
Capa do livro O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo.
“Abaixo dessa chama, abaixo da escura balaustrada de trevos em brasa, duas gárgulas monstruosas vomitavam a incessante cascata ardente, que destacava seu fluxo prateado sobre o fundo de trevas da fachada inferior. À medida que se aproximavam do chão, os dois jatos de chumbo líquido se alastravam, como a água que dos mil buracos do regador. As duas enormes torres, acima do fogo apresentavam suas faces duras e recortadas, uma totalmente negra e outra vermelha, parecendo ainda maiores, pela imensidão da sombra que projetavam até o céu. As inúmeras esculturas de diabos e dragões ganhavam um aspecto lúgubre. A claridade inquieta da chama fazia com que parecessem se mover. Pítons davam a impressão de rir, carrancas gemiam, salamandras sopravam fogo, tarascas tossiam fumaça. Entre todos aqueles monstros arrancados do sono de pedra pelas chamas e pelo barulho, havia um que andava e era visto vez em quando passar na frente da fogueira, como um morcego à frente de uma vela.”
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame. p 481.
Vitor Hugo escreveu O Corcunda de Notre Dame, para apresentar aos franceses um pouco da História da França e criar uma alma para a Catedral. Em consequência, por ressignificar sua importância histórica e turística, a obra poderia salvar da destruição a linda catedral gótica localizada na Île de la Cité, em Paris. Esse intento deu certo, considerando o sucesso dos personagens principais, Quasímodo e a própria catedral, o número de turistas atraídos fez com que investissem no estado de conservação daquele patrimônio histórico. Esse clássico foi publicado pela primeira vez em 1831 e se passa na Paris do século XV, iniciando bem especificamente em 6 de janeiro de 1482.

Interior da Catedral de Notre Dame, antes do incêndio.
Quasímodo, o menino deformado deixado à porta da Igreja de Notre Dame em Paris, para ser adotado pelos padres ou morrer, é o protagonista dessa história imortal. Foi acolhido e criado pelo Padre Claude Frollo Arquidiácono da Catedral de Notre Dame. Ele tinha a boca torta, uma corcunda, apenas um olho e de tanto tocar os sinos de Notre Dame, ficou também surdo.
Ninguém conhecia Notre Dame como ele ou tinha a mesma habilidade para transitar por suas torres. Também ninguém seria capaz de a defender e de lutar por ela com a mesma gana. Os sinos da Catedral tinham nomes de pessoas e Quasímodo tinha preferência por um em particular, o maior deles, que se chamava Marie. Considerava amigos as figuras animalescas ou humanas que fazem parte da decoração gótica da catedral.
As pessoas tinham medo de Quasímodo, o classificavam como monstro. Na trama há trechos em que Quasímodo fora torturado ou discriminado por sua aparência.
Há um outro povo a quem os parisienses temiam, por questões de xenofobia, superstição e pelo mau comportamento de alguns membros desta comunidade, em algumas traduções, essas pessoas são denominadas ciganos. Na tradução usada aqui eles são chamados egípcios.
Por curiosidade, recorri ao original. Victor Hugo chama Esmeralda de égyptienne (termo que aparece 155 vezes) e significa Egípcia. apenas em uma frase aparece o termo gitane, que quer dizer cigana em francês. Em um dicionário etimológico da língua francesa, consta que a palavra gitan (cigano) deriva de égyptien (egípcio), assim como gypsy em inglês vem de egyptian.
A frase em que aparece a palavra gitane no original é: “J’avais su qui tu étais, égyptienne, bohémienne, gitane, zingara, comment douter de la magie?”. Que na tradução para Português feita por Jorge Bastos se tornou: “Sabia perfeitamente quem era você, egípcia, cigana, boêmia, zíngara; como estranhar a magia?”. Observa-se que egípcia e cigana, são usadas como sinônimos, juntamente com boêmia e zíngara.

