
Capa do livro O médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson.
“Henry Jekyll às vezes ficava horrorizado diante dos atos de Edward Hyde; mas a situação estava além das leis comuns, e insidiosamente fugia ao controle da consciência. Era Hyde, afinal de contas, somente Hyde, o culpado por tudo. Jekyll continuava o mesmo; ao acordar, suas boas qualidades não pareciam ter sofrido nenhum prejuízo; e até se apressava, quando possível a reparar o mal praticado por Hyde. E assim, sua consciência adormecia.”
STEVENSON, Robert Louis. O Médico e o Monstro. Pg. 100.
O médico Henry Jekyll, respeitado membro da sociedade londrina, era um homem cheio de virtudes, ou pelo menos era o que se pensava. Talvez o melhor adjetivo para Jekyll não fosse virtuoso, mas contido.

Filme de 1920. O Médico e o Monstro.
Homem da ciência, Jekyll em sua ânsia por liberdade (para ser o oposto do que era) criou uma substância capaz de transformá-lo em outra pessoa: Mr. Edward Hyde. O tal elixir não só o modificava fisicamente, como dava a coragem suficiente para cometer atos horripilantes sem ser reconhecido.
Quando Jekyll era Jekyll parecia bondoso, profissional e respeitoso. Quando Jekyll era Hyde era grosseiro, inescrupuloso e assassino. No início, Jekyll conseguia se livrar de Hyde facilmente, com o tempo a sua segunda personalidade foi tomando mais espaço. Pode-se dizer que Jekyll chegou a ser dependente de Hyde, como um dependente químico.

Filme de 1940, Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Vencedor do Oscar de melhor ator.
A grande questão da história escrita e reescrita em seis dias por Robert Louis Stevenson em 1886, é: o quão bom era Jekyll? Será que o esforço feito para manter sua reputação não contrariava a sua verdadeira natureza rude e maldosa? Será que o lado menos louvável não era excessivamente reprimido? Lembramos que Jekyll era um homem da Inglaterra vitoriana, uma época de transição entre rural e urbano, de inovações tecnológicas e científicas, mas também de grande valorização religiosa devocional e de rigidez moral.

Filme de 1971: Dr. Jekyll and Sister Hyde. Nesse, Hyde é uma mulher.
Coisas estranhas aconteciam em Londres, com pessoas próximas a Dr. Jekyll, todas ligadas a um certo senhor atarracado, de aparência assustadora, perverso e obviamente perigoso. Um dos amigos mais próximos do médico, testemunha um desses acontecimentos e passa a investigar o mal feitor, concluindo que ele se chama Edward Hyde e tem relações estranhíssimas com ele. Por exemplo, Jekyll havia mudado seu testamento para deixar tudo o que possui para Hyde, nas hipóteses tanto de vir a falecer quanto de simplesmente desaparecer. Outros amigos e funcionários do médico vão se envolvendo na trama, cada qual adicionando novas evidencias e informações, até que o leitor chega ao fim do mistério. Essa história é tão famosa, que é praticamente impossível dizer algo que possa ser um spoiler. Por via das dúvidas, não serão fornecidos nesse texto maiores detalhes. Afinal, um clássico sempre tem mais a oferecer.
A obra O Médico e o Monstro influenciou a criação de inúmeros personagens e tramas, direta ou indiretamente. Há exemplos disso no episódio de Looney Tunes, em que Pernalonga é adotado pelo médico; na transformação que acontece com Hulk, de Stan Lee; Smeagle e Gollum de O Senhor dos Anéis.

Capa do livro O Clube da Luta, de Chuck Palahniuk.
Um caso de vida dupla, com semiconsciência entre uma e outra personalidade, é a de O Clube da Luta, que tem nesse site dois textos (parte 1 e parte 2). O narrador é o personagem contido e Taylor Durden é o que põe em prática o que o narrador quer fazer, mas não tem coragem. Nessa história os personagens não fizeram uso de substâncias para alternar as personalidades, era uma questão meramente psiquiátrica. Outra semelhança entre as obras O Clube da Luta e O Médico e o Monstro é que ao tomar consciência sobre o que se passa quando o alter ego assume o controle, tanto Henry Jekyll quanto o narrador de O Clube da Luta, tentam remediar, desfazer, parar os atos criminosos. O primeiro consegue parar Hyde, com uma solução extrema. As ações de Tyler Durden, por outro lado, eram irrefreáveis, o projeto desordem e destruição, criou dinâmica própria.
Todos os personagens apresentados nesse artigo deveriam considerar a ajuda profissional para tratar dessas frustrações que acabam levanto à vidas duplas. Os próximos não se tratam de dupla personalidade, mas de psicopatia.

