“Ouvi as pessoas falando. Saí pela porta e parei de ouvir, e fui até o portão, onde as meninas passavam com as sacolas de livros. Elas olhavam para mim, andando depressa, viradas para trás. Tentei dizer, mas elas seguiram em frente, e continuei seguindo junto a cerca, tentando dizer, e elas andaram mais depressa. Então elas estavam correndo e cheguei ao canto da cerca, olhando para elas e tentando dizer.
‘Ô Benjy.’ Disse T.P. ‘Que ideia é essa de sair assim de fininho, não sabe que a Dilsey vai te dar uma surra.’
‘Não adianta nada, ficar gemendo e chorando na cerca’ disse T.P. ‘você assustou as criança. Olha só, foi tudo pro outro lado da rua’”.
FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Pg 55.
Faulkner, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1949, escreveu esse livro, que hoje está entre os meus três livros preferidos.
Trata-se da história da decadência da família Compson, que vive em uma cidade fictícia chamada Jefferson, no sul dos Estados Unidos. Os Compson, que já gozaram de bastante dinheiro e propriedades, vão fazendo escolhas erradas, perdendo recursos, prestígio, saúde, lucidez e amor.
O Som e a Fúria é ambientado nos anos que vão de 1910 a 1928. A trajetória da família em si, não é muito complexa, embora recheada de dificuldades. O extraordinário fica por conta da escrita, do estilo de William Faulkner, que era um escritor do movimento modernista caracterizado pela quebra de paradigmas.
A contextualização será sem spoilers, porque esse livro merece ser lido e relido, assim meio no escuro.
O casal Caroline e Jason Compson tem quatro filhos, sendo três meninos (Quentin, Benjamin e Jason) e uma menina (Candace). Os quatro são muito diferentes entre si. Benjamin (Benjy), por sua condição cognitiva, é completamente dependente. Diz-se dele, em alguns momentos, que faz 3 anos de idade há 30 anos. Quentin é um garoto que vai bem na escola, é responsável e sensível. Jason, o mais novo dos quatro, é ambicioso, rancoroso, um tanto mal caráter. Candace é amorosa, muito ligada a Quentin e Benjamin, vive sua vida mais intensamente que os irmãos, é mais desapegada das convenções, pode-se dizer que é um espírito livre.
Durante a infância dos filhos viviam com os Compson a avó materna e o tio Maury. A avó, ao que parece, era a que dava mais carinho ao filho Jason. O tio Maury era considerado um fanfarrão encostado pelos Jasons (pai e filho) e era protegido por Caroline.
Caroline, por sua vez, tem a saúde muito debilitada, apesar de longeva passou quase o livro todo de cama. Jason, o pai, foi se tornando cada vez mais dependente de bebidas alcóolicas à medida que os problemas se avolumavam.
Muito conservadores, exceto Candace e Benjy, os Compson eram apegados ao seu passado de opulência e às aparências.

William Faulkner
há um outro núcleo familiar que são os empregados que serviam aos Compson. Os antepassados deles foram escravos dos Compson de antigamente. Essa família morava na propriedade dos patrões e era composta de 6 pessoas: Dilsey, Roskus e os seus filhos Frony, Versh, T.P. e Luster, apenas Frony era menina.
A narrativa é como um quebra-cabeça, uma investigação. O leitor tem que ir juntando as peças à medida que cada testemunha relata sua versão. E a escrita desses relatos é como se o autor tivesse jogado os parágrafos para o ar e depois juntado fora da ordem.
São quatro capítulos, cada um deles representa um dia na vida de um dos personagens. Os dois primeiros capítulos são narrados em um estilo denominado fluxo de consciência que consiste em adentrar a cabeça do personagem e viver aquele momento a partir dos pensamentos tal qual eles se apresentam. Isso significa que em um primeiro momento pode ser muito desafiador entender o que se passa e Faulkner caprichou no primeiro capítulo. A abertura da trama é narrada por Benjamim, indo e vindo em suas memórias, sem tempo linear, acompanha a organização do pensamento de um homem de 33 anos que raciocina como uma criança. As memórias de Benjy contidas naquelas páginas trazem um entendimento da infância e adolescência dele e dos irmãos, bem como do papel maternal que Candace ocupa em sua vida. É o capítulo mais completo sobre a história daquelas pessoas e, à primeira lida, é praticamente incompreensível.
O título se dá por dois motivos: a condição cognitiva do personagem Benjy, que não conseguia falar, mas emitia sons e ficava furioso quando não se fazia entender (não que faltasse fúria aos demais personagens) e a ligação com o seguinte trecho da peça Macbeth, de William Shakespeare:
“A nós tolos, todos esses ontens iluminaram o caminho para o pó da morte. Apaga, apaga, lume passageiro. A vida não é mais que uma sombra que vaga, um ator ruim que se pavoneia e se aflige quando chega sua vez sobre o palco e, depois, nada mais se ouve. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada.”
Voltando à estrutura de capítulos, os dois últimos são narrativas lineares, um em primeira e outro em terceira pessoa, sendo de fácil compreensão. O último amarra perfeitamente a história, contando um dia na vida de Dilsey.
O que mais chama atenção em O Som e a Fúria é a parte narrada em fluxo de consciência e dois filmes excelentes vieram à memória, justamente por serem contados usando esse recurso.