Poster do filme de 1939: O Corcunda de Notre Dame
Também fazem parte dessa trama os personagens: Esmeralda, egípcia dançarina de incrível beleza; a cabritinha Djali, de estimação de Esmeralda; Capitão Phoebus, o grande amor de Esmeralda e noivo da fidalga Fleur-de-Lys; Jehan Frollo, irmão do padre Claude Frollo; Pierre de Gringoire, dramaturgo com quem Esmeralda se casa para salvá-lo da morte.
Tocado por um gesto de gentileza e pela beleza estonteante da egípcia Esmeralda, Quasímodo passa a dividir sua dedicação entre ela, Notre Dame e Claude Frollo. Aliás muitos dos momentos mais tensos ocorrem porque Quasímodo incluiu a jovem em seu rol de protegidos.

O Corcunda de Notre Dame. Disney, 1996.
Nos dias bonitos e calmos Notre Dame decora a praça à sua frente com sombras majestosas e as luzes coloridas de suas rosáceas, em outros momentos serve de asilo para os condenados à morte.
No trecho citado em epígrafe, Notre Dame parece acordar. Suas gárgulas e outros adereços atacam os invasores. Parece defender também a sua alma: Quasímodo. Na verdade, quem opera o ataque é Quasímodo, mas os egípcios e outros homens interessados em saquear Notre Dame, entendem que a igreja é mágica e está se defendendo. No momento da tentativa de invasão, ele consegue proteger sozinho o imenso prédio, por longo período, apenas com seus conhecimentos dos acessos internos e localização do material de construção deixado para uma reforma.
O Corcunda de Notre Dame fora adaptado para o cinema algumas vezes, sendo a primeira em 1939 e a mais famosa a da Disney de 1996.
Sobre a adaptação da Disney, por ter o público infantil como foco, houve muitas mudanças na história e no caráter dos personagens. Phoebus, por exemplo, não é uma boa pessoa no livro. É interesseiro, quer conquistar Esmeralda e lhe faz promessas apenas para se aproveitar dela, mesmo sendo noivo de uma moça rica com quem pretende se casar. O personagem Jehan não existe no filme. Além de outras suavizações e alterações no enredo. Um ponto em comum é que a personagem Notre Dame é tão viva e importante no desenho animado quanto no livro.

Poster do filme de 2019: Parasita
Assim como Notre Dame protagoniza sua história, outra edificação que foi sucesso no cinema e vencedor do Oscar de melhor filme, foi a casa da produção sul-coreana chamada Parasita, de Bong Joon Ho, de 2019.
Nesse filme, uma família pobre de Seul, vive em um espaço apertado no subsolo de um prédio. Quando o filho começa a trabalhar em uma casa de pessoas ricas como professor particular de inglês, costuram um plano mirabolante para que todos os membros sejam também contratados. Dessa forma passam a parasitar a família, que além de rica é um tanto ingênua.
A grande estrela de parasita é a casa da família rica, projetada para ser o lar de um famoso arquiteto sul coreano e, que após seu falecimento, é vendida à família que habita a casa na maior parte do filme. Assim como Notre Dame, a casa também tem “sua alma” e a revelação dessa alma é um dos melhores plot twists já feitos. Aliás o conceito de parasitismo pode ser explorado em vários personagens e classes sociais que compõe o universo do filme.
A linda casa moderna tem seus segredos e não é o único espaço físico personagem. O local onde a família pobre mora também tem seu papel. A exploração do ambiente mais desfavorecido economicamente também ajuda a ter a dimensão do abismo social que separa ricos e pobres em Seul. Isso ocorre no início do filme com os cheiros da rua e a dedetização gratuita. Depois, no episódio da chuva, fica muito claro como aquele fenômeno natural atinge de forma diferenciada aos ricos e aos pobres, apenas pela transformação dos espaços diante da tempestade.

Capa do livro O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman.
No texto que tratou do livro O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, foi apresentado o quarto que a mulher convalescente ocupava na casa de campo alugada com o intuito de que a estadia auxiliasse em sua recuperação. O cômodo que era revestido de um horrendo papel de parede amarelo tem função importante na deterioração do estado mental da personagem, embora não seja o único fator. A interação da mulher com o infame papel de parede dá a ele vida própria, se torna sua obsessão, medo e projeto. Ela dedica seus dias a decifrar os segredos da padronagem do papel que cobre as paredes do quarto.
Há obras de não ficção, em que espaços físicos são personagens. Uma das mais importantes, que fora escrita para ser publicada quando o momento fosse apropriado, também é um documento histórico. Tal livro foi escrito por uma menina que estava vivendo e relatando os horrores da Segunda Guerra Mundial e se chama: O Diário de Anne Frank.

