
Capa de Olhai os Lírios do Campo.
“- Pode rir – disse ele a Altamira. – Enquanto você e os outros fumam tranquilamente os seus charutos – (fez um sinal na direção de Sintra e Filipe) – os judeus vão minando o nosso edifício social, preparando a queda da nossa civilização. Têm nas mãos o cinema e a Imprensa. É uma vingança lenta e perversa, que eles vêm preparando há séculos.
Caminhando para a sua cadeira e olhando para Eugênio com ar humorístico, o pintor murmurou:
– Olhe… ele acredita também nessa lenda do protocolo dos sábios de Sião…
Sacudiu a cabeça, sorrindo, num gesto de quem acha estar diante de um caso perdido.
– Túlio Altamira – falou Eunice como se estivesse num teatro e aquela fosse a sua deixa. – Quer-me fazer um favor?
Pôs na sua voz doçura de namorada, entortou a cabeça de leve e, como o pintor ficasse imóvel, esperando o pedido, ela continuou:
– Diga-nos com franqueza: o que é que você pensa de tudo isso de todos esses ismos, ideais, aspectos do Mundo e o mais que segue…
Túlio Altamira depôs o charuto apagado no cinzeiro e disse simplesmente:
– Ninguém pode desviar o curso do rio da História, com o perdão do lugar comum…
– E então? – perguntou Eunice, exigindo uma conclusão.
O pintor encolheu os ombros.
– Sou um simples pinta-monos e não um profeta, minha prezada senhora.
Castanho levantou-se num gesto de impaciência, olhou firme para o pintor e falou:
– Pois eu vou dizer-lhe corajosamente o que penso, doa a quem doer. Acredito na nobreza de nascimento, na nobreza de sentimentos, bem como na cultura, no estoicismo e nas virtudes cavalheirescas.
– Palavras… – murmurou Altamira, tratando de reacender com deselegância o charuto. – Palavrinhas bonitas de quem nunca conheceu a miséria e a necessidade…”
VERÍSSIMO, Erico. Olhai os Lírios do Campo.
Que coisa mais linda é o livro Olhai os Lírios do Campo. Se tornou um dos meus preferidos em literatura nacional. É para chorar baldes, sentir raiva, sentir amor, se reconhecer, tirar lições para a vida… enfim, lindíssimo!
E sabe quem discorda dessa opinião favorável sobre Olhai os Lírios do Campo? Érico Veríssimo.
Vocês não leram errado. Érico Veríssimo, com o tempo, desgostou-se do que talvez tenha sido sua obra mais vendida, mais que O Tempo e o Vento (não estamos considerando fragmentos de O Tempo e o Vento que, não raro, fazem parte de leitura obrigatória de vestibulares como Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo).
E tome paradoxo: concordo com ele e discordo ao mesmo tempo.
Olhai os Lírios do Campo se tornou um queridinho meu. É um romance de formação, contado em flashback na primeira metade e em tempo linear na segunda. Tudo narrado em terceira pessoa.
O nome do livro se deve a uma passagem do Sermão da Montanha – Mateus, capítulo 6, versículos 25 a 33 – quando Jesus diz :
“Por isso, vos digo: não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo, mais do que a vestimenta? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, porque andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pequena fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos? (Porque todas essas coisas os gentios procuram.) Decerto, vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas essas coisas; Mas buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.”

Eugênio (Cláudio Marzo) e Olívia (Nívea Maria) em cena da novela Olhai os Lírios do Campo. Rede Globo, 1980.
O livro todo é a jornada de autoconhecimento do médico cirurgião Eugênio e Os lírios do campo aparecem como referência em uma das cartas que sua melhor amiga, Olívia, escreveu para que ele lesse depois que ela tivesse morrido. A ideia da carta era dizer a Eugênio que ela vinha observando seus esforços para se tornar rico e dar um conselho para que parasse de correr atrás do enriquecimento e cuidasse de observar a beleza da vida, posto que Deus provém aos lírios do campo com alimento e bela roupagem e eles nada têm que fazer para tanto. A carta esclarece que não se trata apologia ao comportamento da cigarra na fábula A Cigarra e a Formiga. Olívia escreve que é necessário trabalhar e se esforçar, o que ela prega é que não demos importância ao lavoro excessivo, por que acumular riquezas não deveria ser o maior objetivo de nossas vidas. Seria preciso olhar para os lírios do campo a fim de aprender com eles a viver com o que precisa, não perdendo tempo com frivolidades enquanto a vida se esvai.
A primeira parte se passa no taxi que leva Eugênio para o hospital em que sua melhor amiga, talvez única até aquele episódio, morria. No caminho ele vai rememorando sua vida desde a infância pobre, passando pelo Columbia College, escola destinada a descendentes de ingleses na qual ele foi bolsista porque sua mãe lavava as roupas de cama da instituição. Depois ele lembra da faculdade de medicina, o casamento com a abastada Eunice, a filha pequena, a relação com o irmão e os pais… tudo pormenorizado e penoso.
Ele era uma pessoa amarga, infeliz e com profundos sentimentos de inadequação e de inferioridade por sua condição financeira e social. Esses sentimentos negativos conduziram as decisões e buscas de Eugênio até a vida adulta, fazendo com que tomasse muitos rumos que depois voltaria desfazendo.
A segunda parte é justamente o desfazimento ou o recomeço. É bem mais filosofada e fecha lindamente a história do médico cirurgião Eugênio e sua amiga Olívia.
Olívia é o que Erico Veríssimo menos gostava nesse livro. Considerava uma personagem boazinha demais, perfeita demais como ninguém no mundo seria.

