“É indispensável acrescentar que, às primeiras palavras, o estrangeiro povocou no poeta uma impressão de repulsa, enquanto Berlioz logo apreciou, ou melhor, não que tenha apreciado mas… como exprimir… interessou-se, por assim dizer.
– Permitem que eu me sente? — pediu o estrangeiro, cortês, e os amigos se separaram, algo a contragosto; o estrangeiro tomou assento entre eles com destreza, entrando imediatamente na conversa. – Se não ouvi mal, o senhor se permitia dizer que Jesus não existiu, certo? – perguntou o estrangeiro, voltando para Berlioz seu olho esquerdo verde.
– Não, não ouviu mal – respondeu Berlioz, com urbanidade -, eu disse exatamente isso.
– Ah, que interessante! — exclamou o estrangeiro.
‘Mas que diabo ele quer?’, pensou Berlioz, franzindo o cenho.
– E o senhor concorda com o seu interlocutor? – indagou o desconhecido, virando-se para Bezdômny, à direita.
– Cem por cento! – confirmou o poeta, que gostava de se exprimir de modo pretensioso e figurativo.
– Magnífico! (…)
O turista estrangeiro recostou-se no espaldar do banco e perguntou chegando a ganir de curiosidade:
– Os senhores são ateus?
– Sim, somos ateus – respondeu Berlioz, rindo, enquanto Bezdômny pensava, zangado: ‘Esse patife estrangeiro agora grudou de vez!’.
– Oh, que encanto! – gritou o estrangeiro, espantado, virando a cabeça e olhando ora para um, ora para outro literato.
– Em nosso pais, ateísmo não espanta ninguém – disse Berlioz. em tom diplomático e cortês -, a maioria de nossa população parou de acreditar nas fábulas sobre Deus há muito tempo, e de forma consciente.
Daí o estrangeiro saiu-se com essa: levantou-se e apertou a mão do perplexo editor, enquanto proferia as seguintes palavras:
– Permita-me que lhe agradeça de toda a alma!
– Mas por que o senhor está agradecendo? – indagou Bezdômny, pestanejando.
– Por uma informação muito importante que eu, como viajante, acho extraordinariamente interessante -esclareceu o excêntrico estrangeiro, erguendo o dedo de forma significativa.”
Mikhail Bulgákov. O Mestre e Margarida.
“What’s puzzling you is just the nature of my game.” Esse é um verso de Sympathy for the Devil, da banda inglesa Rolling Stones. Essa música, que é um sucesso irrefutável, foi inspirada em O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgávok, escritor soviético falecido em 1940. A frase que abre esse texto resume bem o enredo do livro que serviu de inspiração a Mick Jagger e Keith Richards.
Temos mais um favorito da vida!!! Excelente!!!
Antes de falar do livro, vamos ter que falar do autor e da produção cultural da União Soviética stalinista. Acreditem, essas breves informações melhorarão seu aproveitamento desse livro sensacional.
Mikhail Bulgákov, nasceu em Kiev, na Ucrânia (Império Russo) em maio de 1881. Formou-se em Medicina, serviu como médico na I Guerra Mundial, depois lutou contra os exércitos bolcheviques na guerra civil Russa (fins de 1917-1921). Ou seja, ele nasceu no Império Russo Czarista, viu o surgimento da União Soviética, lutou contra ela, perdeu e viveu sob o governo autoritário soviético de Lenin e depois de Stalin.

Mikhail Bulgákov e Ielena Serguêievna
Passou a maior parte da vida residindo em Moscou.
Nosso autor desistiu da medicina se tornando escritor de peças de teatro, romances e contos. Teve muitos problemas para publicar ou ter suas peças encenadas por determinações da censura governamental e perseguição implacável da imprensa soviética.
Esse é um raro caso de pessoa considerada subversiva que não foi nem executada nem mandada para campos de trabalho forçado. Por que Stalin poupou a vida de Mikhail Bulgákov? Talvez porque apesar de ser muito apedrejado pela imprensa soviética, quando conseguia fazer com que suas peças fossem montadas, elas eram um sucesso de público e crítica. Dizem que o próprio Stalin assistiu algumas vezes à peça Os dias de Turbin, sobre a Guerra Civil Russa, e sabia algumas falas de cor.
Em uma carta, Bulgákov chegou a pedir a Stalin que permitisse que ele e sua então esposa saíssem da URSS ou que lhe concedesse um emprego no Teatro de Arte de Moscou.
