Não sei quanto tempo fiquei assim, entorpecido, com a alucinação da festa de Mobile. Só sei que de repente dei um salto na balsa e estava entardecendo. Vi, então, a cinco metros da balsa, uma enorme tartaruga amarela de cabeça rajada; seus olhos, fixos e inexpressivos como duas gigantescas bolas de vidro, olhavam-me incrivelmente. No princípio pensei que era outra alucinação e me sentei na balsa, aterrorizado. O monstruoso animal, que media uns quatro metros da cabeça ao rabo, mergulhou quando viu que eu me mexia, deixando à tona um rastro de espuma. Não sabia se era realidade ou fantasia. E ainda não me
atrevo a dizer se era realidade ou fantasia, embora, durante breves minutos, eu tenha visto nadar aquela gigantesca tartaruga amarela à frente da balsa, levando fora da água a sua incrível e pintada cabeça de pesadelo. Só sei que realidade ou fantasia – bastaria ter tocado na balsa para que esta tivesse virado várias vezes sobre si mesma.

A tremenda visão me fez sentir medo de novo. Mas nesse instante o medo me reconfortou. Agarrei o pedaço de remo, sentei-me na balsa e me preparei para a luta, com esse monstro ou com qualquer outro que tentasse virar a balsa. Logo seriam cinco horas. Pontuais, como sempre, os tubarões estavam saindo do fundo do mar para a superfície.

Olhei para o lado da balsa onde anotava os dias e contei oito riscos. Mas me lembrei de que não tinha anotado o daquele dia. Marquei-o com as chaves, convencido de que  seria o último, e senti desespero e raiva ante a certeza de que era mais difícil morrer que continuar vivendo. Nessa manhã tinha decidido entre a vida e a morte. Escolhera a morte, e, entretanto, continuava vivo, com o pedaço de remo na mão, disposto a continuar lutando pela vida. A continuar lutando pela única coisa que já não me importava mais.

Gabriel García Márquez, Relato de um Náufrago.

Lá vem ela com outro Gabo?

Sim. Vim.

Relato de un náufrago', 50 años de un hito del periodismo

Luís Alejandro Velasco

Esse é não ficção. Foi escrito em 1955, pelo então jornalista, Gabriel García Márquez, a partir do relato do oficial da marinha colombiana Luís Alexandre Velasco.

Ah então é uma história de um navio naufragado e seu único sobrevivente à deriva no mar? Não exatamente. O navio seguiu viagem e deixou os oficiais que foram lançados ao mar para trás.

Em 1955, ao retornar dos Estados Unidos, o destroier Caldas da Marinha da Colômbia teria sido atingido por uma tempestade que teria lançado alguns oficiais ao mar. Destes, apenas um conseguiu subir em uma balsa, os demais morreram pouco depois da queda.

Esse homem ficou à deriva sem comida nem água doce por dez intermináveis dias.

Quando apareceu severamente debilitado em uma praia colombiana e foi finalmente resgatado, Luís foi alçado à categoria de herói e teve a narrativa de seu martírio controlada pelo governo.

À época a Colômbia era governada pelo General Gustavo Rojas Pinilla, que assumiu o poder depois de um golpe de Estado e governou de 1953 a 1957.

Então a história do Caldas e do Luís Alexandre Velasco estava dada e era sólida… pero no mucho. Quando saiu do hospital e pode usufruir de certa independência em relação aos militares, Luís Velasco procurou o jornal El Espectador para contar uma nova versão. O problema é que essa versão era diferente da outra em pontos cruciais, ali bem naquela parte dos motivos pelos quais marinheiros foram lançados ao mar.

Dispensável dizer que é um relato muito bem escrito e detalhado.

Nesse livro, lançado em 1970, que aqui no Brasil sai pela editora Record e tem apenas 143 páginas, está compilada a matéria que foi publicada em 14 partes e mais um capítulo introdutório em que Gabo explica a origem daquele relato.