Capa do LP da trilha sonora de Olhai os Lírios do Campo. Gravadora
Som Livre, 1980.
E é isso mesmo. Olívia é uma pessoa incapaz de maus julgamentos, sem expectativas sobre as outras pessoas, capaz de se doar inteira sem guardar mágoas ou mesmo reagir com ira quando situações que tirariam humanos ordinários do sério acontecem com ela.
O próprio livro dá uma explicação para ela ter atingido esse estado de perfeição ao mesmo tempo que não dá. Explico. Nas cartas que Olívia escreve a Eugênio ela menciona que teve uma vida duríssima, mas que não daria detalhes a ele, posto que em suas conversas ele nunca perguntou sobre seu passado.
Eugênio pensava ser invasivo fazer perguntas a ela sobre sua vida pessoal. Outro entendimento possível, para o desinteresse dele, é que tinha um outro defeito sério: o narcisismo, que o impediu de conversar com profundidade com Olívia sobre a vida dela, por estar muito absorto em suas próprias aspirações.
Noutra possível perspectiva, Olívia não seria um personagem para parecer real, mas para agir como uma espécie de voz da consciência de Eugênio. Como elemento propositor de reflexões. E isso ela fez belissimamente.
Meu amor instantâneo por Olívia ainda se justifica por ser esse o nome da minha filha. Esse tópico não precisa ser desenvolvido. É autoexplicativo.
Um personagem secundário, porém marcante, é Simão. Simão era namorado de Dora a filha de um empreiteiro megalomaníaco que só pensava em seu prédio gigantesco que seria encravado no centro de Porto Alegre, até então sem prédios como aquele. O edifício chamado Megatério teria 30 andares.
Esse homem rico era extremamente preconceituoso e jamais permitiria que a filha, Dora, se casasse com Simão: um judeu, ainda por cima pobre.
Em um momento duro, Eugênio é chamado à casa de Simão para dar uma olhada em sua mãe moribunda e ouve a história de tristeza daquela família. O discurso de Simão é bastante amargurado e raivoso e as razões para ser ele esse rapaz jovem e desesperançoso estão desde a partida de seus pais da Europa até tudo o que ele próprio passou por ser judeu.
Essa passagem que trata do antissemitismo lembrou uma história fictícia e outra real. Importa dizer que mesmo a ficcional se inspirou em fatos reais.
Comecemos pela mais leve delas.
Quando Simão narra que por serem judeus não podiam ter terras ao imigrarem para o Brasil, restando a eles o empreendedorismo, muitas vezes informal. Se viravam como puderam.
Simão problematiza a fama de os judeus serem negociantes implacáveis e bem sucedidos (aqui esse bom sucedimento tem um tom pejorativo), dizendo que seus pais prefeririam ter sido agricultores, mas como outros milhares de judeus foram forçados a se tornarem comerciantes. Os cristãos os acusavam de ter ocupado nichos do mercado de serviços que poderiam ser deles, quando na verdade esses imigrantes se ocuparam desses trabalhos por ser o que restou. Como em qualquer trabalho a pessoa que o exerce pretende tirar seu sustento dali. Os judeus comerciantes se esmeraram em progredir no ofício que se propuseram a executar. Ou seja, a falácia do negociante judeu inescrupuloso, com o dom extraordinário de fazer fortuna nos negócios não passa de antissemitismo.
O trabalho do pai de Simão quando chegou ao Brasil era vender gravatas. Assim como era o trabalho do pai de Mardoqueu Stern em Um Sonho no Caroço de Abacate, de Moacyr Scliar.

capa de Um Sonho no Caroço de Abacate
Em Um Sonho no Caroço de Abacate, uma família judia fugindo de Hitler, vem morar no Brasil sem saber uma palavra em português. Nunca enriqueceram, começaram com o pai vendendo gravatas na porta dos bancos ou dos teatros, onde homens desavisados chegavam sem a vestimenta adequada.
Esse livro conta a história de um rapaz que sofreu muito preconceito por ser judeu, também em Porto Alegre, principalmente no colégio católico em que era bolsista. Esse rapaz que se chamava Mardoqueu Stern acaba se unindo a um colega preto de classe média alta. O livro diz que a presença daqueles dois no colégio, um bolsista e um pagante, se devia à ideia de um dos padres que lá trabalhavam de aumentar a diversidade nas salas de aula. Acontece que um judeu e um preto acabaram sendo os excluídos naquela massa de adolescentes brancos católicos.

