Capa do livro Frankenstein

“Fique calmo! Peço que me ouça antes de despejar seu ódio em minha cabeça devotada. Já não sofri o suficiente para que você tente aumentar minha tormenta? A vida, embora seja apenas um acúmulo de angústias, é querida para mim, e irei defendê-la. Lembre-se: você me fez mais poderoso do que a si próprio; minha altura é superior à sua e minhas articulações são mais flexíveis. Não serei porém tentado a me colocar em oposição a você. Sou sua criatura e serei suave e dócil ao meu senhor e rei se você também desempenhar sua parte, a qual me deve. Ah Frankenstein, não seja justo com o outro e pise somente em mim, a quem você deve justiça e até sua clemência e afeição. Lembre-se que sou sua criatura; eu deveria ser seu Adão, mas sou o anjo caído, a quem você priva da alegria sem que eu tenha culpa.”

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. P. 145

 

A obra Frankenstein, que também pode ser encontrada com o título original de Frankenstein ou o Prometeu Moderno, consagrou Mary Shelley como escritora de ficção. Nela, temos um cientista inexperiente, porém obstinado, que cria a vida em laboratório.

A criatura deste livro não tem nome. Frankenstein é o sobrenome de Victor Frankenstein, o criador. Esqueçam aquele monstro verde desengonçado que emite sons guturais. Aqui, o ser inventado por Victor Frankenstein tem além da força descomunal, muita agilidade, habilidade física, sentimentos bem humanos e inteligência acima da média.

Assim como explicado no texto sobre 20 mil Léguas Submarinas, com o professor Anronax e o Capitão Nemo, esse é também uma obra vitoriana, uma época em que o sensacional homem branco europeu se julgava capaz de tudo.

Capa de 20 Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne

Talvez o maior mérito desse livro seja ter criado um personagem que tinha tudo para ser mais um exemplar do sensacional e infalível homem branco do Século XIX, mas foi desconstruído. Mary Sheley, por ser mulher, casada com um desses homens que se achavam a última coca-cola gelada do verão (Percy Bysshe Shelley), constrói um personagem que sim, realiza feitos impressionantes, mas é arrogante, antiético, egoísta e inconsequente. Victor Frankenstein não assume responsabilidade por seus atos e ignora os sentimentos dos que orbitam ao seu redor.

Tente ler essa história sem se apiedar do monstro. Aliás quem seria o monstro, o criador ou a criatura?

Sob o aspecto de julgamento da índole, o monstro seria o criador. Tudo isso construído de um ponto de vista sutil e notável. Sem declarações explícitas de apreciação da conduta dos personagens. A história se desenrola e o próprio leitor tira as conclusões.

A criatura, é claro, é um assassino. Todavia, o fato de ele ser um assassino é culpa somente dele ou é, principalmente, do homem que brincou de ser Deus, deu-lhe vida e ao perceber que a criatura era grotesca, simplesmente o abandonara à própria sorte.

Mary Shelley, nossa notável autora, era filha de escritores, sua mãe Mary Wollstonecraft foi a primeira escritora feminista da história, tendo publicado A Vindication of the Rights of Woman, em 1792. Mary, a mãe, morreu no parto deixando duas filhas aos cuidados do pai. Posteriormente, Mary Shelley, que ainda se chamava Mary Wollstonecraft Godwin, se envolve amorosamente com o poeta Percy Bysshe Shelley que se tornará seu marido e incentivador.

Villa Diodati. Casa de veraneio de Lord Byron.

Os aspectos da convivência de Mary com Percy Shelley e com Lord Byron, são bem desenvolvidos no filme Mary Shelley, de Haifaa Al Mansour. Por esse filme é possível compreender o porquê de ela retratar seu anti-herói, Victor Frankenstein, com as nuances de personalidade e os anseios que o personagem tem: ela era cercada de homens como ele. Também está no filme o romance de sua irmã com Lord Byron e as férias de verão que passaram na casa de veraneio daquele já famoso poeta e que foi período fundamental para o nascimento da ideia que se tornou o livro Frankenstein.