Veja esse trecho que está bem no início do livro:

 

“quando pedi a Luís Alexandre que me descrevesse a tormenta que ocasionou o desastre. Consciente de que sua declaração valia seu peso em ouro, respondeu-me com um sorriso: “Mas não havia tormenta.” E assim foi: os serviços meteorológicos nos confirmaram que aquele tinha sido mais um dos fevereiros mansos e diáfanos do Caribe. A verdade, nunca publicada até então, era que o navio adernou por causa do vento no mar agitado, soltou-se a carga mal estivada na coberta e os oito marinheiros caíram ao mar. Essa revelação implicava grandes erros(…)”

 

Gabriel García Márquez transformava qualquer chatice em escrita fascinante - 31/07/2020 - Ilustrada - Folha

Gabriel García Márquez, jovem jornalista

E aí vamos saber de partes da vida do Luís Alexandre nos oito meses em que serviu à Colômbia na cidade de Mobile nos Estados Unidos e como viviam os outros companheiros dele, a viagem de retorno do destroier até o incidente que vitimou oito tripulantes dos quais só um sobreviveu, dos motivos para a embarcação não ter retornado para buscar aqueles homens e a parte mais linda: o relato minucioso do tempo em que nosso herói sobreviveu no mar.

Que carga mal acondicionada era essa que causou tanto transtorno a oito famílias colombianas? Eram os produtos baratos e de qualidade que os marinheiros compraram e trouxeram a bordo para suas famílias.

Não era só mal acondicionada era também pesada, desequilibrou o destroier durante a ventania. E sabe o que mais? Não pode ter carga desse tipo em destroiers. É ilegal.

Começamos então o nosso papo sobre produtos de qualidade a partir daí, da carga assassina, que era composta de geladeiras, máquinas de lavar roupas, estufas e outros equipamentos pesados.

Agora o dólar anda pouco convidativo, mas é um clássico da viagem à América do Norte brasileiros voltando com malas e mais malas e caixas e mais caixas de produtos adquiridos nos Estados Unidos. Eu mesma quando tive a oportunidade fiz umas comprinhas. Não foram geladeiras nem outro eletrodoméstico, entretanto posso dizer que comprei mais naqueles poucos dias do que em qualquer outra viagem na vida.

O moço da minha frente na fila da alfandega, sim, tinha uma caixa que parecia de lava-roupas e mais trocentas malas.

Não sei se os produtos que Luís Alexandre usou foram adquiridos nos EUA ou se ele já os tinha antes de embarcar no Caldas. Esse homem ganhou bastante dinheiro com publicidade depois que se tornou o náufrago mais famoso da Colômbia.

Em seus relatos, tanto os controlados pelo governo quanto o do El Espectador, Luís narrou que manteve algum controle sobre o tempo riscando os dias em uma das bordas da balsa e olhando no relógio que não parou um minuto sequer, mesmo depois de ter ficado sob a água turbulenta, mesmo tomando muito sol.

Outras coisas que não foram de grande ajuda quando à deriva, mas que fizeram seus fabricantes surfar na onda do reaparecimento do marinheiro foram o sapato e o cinto de couro.

No desespero da fome, Luís tentou, sem sucesso, descolar o couro do solado e arrancar partes para mastigar e dar serviço a seu trato digestivo. O mesmo aconteceu com o cinto que lhe prendia as calças.

Logo os fabricantes do relógio, do sapato e do cinto ofereceram dinheiro ao náufrago para participar de campanhas publicitárias atestando a qualidade de seus produtos.

No caso de Luís Alexandre Velasco realmente os produtos eram de boa qualidade e o dinheiro que ganhou com a publicidade pós deriva estava livre de questionamentos pelo público consumidor.

O que não é o mesmo caso de alguns produtos e comerciais brasileiros.

Em 2011, a cantora Sandy foi escalada para fazer o comentário da cerveja Devassa. Qual era a graça ali? Era que Sandy desde a adolescência era considerada uma mocinha perfeita, recatada, quase uma noviça, então seria muito interessante que ela protagonizasse peças publicitárias de uma cerveja com aquele nome: Devassa.

A campanha foi um sucesso. Todo mundo comentava a Sandy devassa e isso impulsionou as vendas da bebida.

Naquele burburinho, Sandy deu uma entrevista para a Folha de São Paulo em que confirmou que não gosta de cerveja e que por ela estava tudo bem ligar seu nome à marca e que nem todos os artistas que fazem esse tipo de trabalho usam os produtos que anunciam. E aí a moça jogou alguns colegas aos leões e disparou:

 

“Cerveja realmente não é minha bebida preferida. O que não gosto na cerveja é do gosto amargo. Eu gosto de bebida doce, vinho etc. Mas isso não tem problema. Ou todo mundo acha que a Xuxa usa Monange e que o Luciano Huck e a Angélica usam Niely Gold?”

