Capa do livro O estrangeiro de Albert Camus.

“Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas atrás de mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. O queimar do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. (…)E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. P. 63.

 

Albert Camus, escritor e jornalista franco-argelino, publicou em 1942 o romance O Estrangeiro, que o lançou à fama e é considerado por muitos o melhor trabalho do autor, laureado com o Nobel de Literatura em 1957. O Estrangeiro, foi redigido na França, quando Camus se mudou de Argel para lá para trabalhar como jornalista, o que faz com que alguns o definam como um romance francês. Apesar disso, existe um entendimento de que O Estrangeiro é para a Argélia o que Dom Casmurro é para o Brasil, o romance mais importante escrito por um argelino.

A nacionalidade de Albert Camus é franco-argelina, o que quer dizer que nasceu em Argel, capital da Argélia em 1913, ano em que aquele território era colônia francesa. Havia um nome pelo qual argelinos árabes se referiam aos descendentes de europeus: pied-noirs. Ele, como descendente de europeus, especialmente pela parte paterna que era francesa, ficava nesse vácuo de nacionalidade.

Aliás, se há um termo bom para definir essa obra é a palavra vácuo.

O Estrangeiro é considerado um romance existencialista escrito com base na filosofia do absurdo (Camus tinha formação em filosofia). E tanto o absurdo como o existencial são magistralmente explorados nos vácuos.

O personagem principal e narrador em primeira pessoa é o Sr. Meursault, que tem um cargo público em Argel. Não há primeiro nome. Ele pode ter nascido tanto na França  quanto na Argélia. Embora não seja dito explicitamente, a única coisa que sabemos é que não era árabe. A obra trata os muçulmanos, que são os habitantes identificados como nativos da Argélia não só por nascimento, mas principalmente por sua etnia, com distanciamento. Eles não têm nome, nem falas, nem descrições. É como se toda aquela sociedade pied-noir visse os nativos assim, desumanizados quase invisíveis.

Capa do livro O Estrangeiro, editora Bestbolso.

A narrativa quase não tem descrições é bem enxuta e fácil de ler. O difícil é digerir e lidar com o os vácuos. Preenche-los fica a cargo do leitor, que passa a própria existência em revista, quando tenta ruminar o que acabou de ler.

O primeiro parágrafo é um excelente primeiro parágrafo:

“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.” (p. 13)

Nesse trecho, o narrador demonstra indiferença pelo falecimento da mãe. Na sequencia, ele recebe a notícia, vai ao enterro por obrigação, não chora, não conversa com quase ninguém, aceita um cafezinho para degustar durante o velório e deixa claro que quer muito voltar para casa para descansar. E fica pior. Essa pessoa, ao voltar para casa, vai à praia, inicia lá um namoro com uma ex-colega de trabalho e segue com ela ao cinema para assistir a uma comédia. Tudo no mesmo dia.

Essas ações dão o vislumbre do que seria o principal traço da personalidade de Meursault. Ele é um homem que não vê nenhum sentido na vida. Ele toca a vida com frieza. Fazendo o que lhe solicitam sem questionar ou fazendo o que lhe convém sem pensar nas possíveis consequências, como alguém que não vê razão para não fazer, para não ter a experiência. A expressão mais falada por ele é “tanto faz”.

Meursault não esboça sentimentos, é como se dentro dele houvesse um vácuo, uma total falta de vontade de se engajar na vida, posto que ela simplesmente não faz sentido. Apesar dessa postura, ele não quer abreviar a vida, quer viver essa existência non sense até que se esvaia. Não se importa com julgamentos e não tergiversa sobre suas ações, responde a tudo na lata. A verdade pura e direta. O que é outra razão de choque para seus interlocutores e para os leitores.

Talvez tivesse alguma questão psicológica a ser investigada. Ele é tão direto quanto, por exemplo, o personagem Sam, da série Atypical, que está dentro do espectro autista.

Cartaz da série Atypical

Atypical, dirigida por Seth Gordon e produzida por Jeniffer Jason Leigh, que também interpreta a mãe de Sam, é um drama/comédia e uma das minhas séries preferidas da Netflix. É a história da passagem da adolescência para a vida adulta de um rapaz chamado Sam e como ele vai aprendendo a lidar com o mundo. Ao contrário de Meursault, Sam tem sentimentos. Sente amor, predileções, noção de certo e errado, o desafio é aprender a ter traquejo social. Sam também se diferencia nessa questão, ele se esforça p aprender e para conseguir conviver bem com as pessoas, ao passo que Meursault não se importa nem um pouco com isso e segue cometendo um sincericídio atrás do outro.