Cartaz do filme Amnésia, de Christopher Nolan.
O primeiro é Amnésia, ou Memento seu título original. Estrelado por Guy Pearce, foi indicado a três Oscars, incluindo roteiro original.
Esse filme é contado pela perspectiva de um homem cuja esposa foi estuprada e assassinada e ele quer matar o assassino. Acontece que esse homem, passa a sofrer de perda de memória, aliás ele não consegue criar novas memórias, devido à sequela deixada pela violência sofrida no mesmo episódio em que morreu a esposa. Ele vai, a cada dia, esquecendo o dia anterior, tentando encaixar as peças para descobrir de quem precisa se vingar. Para sistematizar a informação, passa a deixar lembretes para si mesmo tatuados no corpo. Esse homem atormentado é auxiliado por algumas pessoas ao longo do filme e a grande questão é: essas pessoas o estão ajudando ou estão usando seu desespero e falta de memória para eliminar seus próprios inimigos? Agoniante, inteligente, diferente.

Cartaz do filme Meu Pai de Florian Zeller.
O segundo é Meu Pai, que está concorrendo a 45 prêmios em festivais de cinema, sendo 5 deles ao Oscar 2021. Entre as indicações temos melhor filme, melhor roteiro adaptado, melhor ator para Anthony Hopkins e melhor atriz coadjuvante para Olivia Colman. É inspirado na peça francesa Le Père, escrita por Florian Zeller, que é também o diretor do filme.
Em Meu Pai, o espectador acompanha a vida de um homem em estado avançado de Alzheimer, a partir do modo como ele vê seus dias passarem. É complicado perceber o que é real e o que é a doença agindo. A sequência dos acontecimentos cheios de idas e vindas, lembranças e esquecimentos, lugares, questões familiares, o modo como ele encara os truques que lhe pregam sua própria cabeça. Assim como em O Som e a Fúria, ao final as pontas se amarram e é um filme muito bonito e delicado. Diferente de outros filmes sobre essa temática, justamente por estar tão enfronhado na mente do narrador.
Tem uma música da banda Titãs cuja poesia acompanha o pensamento do eu lírico: Flores. Uma das interpretações mais aceitas sobre a letra de Flores é que o personagem é um suicida dentro do caixão, refletindo sobre sua condição, também indo e voltando no tempo enquanto toma ciência do fato após sua morte: “Olhei até ficar cansado/ De ver os meus olhos no espelho/ Chorei por ter despedaçado/ As flores que estão no canteiro/ Os punhos e os pulsos cortados/ E o resto do meu corpo inteiro/Há flores cobrindo o telhado/ E embaixo do meu travesseiro/ Há flores por todos os lados/ Há flores em tudo que eu vejo”
Vai ser um pouco complicado compreender de primeira tanto os filmes citados quanto O Som e a Fúria. Sobre o livro, passar pelos dois primeiros capítulos será um desafio que, pode ter certeza, valerá a pena. Assim que termina o livro, dá vontade de recomeçar a leitura para refazer os elos e entender melhor onde, quando e com quem tudo aconteceu. Meu exemplar jamais sairá da estante, porque a cada leitura, faz-se a luz e outros detalhes da trama são desvelados. A segunda leitura é ainda mais fascinante. Provavelmente, a terceira será melhor ainda.
FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Tradução: BRITTO, Paulo Henriques. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ZELLER, Florian. Meu Pai. Inglaterra e França: Califórnia Filmes, 2020.
NOLAN, Christopher. Amnésia. EUA: New Market, 2001.
6 Pingbacks