 

Para pessoas com discernimento, essa treta de os artistas usarem ou não os produtos que anunciam foi zero surpresa e não mudou nada em seus padrões de consumo. Entretanto, parece que não é assim para todo mundo.

Rapidamente os famosos citados vieram a público afirmar que usavam sim os produtos que levam aqueles rostinhos estampados em suas propagandas. Sandy deixou de ser a garota propaganda da Devassa depois dessa campanha.

Voltando ao mar, a história verídica de Luís Alexandre Velasco, na parte em que fica perdido no mar lembra muito o livro de Ernest Hemingway O Velho e o Mar.

O velho em questão não estava à deriva, ele podia ter voltado para a terra firme quando bem entendesse. Esse senhor ficou no mar por sua obstinação em capturar um peixe grande o suficiente para provar que ele ainda era um pescador de respeito. Acontece que isso rendeu maus bocados em alto mar.

Também lembra bastante o filme, já comentado aqui, As Aventuras de Pi. Nesse caso sim a ficção produziu um náufrago, um adolescente que sobrevive a muitos dias à deriva na companhia de um tigre. Como?

Piscine (esse é o nome do infeliz) é um rapaz indiano cujos pais são proprietários de um zoológico. A família precisa mudar para o Canadá e recomeçar a vida. Decidem então que o melhor a se fazer é levar os animais do zoológico para serem vendidos na América e com o dinheiro das vendas se reorganizarem no novo país.

Acontece que no meio do caminho, em pleno oceano, o navio naufraga. Todos os humanos a bordo morreram menos Piscine Patel ou Pi, que era o codinome pelo qual ele preferia ser chamado.

Os outros sobreviventes foram: uma orangotango, uma hiena, uma zebra e o tigre, chamado Richard Parker. Em pouco tempo sobrarão nesse barquinho somente Pi e Richard Parker para enfrentar o oceano pacífico.

Esse filme tem uma das fotografias mais lindas de todos os tempos no cinema, tendo ganhado o Oscar nessa categoria. Ganhou também os de efeitos visuais, trilha sonora, e direção. Além do Oscar, A Vida de Pi saiu arrebatando prêmios por todos os festivais mundo a fora.

Para fechar, já que o assunto desse espaço são os livros e que estamos aqui discutindo náufragos, gostaria de contar brevemente as histórias de Dougal Robertson e Steven Callahan.

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Primeiro Robertson. Ele era um apaixonado pelo mar que vivia embarcado no navio SS Sagaing com a mulher e o filho, lá na década de 1940. Recordamos que nesse período o mundo experienciava a Segunda Guerra Mundial.

Em 1942, o SS Sagaing foi atacado pela Marinha Imperial Japonesa e Dougal perdeu a esposa e o filho. O trauma o afastou do mar por trinta anos. Até que casado novamente e pai de mais quatro filhos, decidiu embarcar com a esposa, três filhos e um amigo em uma escuna para desbravar o oceano.

Dougal Robertson - Alchetron, The Free Social Encyclopedia

Resgate dos Robertson 1972

Nossa que forte história de redenção e amor pelo mar… Quase.

Essa escuna sofreu avarias em um encontro com baleias e naufragou em 15 de junho de 1972, deixando seus tripulantes em um bote salva-vidas por incríveis trinta e oito dias à deriva.

Depois dessa experiência Dougal Robertson escreveu os livros Survive The Savage Sea e Sea Survival: A Manual.

E Steven Callahan? Esse experiente navegador, construía suas próprias embarcações e já tinha algum reconhecimento naquele universo.

Steven Callahan

Em uma de suas aventuras ele construiu um barco a velas e partiu para desbravar o oceano, saindo dos EUA rumo à Inglaterra. Já na costa europeia, mais precisamente ali pelo mar da Espanha, durante uma tempestade, que levou o barco para longe da costa, a embarcação sofreu uma avaria e naufragou. Steven sobreviveu setenta e seis dias em um bote salva-vidas.

Esse rapaz teve o auxílio de alguns itens que foram fundamentais para sua sobrevivência como kit sobrevivência, saco de dormir, arpão, purificador de água e, principalmente, um livro. Sabe qual? Sea Survival: A Manual.  Callahan era fã de Dougal Robertson e o manual escrito por aquele naufrago foi fundamental para a sobrevivência do outro.

 

MÁRQUEZ, Gabriel García. Relato de um Náufrago. Rio de Janeiro: Record, 46a edição, 2023.

HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

LEE, Ang. As aventuras de Pi. EUA, 20th Century Fox, 2011.