Capa do livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.
O livro Feliz ano novo, escrito por Rubem Fonseca, traz dois contos chamados Passeio Noturno (Parte I) e Passeio Noturno (Parte II). Neles o mesmo protagonista, que é um senhor bem sucedido, casado, pai de dois filhos, residente na cidade do Rio de Janeiro, volta sempre cansado do trabalho, como qualquer cidadão. Ele é um homem de poucas palavras e ao que parece tem uma vida bem encaminhada sem grandes percalços. Uma coisa que o ajuda a desanuviar é dar uma volta de carro pela cidade. Ele dá voltas de carro sozinho todas as noites e fica claro na narrativa que o veículo, de parachoque reforçado, custou uma fortuna. Em seus passeios, escolhe lugares pouco iluminados e quase desertos, porque não é exatamente o passeio que lhe traz alívio, mas atropelar pessoas pela rua.
Ele sai, comete um assassinato por atropelamento e segue de volta para casa mais calmo. Esse senhor é uma pessoa para colegas de trabalho e família e outra na intimidade. Capaz de cometer crimes gravíssimos sem motivação nenhuma. Aliás, Feliz ano novo é composto por histórias insólitas com vários personagens perturbadores. Em breve voltaremos a mencionar outros contos por aqui.

Poster de Dexter
Feliz ano novo, foi publicado em 1975, se tornou um dos livros mais vendidos no Brasil. Em 1976 foi censurado pela ditadura militar e recolhido das prateleiras, por atentar contra a moral e os bons costumes. O livro voltou a ser publicado em 1989.
E se existissem personagens cujo lado sombrio entrasse em conflito de interesses com o suas profissões?
No seriado Dexter, o personagem que dá nome à série, é um analista forense que trabalha para o departamento de polícia de Miami. Sua função é investigar padrões em assassinatos, que podem indicar crimes em série. Contraditoriamente, o próprio Dexter é um serial killer, que mata os assassinos que investiga com requintes de crueldade.
O pai adotivo de Dexter, também policial, ao perceber a tendência psicopata do filho, que matava animais por prazer, ensinou-o, ainda criança, a escolher vítimas para matar e a definir critérios rígidos para de seleção. Esta série foi transmitida pela FX Brasil e foi produzida pela Showtime de 2006 a 2013. Hoje está disponível no Amazon Prime.
Ainda bem que isso não acontece na vida real. Será mesmo?

Andre Stander
Nos anos de 1977 a 1980, a África do Sul presenciou uma série de roubos a banco. Às vezes vários em um dia. Toda vez que um banco era roubado, o Capitão Andre Stander, da divisão de roubos e homicídios da polícia de Kempton Park, era convocado para investigar. Por que ele? Porque era o coordenador da força tarefa instituída para investigar os assaltos daquela quadrilha que ninguém conseguia prender. Acontece que o chefe da quadrilha era o próprio Andre Stander. Mestre no disfarce, ele chegava a assaltar bancos em seu horário de almoço e depois retornar a tempo de voltar ao mesmo banco para colher provas e ouvir testemunhas. Estima-se que foram mais de trinta assaltos em três anos. Stander, quando descoberto, foi condenado a 75 anos de prisão em segurança máxima. Em 1983, fugiu com seus comparsas da prisão e voltou a assaltar bancos. Foram nomeados Stander Gang pela imprensa sul-africana.

Poster do filme Stander
Stander foi encontrado pela última vez em circunstâncias dignas de Hollywood, em Forth Lauderdale, nos Estados Unidos, quando foi morto em um tiroteio com a polícia no ano de 1985. A história desse criminoso/policial, foi contada no filme Stander, uma produção sul-africana lançada em Cannes em 2003.
Na filosofia taoísta, o Yin-Yang simboliza dualidade, complementaridade, são partes coexistentes e interdependentes. Se aplica a tudo o que existe, podendo ser o céu nublado e o céu sem nuvens ou o frio e o calor, por exemplo. Para interpretar os lados como contrastes inerentes aos seres humanos, é importante entender cada elemento daquele símbolo aparentemente simples: o yang é composto de yang, que representaria o impulso, a ação, e de fu, que seria a capacidade de contemporizar, o raciocínio, o sentimento em um pequeno ponto dentro do yang; o yin também é composto de yin e de fu, sendo um polo de contemplação com um pequeno ponto de impulsividade. Existindo a dominância de um dos polos sobre o outro, há desequilíbrio. Melhor não sermos excessivamente complacentes nem imprudentes. Todo ser humano tem sua personalidade composta por virtudes e defeitos. Não há um ser vivente que seja apenas bom, como querem muitas histórias românticas. A questão é se conhecer e se equilibrar, para não dar a oportunidade de surgirem nem Jekylls e nem Hydes.
STEVENSON, Robert Louis. O Médico e o Monstro. Rio de Janeiro: Record, 2016.
FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
PALAHNIUK, Chuck. O Clube da Luta. Tradução: Cassius Medauar. São Paulo: Leya, 2012.
DAIVIDISON, Adam; GORDON, Keith; CUESTA, Michael; LIEBERMAN, Robert; STEVE, Shill & GOLDWYN, Tony. Dexter. EUA: Showtime, 2006-2013.
HUGHES, Bronwen. Stander. África do Sul: Newmarket Films, 2003
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