A mesma pergunta foi feita aos dois personagens. As mulheres com quem se relacionavam amorosamente os questionaram sobre se eles as amavam. Ambos responderam “não” gerando decepção e perplexidade em suas companheiras.

A partir dessas negativas sem tato, dadas por Sam e Meursault, vem a diferença no modo de reagir à surpresa das mulheres. Sam se preocupou com a reação de Paige e foi conversar com outras pessoas para entender por que a resposta honesta que ele deu causou aquela reação. Já Meursault não se incomodou nem um pouco com os sentimentos de Marie e posteriormente disse a ela que não faz diferença para ele se casar ou não, ele gostava da companhia dela e se ela quisesse se casar para ele “tanto faz”.

A ausência de emoções e a indiferença do personagem principal de O Estrangeiro pode ser comparada à letra da música Léa da banda de rock Louise Attaque, escrita para a filha adolescente de um dos integrantes da banda: “Léa, elle est pas terroriste, elle est pas anti-terroriste/ Elle est pas intégriste, elle est pas seule sur terre(…) Léa/Elle est parisienne, elle est pas presentable/Elle est pas jolie, elle est pas moche non plus/Elle est pas a gauche, elle est pas a droite/elle est pas maladroite”

Léa é tão indefinida e indiferente quanto Meursault, exceto que pelo menos sabemos que ela é parisiense e isso é menos uma lacuna nesse mar de interrogações. Lembrando que Léa é uma adolescente, está, portanto, em formação da personalidade.

O ponto de virada na trama é quando o protagonista começa a interagir com seu vizinho, que é uma espécie de cafetão e que espanca uma mulher árabe dentro do apartamento. O vizinho chamado Raymond pede a Meursault, de quem nem era íntimo, para mentir à polícia sobre ter ouvido a briga. Ele prontamente concorda. Depois do espancamento irmãos dela passam a perseguir Raymond para se vingar.

Raymond convida Meursault para um fim de semana na praia. Os árabes vão ao encontro deles e durante o passeio e obviamente há tensão entre a turma do Raymond e os irmãos da mulher agredida por ele. Ocasião em que Meursault tira a arma de Raymond, para impedir o pior.

Num dado momento, nosso “senhor tanto faz” vai sozinho à praia e protagoniza a cena mais famosa narrada da obra, quando ele atira no árabe. Esse trecho está citado na epígrafe desse texto.

O sentimento frente ao absurdo da cena é tão estarrecedor, que ganhou uma composição da banda The Cure, chamada Killing an Arab. O The Cure colocou na forma de canção o episódio narrado por Camus.

Inicia-se depois do assassinato a parte 2, que é sobre o processo contra Meursault. Não entrarei em detalhes sobre as transformações operadas no personagem, apenas adianto  dois pontos: o primeiro é que trata-se um final reflexivo diferente do padrão.

O segundo é que a indiferença de Meursault ao longo da vida, contou contra ele no tribunal, embora não fosse esse seu crime. É um recuso usado em histórias e casos reais de julgamentos em que uma das partes tenta desqualificar a moral da outra objetivando condenar ou absolver o réu. Considerando que o modo e a motivação dele para assassinar o árabe, podem ser interpretados como traço de psicopatia, pode ser que nesse caso tenha algum cabimento na estratégia da acusação, embora ele não estivesse naquele banco por ter sido insensível ao falecimento da mãe.

No caso do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, lindamente reconstituído no podcast Praia dos Ossos, o primeiro julgamento do réu foi que virou um circo dado o status de celebridade de que gozava a vítima e aos excessos da cobertura da mídia, o objetivo era o contrário. Desqualificar a moral da vítima para beneficiou o playboy galanteador e assassino. A estratégia deu certo e ele saiu livre da corte.

Infelizmente para Doca Street, e felizmente para o movimento feminista, o julgamento foi anulado e o processo reiniciou de forma que ele foi condenado a uma pena justa.

Capa do livro A Peste, de Albert Camus.

Meursault não é só um “estrangeiro” naquela colônia francesa, ele é sobretudo um estrangeiro no mundo. O título é mais sobre o absurdo da vida e a inadequação do personagem do que sobre nacionalidade.

Se você procura um livrinho curtinho para se sentir melhor com a humanidade, esse não serve. Essa obra excepcional lhes causará o incômodo de pensar na própria existência. Se serve como atenuante, digo que O Estrangeiro é angustiante, mas pelo menos não é tão parecido com a realidade quanto A Peste.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Tradução: RUMJANEK, Valerie. Rio de Janeiro: Record, 2020.

SETH, Gordom. Atypical. EUA: Netflix, 2017-atual.