Naquelas férias do verão sem sol de 1816, outro dos hospedes, John Polidori, também iniciou o livro O Vampiro, que cerca de 70 anos depois inspiraria Bram Stoker a escrever Drácula. A construção dessas obras góticas fundamentais partiram de um desafio lançado por Lord Byron para que seus convidados escrevessem histórias assustadoras.

Poster do Filme Mary Shelley

O filme relata a vida de Mary Shelley até o reconhecimento de que fora ela quem escreveu Frankenstein ou o Prometeu Moderno, publicado inicialmente sem identificação de autoria. Sabe-se que, desde esse momento, até sua morte em 1853 a vida da autora foi uma sequência de tragédias, o que daria outro filme. Entretanto, o que importa para compreender o contexto em que foi redigido seu primeiro e mais famoso livro, está explícito no filme.

Cartaz do filme Frankenstein, 1931.

Contei quarenta e cinco filmes sobre ou filmes que têm como personagem o famoso monstro da obra de Shelley, depois parei de contar. Isso sem falar de desenhos animados, peças de teatro, livros que aproveitaram o personagem e outras menções. Aassisti algumas e, francamente, não gostei de nenhuma, exceto os filmes da Família Adams, em que Frankenstein é o nome do monstro verde. A subversão da criatura de Shelley naquele monstro praticamente acerebrado vem da primeira representação dele para o cinema, no filme Frankenstein, de 1931, dirigido por James Whale.

O personagem Victor Frankenstein levou o ditado “filho feio não tem pai”  à patamares inimagináveis. Ao visualizar a criatura que acabara de gerar de pé, respirando e com os olhos abertos, Victor fica desesperado e rejeita prontamente a criatura, cuja concepção lhe tomara os últimos dois anos de vida, consumindo sua saúde física e mental em um trabalho extenuante. Aquele ser idealizado a quem teve tanta dedicação, tinha a aparência monstruosa. De pronto, a criatura causou tanta repugnância em Victor que, ao invés de assumir o mau que acabara de causar ao mundo e àquele ser, fugiu abandonando-o.

A aparência física do personagem foi motivo de reações assustadas e violentas ao longo de toda a sua existência. Não importando o quão bom ele tentasse ser.

Outro Victor, criou um personagem que passava pelos mesmos percalços. Estamos falando de Victor Hugo e Quasímodo, personagem principal de O Corcunda de Notre Dame.

Capa do livro O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo.

Diferentemente do indivíduo inventado por Victor Frankenstein, Quasímodo foi gerado por uma mulher, em um processo de gestação comum. Na história de Victor Hugo, Quasímodo foi abandonado, recém nascido, na porta da Catedral de Notre Dame, provavelmente por sua aparência. A criança só tinha um dos olhos e o corpo retorcido e desproporcional.

Tocado por ter encontrado aquele pequeno ser desprotegido, o padre Frollo o adota e o vê crescer dentro da catedral.

Ao longo da história, várias situações extremamente desagradáveis acontecem a Quasímodo, tendo como único motivador sua aparência física.

Frankenstein é uma história de irresponsabilidade e obstinação. Uma vez tendo sido arrogante, obsessivo e inconsequente a ponto de conceber um ser vivo e depois não gostar do que fez e enjeita-lo, o próximo passo do Dr. Frankenstein foi tentar acabar com o objeto de sua rejeição, com igual dedicação.

O monstro, a seu tempo, teve sua trajetória lindamente construída por Shelley. A trama desenvolve com sensibilidade o como a criatura aprendeu a se virar e sobreviver e os motivos que levaram a desistir de ser bom. Esse personagem é bem mais complexo que o cientista que lhe dera a vida. De sua parte, depois de passar por muitos desafios, aprendizados e decepções, desenvolve também uma obsessão por seu inventor.