Pôster de Caminho dos Sonhos
Um Sonho no Caroço de Abacate foi adaptado para o cinema, em 1998, tendo como elenco Talia Shire, Elliott Gould, Taís Araújo, Edward Boggiss, Antonio Abujamra, Mariana Ximenes, Jair Rodrigues, Jairzinho, entre outros. Ainda não vi. Achei esse trailer enquanto procurava a imagem da capa do livro para colocar aqui. O filme parece ter cenas em inglês e outras em português. Encontrei referências a ele com dois nomes: Um Sonho no Caroço de Abacate e Caminho dos Sonhos. O trailer mostra trechos nas línguas portuguesa, inglesa e Iídiche. Ao que parece a crítica não curtiu. De qualquer forma, uma hora dessas assisto.
Ambos os livros têm mensagens de esperança. Mostram os sofrimentos e injustiças sofridas por preconceitos de classe, raça e religião, mas terminam com um tom de “pode ir que vai dar certo”.
Uma família judia real, que imigrou para o Brasil foi a de Clarice Lispector. Ela nasceu na Ucrânia e a família fugiu depois de ter sido vítima dos pogroms no início do século XX na Russia e na Ucrânia.
Pogroms eram ondas de violência desmedida que intimidavam, assassinavam, roubavam judeus. Para as mulheres, essas hordas eram particularmente danosas, dadas as altas doses de crueldade e aos estupros, às vezes coletivos.
Foi assim que a mãe de Simão perdeu um dos seios, na ficção, e também foi assim que a mãe de Clarice Lispector contraiu sífilis, na realidade.
No livro Clarice, Uma Biografia, sobre a vida de Clarice Lispector, escrito por Benjamin Moser, o autor relata que sendo Mania Lispector mãe de três meninas e vendo se aproximar da casa um bando de homens participantes de um pogrom, a mãe de Clarice saiu de casa se oferecendo em sacrifício para poupar as filhas. Toda violência teria sido testemunhada pelo marido de Mania Lispector. A edição de que disponho edição saiu pela finada Cosac Naify, esse mesmo material sai hoje pela editora Companhia das Letras.

Capa do livro Clarice,
Essa biografia é muito interessante primeiro porque é sobre Clarice Lispector, isso por si só já bastaria, e em segundo pela reconstituição da vida no Brasil entre 1922 e 1977, como pano de fundo para o desabrochar de uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos.
A família Lispector começou a vida brasileira em Maceió, assim como a família de Simão em Porto Alegre, vivendo de um comércio de poucos resultados, que apenas lhes provia o indispensável.
Depois os Lispector se mudam para Recife, onde viveram cerca de dez anos, até irem para o Rio de Janeiro em 1935.

Clarice Lispector
Além do panorama brasileiro, a vida de Clarice passou por uma fase em que a escritora, já reconhecida, morou fora do país por ser casada com um diplomata brasileiro. Então Benjamin Moser reconstrói essa fase da vida da escritora em que ela acumulou as funções de escrever e ser anfitriã nos jantares oferecidos para fins diplomáticos em sua casa. Esses eventos a consumiam de tal forma que podem ser considerados um trabalho. Também era bastante interessante a perspectiva de Clarice sobre a vida da esposa do diplomata, papel do qual ela parece não ter gostado muito.
O antissemitismo não é o tema central de Olhai os Lírios do Campo, até porque os personagens principais não são judeus, mas o preconceito é. O personagem Simão traz àquele caldo de preconceitos de credo, etnia e, sobretudo, social, um componente escancarado. Simão consegue colocar em palavras raivosas e concatenadas o ódio que Eugênio sentiu durante grande parte de sua vida sem conseguir exprimir. Eugênio passa muito tempo tentando ser “um deles”, ser como são os que lhe discriminaram, sem refletir sobre motivos ou conjunturas. Para que Eugênio tomasse consciência do que fazia e porque fazia aquilo com a própria vida, foi preciso que Olívia o obrigasse a refletir. A vida, por si só, não parece ter dado conta de despertá-lo apesar de toda a infelicidade em que se afundava a cada braçada.
VERÍSSIMO, Erico. Olhai os Lírios do Campo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SCLIAR, Moacyr. Um Sonho no Caroço de Abacate. São Paulo: Global Editora, 2014.
MOSER, Benjamin. Clarice, Uma Biografia. Titulo original: Why This World. Tradução: COUTO, José Geraldo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
AMBERG, Lucas. Um Sonho no Caroço de Abacate. Brasil: Amberg Filmes, 1999.
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