Pois então lhe foi concedida a vaga para trabalhar no teatro. Essa “benevolência” do ditador russo para com o insubordinado escritor, pode ter tido também a mão de Maksim Gorki (1868-1936), escritor alinhado ideologicamente com o regime soviético, que agiu por vezes em defesa de Bulgákov.
Outra informação da vida pessoal do autor, que é relevante para O Mestre e Margarida, é que ele foi casado três vezes, sendo a última esposa Ielena Serguêievna. Essa mulher foi testemunha e incentivadora da batalha de Bulgákov pelo direito de trabalhar como escritor e foi também a guardiã dos manuscritos de O Mestre e Margarida, que só foi publicado 27 anos depois do falecimento do autor.
O Mestre e Margarida levou os últimos doze anos da vida de Bulgákov para ser escrito, tendo sido finalizado em 1940, quatro semanas antes de sua morte.
Achei prudente dar essas informações porque O Mestre e Margarida, pode parecer um monte de caos e até uma escrita nonsense para os leitores desavisados. Mesmo sem saber do contexto histórico por trás da obra, é um livro interessante e diferente, mas quando a gente se dá conta de que tem um quê autobiográfico… cresce assustadoramente.
Trata-se de uma sátira mordaz, sobre a vida de produtores de cultura no governo stalinista, sobre a burocracia e o próprio Estado soviético, sobre a vida profissional e matrimonial de Bulgákov com Ielena. E é muito engraçado. E é genial quando visto pela perspectiva do cinismo e da crítica, além da comédia.

Woland, Behemoth e Korôviev
Claro que tem momentos tensos e acontecimentos horrorosos. O que esperar de um livro em que um dos personagens principais é Satã?
Eis uma sinopse sem spoilers:
Temos um editor, Berlioz, e um poeta, Ivan Bezdômny, um explicando ao outro porque seu poema sobre Jesus que fora encomendado para uma revista literária não seria publicado. O motivo do veto é que o poeta teria escrito sobre Jesus como um personagem histórico, ainda que o poema não fosse elogioso. O editor argumenta que não é possível aceitar um escrito que aborda um personagem que não existiu como se tivesse existido.
Aí… um homem esquisito que estava perto e ouvia a conversa se aproxima e se intromete. Esse misterioso senhor vai dizer aos seus interlocutores que Jesus não só existiu como ele esteve presente em companhia de Pôncio Pilatos no dia da condenação. Diante das feições chocadas dos dois russos certos de estar diante de uma pessoa desequilibrada mentalmente, esse homem passa a fazer previsões para as vidas deles, como forma de demonstrar que não é louco. Uma dessas previsões é sobre a morte do editor.
Esse “vidente” é na verdade Woland, o capeta, e o editor Berlioz, bem como o destino do poeta Ivan, vão permear todo o romance.
Dentro do livro tem um livro. Explico. As histórias de Woland tocando o terror em Moscou e também a de Mestre e Margarida (já já chegaremos lá) é intercalada com um romance em produção onde o personagem principal é o Procurador de Jerusalém, Pôncio Pilatos. De tempos em tempos, a trama moscovita é interrompida e o leitor aprecia um trecho da obra do Mestre.
O Mestre não tem outro nome. Numa atitude de dizer que ele não importa nada para o mundo e que, portanto, não há motivo para que saibam seu nome. Quem o deu esse codinome foi Margarida, sua amante, uma mulher que o ama sobre todas as coisas e que genuinamente aprecia sua inteligência e seus escritos. “Mestre” pode ser entendido como um pseudônimo que demonstra apreciação e depreciação ao mesmo tempo.
Quando a imprensa russa cai em cima de Mestre dizendo as piores coisas sobre seu trabalho, ele surta, queima todos os seus manuscritos e passa a vagar pela cidade sem rumo. Margarida vai procurar esse homem sem tréguas e guardar como um tesouro as poucas páginas do romance que conseguiu salvar do fogo.
Woland e sua trupe (dois homens, uma mulher feiticeira e um gato preto enorme), Margarida, Mestre, Jesus e Pôncio Pilatos serão relacionados espetacularmente até o final do livro. Tudo se encaixará.
Uma obra desta grandeza, tem múltiplas facetas e dá pano para manga para comparações e divagações de todos os tipos. Tive que ser seletiva para não escrever um livro sobre o livro.
Vamos pensar sobre os dois personagens mais legais do livro: Behemoth o gato preto gigante e Margarida, a personagem principal.
Behemoth, o gato preto gigante, anda nas patas traseiras, fuma, come comida de humano, bebe bebida alcoólica, paga o ticket do bonde e faz tudo mais que uma pessoa faz como uma pessoa faria. Ele faz parte do séquito de Woland.