Poster do filme A noiva de Frankenstein, 1935.

As partes mais tensas e surpreendentes estão na fase em que um se torna a fixação do outro. A criatura, cansada de dar chances ou esperar alguma consideração de Victor, passa a destruir pouco a pouco a vida de seu criador. Faz disso sua razão de viver. Infligir dor a Victor Frankenstein é o único objetivo e ele o faz com planejamento e crueldade. Desesperado, e entendendo que a única chance de paz para si e para os seus é acabar com a vida que produzira, Victor passa a perseguir o monstro dedicando todas as energias para ter êxito nesse intento. Um só pensa no outro, até que a caçada dupla tem um comovente desfecho.

Esse clima de perseguição e atos imprevisíveis se parece com a energia que conecta as personagens Eve Polastri e Villanelle, na série Killing Eve.

Vilanelle é o pseudônimo de uma assassina de aluguel. Ela não é qualquer assassina, seus trabalhos são sempre bem executados e não seguem nenhum padrão, aliás, ela se diverte trabalhando e elaborando formas exóticas de cumprir as missões.

Poster de Killing Eve

Essa psicopata é contratada de uma organização que tem um plano secreto e precisa matar algumas pessoas específicas. Os assassinados são pessoas importantes, vão a lugares importantes e movimentam negócios milionários.

A organização tem outros matadores a seu dispor. Nenhum deles tem a sagacidade e o estilo de Villanelle. Ela é uma jovem de QI elevado, poliglota, adora moda, tem um padrão de vida luxuoso e sabe tudo sobre disfarces.

Na outra ponta da linha, está Eve Polastri, uma investigadora do MI5, serviço de inteligência britânico, despojada, casada com o professor Niko, não liga para roupas ou objetos caros e também é muito inteligente.

Eve vai se envolvendo na investigação e acaba encontrando um fio que outros investigadores não haviam percebido, ela é quem percebe que a assassina é uma mulher. Isso impressiona uma famosa detetive, que contrata Eve para conduzir a investigação em uma organização paralela.

Quando Villanelle percebe que achou uma adversária à altura, as duas passam a se investigar e a se interessar uma pela outra de forma bem pouco saudável. Os diálogos são muito inteligentes e as atuações brilhantes. Além de Eve e Villanelle, outras tantas personagens interessantes e complexas fazem também parte dessa trama, destaque para os chefes tanto a de Eve, Carolyn, quanto o de Villenelle, Konstantin.

Em um episódio da primeira temporada, Villanelle rouba a mala de Eve, os desdobramentos desse roubo são sensacionais e surpreendentes. Nada de tédio nessa série, pelo menos até agora. Killing Eve está em sua terceira temporada a caminho da quarta.

Killing Eve ganhou vários prêmios desde sua estreia, entre eles o Emmy de melhor atriz em série dramática para Jodie Comer (Villenelle) e um Globo de Ouro, também de melhor atriz de série dramática, pra a outra protagonista interpretada por Sandra Oh (Eve).

Uma peculiaridade de Killing Eve é que a produção executiva muda a cada temporada. Phoebe Waller-Bridge, atriz e escritora da série Fleabag, foi a show runner e uma das roteiristas da primeira temporada. A segunda temporada  foi executada pela recém vencedora do Oscar de melhor roteiro original por Bela Vingança, Emerald Fennel.

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Tradução: CAETANO, Rafaela. São Paulo: Excelsior, 2019.

HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame. Tradução: BASTOS, Jorge. São Paulo: Zahar, 2015.

WHALE, James. Frankenstein. EUA: Universal Studios, 1931.

MANSOUR, Haifaa Al. Mary Shelley. Reino Unido: Netflix, 2017.

GENTLE, Sally Woodward; MORRIS, Lee;  WALLER-BRIDGE, Phoebe; FENNEL, Emerald; MINGACCI, Gina & THOMAS, Damon. Killing Eve. EUA e Reino Unido: BBC, 2018-atual.