de tentar.
Bonito demais, recomendado sem distinção. Imprescindível. Nada piegas, a despeito do que esse humilde texto possa fazer parecer.
Pense em uma das histórias mais lindas da humanidade contada por um laureado pelo Nobel de literatura. É isso que encontramos em Sidarta!
Pôster do podcast Mano a Mano apresentado por Mano Brown.
Coincidentemente (ou não) ouvi essa semana o podcast do Mano Brown em que ele entrevista a jornalista Gloria Maria. Não estou aqui dizendo que nenhum dos dois é um ser iluminado. Mas sem dúvida, só por estarem vivos nesse planeta, estão em sua caminhada pela iluminação.
Queria ler uma autobiografia da Gloria Maria, a história de vida dela é muito interessante. Claro que essa impressão também se deve aos anos de trabalho dessa mulher extraordinária como jornalista que aprimorou por anos a técnica de contar histórias. Também há que se elogiar a capacidade do Mano Brown e desse programa de entrevistas sensacional.
Já recomendei o Mano a Mano no Instagram do Livros & Outros, por ocasião do dia da Consciência Negra. Não ouvi todas as entrevistas, mas ouvi muitas e gostei particularmente das que foram feitas com o Lula, Fernando Holiday, Taís Araújo e Lázaro Ramos e agora Glória Maria.
Como a história de Glória Maria, uma jornalista, preta, brasileira, super-reconhecida em sua carreira de anos pode ter a ver com a vida de Sidarta Gautama?

Mano Brown e Glória Maria
Primeiro pela conversa dela podemos notar a influência do budismo. Em um dado momento ela chega a afirmar que inicia seus dias sempre ouvindo mantras budistas.
É uma pessoa que ralou muito para chegar onde chegou assim como todo ser vivente rala. Nesse ponto a caminhada dela difere da de Sidarta que fez sua trajetória por opções, pois a vida sempre lhe deu opções. Ele quando quis sair do palácio em que vivia para andar com os Samanas, foi lá e o fez, da mesma forma largou os Samanas para procurar o Buda, largou o Buda para se lançar aos prazeres mundanos, largou os prazeres mundanos para ser andarilho solitário…. e assim vai até que se torna ele mesmo um Buda.
No caso da jornalista ela vem de família unida, mas bastante pobre. E a vida a foi levando pela mão, sem que ela deixasse escapar as oportunidades, ela dá a entender que aproveitou da melhor forma as portas que a vida descortinava, até porque do início da vida até o início de carreira ela não tinha ainda afiada a percepção de onde ou como procurar progredir.
Outra coisa que fica muito forte da conversa da Gloria Maria, e que aqui sim se assemelha á Sidarta, é a dedicação com a qual mergulhou nas tais portas descortinadas. A importância das viagens, pois ela conhece todos os estados brasileiros e 160 países, tendo feito trabalho voluntário dentro e fora do Brasil.
O trabalho voluntário inclusive deu a ela as filhas adotadas depois de um tempo ajudando crianças na Bahia.
Amadurecimento. É a palavra para designar a história de vida bacanérrima de Glória Maria. Vê-se que ela está anos luz à minha frente no entendimento dos ciclos da vida e do que realmente importa.
Pode até ser balela, mas ela deu uma explicação tão poética para o fato de que ninguém tem nada que querer saber sua idade e sobre porque ela não gosta de falar disso, que quase comecei a escamotear a minha também.
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Cartaz do filme Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera
Por fim, recomendo o filme budista Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera. É um tanto lento, com imagens estonteantes e trata do Samsara sob uma outra perspectiva.
No livro de Hermann Hesse, o Samsara é o ciclo vicioso, é tratado como sendo algo que é preciso romper, para buscar a paz de espírito. O filme trata o Samsara como o ciclo da vida. Não é ruim e não é bom, é apenas o ciclo de aprendizado que todo ser humano realiza e que desde que o mundo é mundo acontece de novo e de novo a cada nova geração.
Os personagens principais são um monge e seu aprendiz, que no início tem cerca de 7 anos de idade e acompanhamos a relação dos dois até que o aprendiz se torne mestre. Impressionante a forma com que o mestre observa o garoto e dá a ele as lições que entende que ele precisa. Igualmente impressionante é a resignação do mestre quando o garoto trilha seu próprio caminho em uma busca solo. A sabedoria atingida, os anos de prática tornaram aquele homem mais velho um sábio, que não se desespera pelas escolhas de seu discípulo quando percebe que aquele caminho o trará sofrimento. Pode ser encontrado no serviço de streaming “A La Carte” ou no Youtube. É lindo!
Lindo é a palavra que descreve as três histórias citadas aqui. Não há outra com maior capacidade de síntese para essas buscas, sejam as ficcionais ou a real, estejam as trajetórias concluídas ou ainda na busca.
HESSE, Hermann. Sidarta. Tradução: CARO, Herbert. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2016.
KI-DUK, Kim. Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera. Coreia do Sul & Alemanha: Pandora filmes, 2003.
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