Para se ter uma ideia do comportamento de Behemoth, podemos imaginá-lo como um primo do Gato de Botas. Ele é o Gato de Botas de pelo preto, sem chapéu ou botas, mas com aquele caráter meio duvidoso elevado à terceira potência. Nada de heroísmo para Behemoth.
Behemoth se parece muito com o Gato do primeiro filme do Gato de Botas produzido pela DreamWorks. Nesse longa metragem ele, o Gato, se transformará em um “herói”, depois de cometer crimes com seu amigo Humpty Dumpty, que também não era boa bisca.
Uma coisa que as duas obras têm em comum é a convivência entre gatos falantes e humanos, diferentemente de filmes onde só animais antropomorfizados atuam, como Kung Fu Panda por exemplo.
Na conclusão do primeiro filme do Gato de Botas ele termina redimido das coisas erradas que fez no passado sendo elevado à categoria de herói. O segundo filme vai começar daí… a fase herói da cidade de San Ricardo.
Ele não é o herói clichê de bons sentimentos, humildade e pureza de alma. O Gato passa a fazer boas ações mas prossegue fanfarrão, vaidoso, capaz de mini-delitos.
Esse personagem não é novo, talvez ele tenha inclusive inspirado Bulgákov a criar Behemoth.
O Gato de Botas original foi criado em um conto de fadas que também é encontrado com o nome de O Mestre Gato. Esse conto data de 1697 e é de autoria do francês Charles Perrault.
No conto, o gato foi dado de presente a um rapaz por seu pai. O rapaz dá ao gato as botas e o animal vai conversar com o rei convencendo-o que seu dono é um homem riquíssimo chamado Marquês de Carabás. Claro que a tramoia do gato dá certo e o dono do gato se casa com a princesa filha do tal rei. Veja que ele já nasceu assim com um talento para esquemas espertalhões.

Ilustração de Gustave Dore
Margarida, de quem não falarei muito nessa parte, é uma mulher apaixonada pelo Mestre, que vai fazer um pacto com o Demo, porém um pacto diferente. Quem precisa dela é ele. Em um ponto do livro, Margarida irá a um evento a pedido de Woland, e Behemoth e outro capanga chamado Korôviev a acompanharão.
Sabe o que o gato e o outro servo de Woland farão por ela nesse evento? Entre outras coisas, eles ficarão ao lado dela o tempo todo, dizendo quem são as pessoas que estão vindo cumprimentá-la para que ela saiba com quem está falando.
Quem pode ter se inspirado nesse evento de O Mestre e Margarida são os criadores de O Diabo Veste Prada.
Em um grande evento de moda, Miranda Priestly (Maryl Streep), a diaba da história, vai acompanhada de suas assistentes que estudaram o catálogo de convidados para justamente sussurrar nomes, credenciais e principais fofocas ao ouvido de Miranda quando alguém importante se aproximasse dela. (Falei de O Diabo Veste Prada também no texto sobre Kim Jiyoung, Nascida em 1982)
É uma cena bastante divertida e as capangas são Andrea Sachs (Anne Hathaway) e Emily Charlton (Emily Blunt), muito bem vestidas, discretas, preparadas para o desafio, pois um erro com Miranda pode custar-lhes o emprego e ainda uma sessão de humilhação.
É muito interessante perceber como as obras influenciam umas as outras. O Mestre e Margarida, embora a trama seja bastante diferente, é baseado na obra prima Fausto, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, cuja primeira parte foi publicada em 1806 e a segunda em 1832 (póstuma). O personagem Woland faz parte do poema/peça de teatro Fausto, lá ele é o homem que propõe um pacto com o Capiroto. Margarida também está em Fausto, mas é outra Margarida.
Talvez, Bulgákov possa ter sido também influenciado pelo conto de Charles Perrault. Por sua vez, O Mestre e Margarida pode ter sido a inspiração para uma das cenas mais icônicas de O Diabo Veste Prada. Até os Rolling Stones se encaixam nessa cadeia de estímulos criativos.
O Mestre e Margarida foi adaptado para o cinema em 1972, em uma produção Italiana e iugoslava, dirigida por Aleksandar Petrovic. O filme foca mais na segunda parte do livro, quando o autor focou no romance dos personagens que dão nome ao livro. O roteiro fez muitas adaptações, porém o principal do livro estará lá. O filme está disponível no streaming A La Carte.
Agora uma parte com spoilers, porque não aguentei. Se quiserem escapar de revelações que podem estragar a experiência de leitura de O Mestre e Margarida, deixem para ler depois.