Anexo da fábrica, onde se esconderam oito pessoas judias, incluindo Anne Frank, antes de se tornar museu.

Capa do livro O diário de Anne Frank.
Trata-se do diário de uma menina judia, cuja família está escondida em um anexo de uma fábrica de Amsterdã, para fugir dos nazistas durante a segunda guerra mundial. No diário, a menina Anne Frank, relata seu dia a dia no esconderijo, fala dos pais, da irmã, da outra família e de mais um homem que viveu com eles. A impossibilidade de sair dali, sob o risco de serem assassinados ou mandados a campos de concentração, faz como que tanto a relação com o espaço quanto entre os personagens seja tensa, complicada e inventiva por vezes.
Ao todo habitam aquele anexo secreto oito pessoas. Também transitam no anexo para levar mantimentos ou dar notícias do mundo externo, outros três personagens que trabalham na fábrica. Acompanha-se a divisão dos cômodos entre os moradores, invasão de ratos, cantos preferidos pelos personagens, as questões de iluminação e ventilação, o terror provocado por barulhos inesperados no andar de baixo, os silêncios. A proteção das vidas daquelas pessoas dependia da proteção daquele lugar, onde permaneceram por dois anos até serem descobertos e encaminhados aos campos de concentração nazistas. O pai de Annelies Marie Frank, o senhor Otto Frank, viveu para ser resgatado pelas forças aliadas e publicou o diário da filha. O anexo da fábrica hoje é um museu em memória de Anne.
Temos então três histórias ficcionais, sendo uma ode a um edifício real e importante para a história da arquitetura francesa, outra um reflexo da sociedade sul coreana e suas complexidades e a terceira que tratou de um cômodo capaz de enlouquecer uma personagem. A quarta história é um registro brutal e verídico de pessoas que realmente passaram por aqueles percalços impetrados pelos horrores de que a humanidade em seu momento mais odioso foi capaz.
Parasita, alçou o cinema sul-coreano a um novo patamar nas preferências ocidentais; O Papel de Parede Amarelo, serve até hoje para inspirar discussões feministas, tendo se tornado um clássico para esse setor; O Diário de Anne Frank é responsável por revelar ao mundo como era se esconder do extermínio provocado pela loucura humana. Por fim falemos de O Corcunda de Notre Dame.

Incêndio Museu Nacional. Rio de Janeiro, Brasil.

Incêndio Catedral de Notre Dame, Paris, França.
Esse último é uma história de amor pela catedral, com trechos sobre história francesa e descrições de Paris. Foi responsável por reavivar aquele patrimônio arquitetônico lindíssimo, cujo início da construção data do século XII, e estava ameaçado de destruição no século XIX. Infelizmente, em abril de 2019, a Catedral sofreu um incêndio grave que destruiu muito de sua estrutura. Quem sabe um novo Victor Hugo escreva sobre ela?
Quem sabe outros Victor Hugos, nascidos no Brasil, escrevam sobre nosso patrimônio histórico ameaçado algo capaz de salvá-los enquanto há tempo. Meses antes do incêndio em Notre Dame, em setembro de 2018, as chamas consumiram o prédio e grande parte de um acervo irrecuperável do Museu Nacional, na cidade do Rio de Janeiro.
Esse é o segundo texto sobre espaços-personagem. Antes dele, foi sobre o livro Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Ainda é possível explorar espaços-personagem por outras perspectivas, quem sabe um dia esse tema retorne para uma parte 3?
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame. Tradução: BASTOS, Jorge. São Paulo: Zahar, 2015.
GILMAN, Charlotte Perkins. O papel de parede amarelo. 7a edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.
FRANK, Annelies Marie. O Diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2014.
HO, Bong Joon. Parasita. Corea do Sul: CJ Entertainment, 2019.
TROUSDALE, Gary & WISE, Kirk. O corcunda de Notre Dame. EUA: Disney, 1996.
DIETERIE, William. O corcunda de Notre Dame. EUA: TCM, 1939.
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