Como comentado, são três histórias complementares nesse livro. A de Woland tocando o terror em Moscou; a de Pôncio Pilatos lavando as mãos diante da condenação de Jesus e a de Mestre e Margarida e sua história de amor.
“(…) os manuscritos não ardem”. (p.289)
Mestre era o autor rejeitado pelo governo socialista/autoritário, que queimou seu manuscrito mais precioso em um momento de ira. Margarida salvou uma parte desse trabalho do fogo e guardou. Depois que Margarida faz um favor a Woland ele a recompensa de algumas formas: entre elas está a entrega do manuscrito do livro sobre Pôncio Pilatos intacto acompanhado da fala:“Os manuscritos não ardem” (ou “os manuscritos não queimam” em algumas traduções).
Ao longo de sua tentativa de estabelecer uma carreira rentável e produtiva, Mikhail Bulgákov queimou diversos manuscritos, com certeza por ira, mas, num plano mais racional, para destruir provas de que redigia escritos “subversivos”. Sabe como é… autoritarismo e subversão são inimigos, com o agravante de que subversão é um conceito bem mal definido para ditadores em geral. Vide: Fascismo na Europa nos anos 1930, ditaduras militares na América Latina do século XX, regime cubano/castrista, Coreia do Norte de hoje, etc.
O Mestre e Margarida foi uma publicação póstuma. Ielena, a esposa de Bulgákov, guardou esse manuscrito até que sentisse que as condições para sua publicação fossem favoráveis. Vejam: esse manuscrito não ardeu no fogo e se tornou um dos romances mais importantes do século XX.
Nesse ponto, a personagem Margarida e os esforços de Ielena para auxiliarem seus amados a prosseguir na carreira literária se assemelham muito.
Como foi Margarida quem fez um favor a Woland ele a pagou com a reconstrução de sua vida antes de o Mestre sumir em uma instituição para saúde mental. Woland foi benevolente com ela e seus próximos, demonstrando que o diabo dessa história honra seus compromissos.
É um satã diferente daquele da tradição cristã. Ele não faz com que pessoas inocentes pratiquem o mal, ele apenas tira máscaras e pune aqueles que erram. Como o personagem Lúcifer Morningstar da série Lúcifer da Netflix. Woland e Lúcifer são ardilosos, estão na Terra com um propósito, cumprindo uma função para o equilíbrio do universo e mantém relações cordiais com algumas adaptações dos personagens “celestiais”.
No caso de Lúcifer, apesar da história de amor, aquela famosa trama principal xoxa, ser realmente bem xoxa, a interação dele com os demais personagens míticos é maravilhosa. Tem os irmãos anjos que são filhos de Deus com “Deusa” (Amenadiel, Lúcifer, Uriel, Miguel Azrael e Remiel). A Deusa tamém aparece na série. Ela vem como uma mulher lindíssima que adotará o nome de Charlotte para viver no planeta Terra disfarçada de mortal.
O personagem Lúcifer é proprietário de uma casa noturna badaladíssima em Los Angeles, vive uma vida luxuosa, luxuriosa, regada a bebidas, drogas e todo tipo de entretenimento. Só pausa a vida loca para castigar quem merece.
Ninguém faz nada do que não queira por influência dele. Assim, como ninguém faz nada do que não faça parte de sua própria essência por influência de Woland, embora ele dê aquela forcinha para o lado obscuro aflorar.
O melhor trecho em que Woland provoca a população de Moscou é o dia em que ele se apresenta no Teatro de Variedades com um suposto show de magia negra.
Nesse show lotado, ele vai despertar a vaidade, cobiça, inveja e outros tantos sentimentos menos nobres, além de contar para toda a plateia segredos obscuros de personalidades importantes para a sociedade moscovita. O resultado dessa intervenção será uma turba de pessoas peladas correndo na rua em frente ao teatro loucamente, com a polícia e bombeiros tentando conter aquele ato de histeria coletiva. É fantástico!
Agora chega. Dava para falar muito mais. Super-recomendo O Mestre e Margarida!
BULGÁKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. Tradução: PERPÉTUO, Irineu Franco. Rio de Janeiro: Editora 34, 2021.
MILLER, Chris. O Gato de Botas. EUA: DreamWorks, 2011.
CRAWFORD, Joel. O Gato de Botas. EUA: DreamWorks, 2022.
PETROVIC, Aleksandar. O Mestre e Margarida. Ioguslávia e Itália: Eastmancolor, 1972.
FRANKEL, David. O Diabo Veste Prada. Estados Unidos: 20th Century Fox, 2006.
HANDERSON, Joe & outros. Lúcifer. EUA, Fox, 2016-2022.
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