
Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… (1978)
“Tomei Atze e Lufo como modelos. Não queria voltar ao ponto em que me encontrava antes do tratamento, completamente arruinada. Imaginava que, se fizéssemos como Atze e Lufo, Detlef e eu teríamos também, um dia, um belo apartamento atapetado com uma grande cama, sofá e poltronas. Para completar, esses dois caras não eram tão agressivos quanto os outros toxicômanos. E Atze tinha uma menina, Simone, que era muito legal e não se picava. Eles se entendiam bem, e eu achava isso sensacional. Gostava de ir à casa deles, e quando brigava com Detlef ia dormir lá, no sofá. Uma noite, ao voltar para casa com muito bom humor, minha mãe estava me esperando na sala de estar. Sem falar nada, ela me deu um jornal. Entendi. Ela sempre fazia isso quando havia um artigo anunciando uma morte por overdose. Isto me irritava, pois não queria ler este tipo de coisas. Apesar de tudo, peguei o jornal. Li: “O aprendiz de vidraceiro Andreas W., de dezessete anos, queria escapar das malhas da droga. Sua amiga, uma jovem assistente de enfermagem, de dezesseis anos, tentava ajudá-lo. Seus esforços foram em vão. O jovem tomou a picada da morte no belo apartamento que seu pai tinha, a muito custo, arrumado para o jovem casal…” Não me dei conta imediatamente… não queria acreditar… Mas não tinha erro: tratava-se de Andreas Wiczorek, Atze.”
HERMANN, Kai; RIECK, Horst & FELSCHERINOW, Christiane. Eu Christiane F., 13 anos, Drogada, Prostituída…
Não coloquei o subtítulo do livro no título desse texto de propósito. É que falaremos de dois livros, cujo título é o mesmo e os subtítulos são respectivamente: “13 anos, drogada, prostituída…” e “A vida apesar de tudo” .
Em ambos os casos o tema é a vida de Christiane Vera Felscherinow, uma mulher alemã, que hoje tem sessenta anos de idade e cuida da própria vida.
O primeiro livro foi lançado em 1978, quando ela tinha apenas 16 anos, o segundo em 2013. Ambos tiveram o suporte de jornalistas em coautoria. Em 1978 foram Kai Hermann e Horst Rieck e em 2013 Sonja Vukovic.
Final dos anos 70, Europa ainda colhendo os frutos do pós-guerra, sobretudo na Alemanha que além de destruída foi dividida entre capitalistas e socialistas. Dois jornalistas alemães estavam tentando fazer uma reportagem sobre o vício em heroína entre os jovens berlinenses e, como parte do trabalho, foram assistir a depoimentos de jovens viciados em um fórum. Naquele momento os jovens viciados eram testemunhas de acusação em um caso de abuso de menores. Eis que lá, os jornalistas se depararam com uma menina de quinze anos bastante eloquente. Impressionados com os relatos, solicitam a ela uma entrevista, que deveria durar duas horas.
Ela topou. e a entrevista de duas horas se desdobrou em um trabalho de dois meses que tornaria sua história em um livro.
Parte do trabalho das entrevistas e registros aconteceram fora de Berlin, na cidade para onde Christiane havia sido enviada pela mãe para morar com parentes no interior da Alemanha numa tentativa desesperada de desintoxicar a filha.
Pensa numa pessoa sem censura, ela contou tudo, detalhes. O livro é uma facada na alma. Ele escancara um problema social e de saúde pública na Alemanha. As vítimas estavam cada vez mais novas. Aquela obra era inovadora, principalmente, porque humanizava os viciados. Pode-se dizer que Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… mudou a perspectiva sobre o vício em drogas altamente viciantes, ou drogas pesadas como nomeia o livro. Vale dizer que o vício mais pernicioso dela era em heroína, mas junto com essa substância ela ingeria quantidades massivas de comprimidos estimulantes e calmantes, maconha, haxixe, álcool e sei lá mais o que.
As pessoas que torciam o nariz e consideravam que aqueles seres muito magros, descorados, com olheiras escuras, que pediam dinheiro, cometiam pequenos furtos ou até mesmo se prostituíam pelas ruas de Berlin descobriram que eles eram jovens como quaisquer outros. Alguns, inclusive, oriundos de famílias com boas condições financeiras.
Uma coisa que chama atenção é a consciência da jovem Christiane de que no país dela ninguém morreria de fome, existem os auxílios do governo, ou seja, não era a miséria que induzia àquele comportamento. Embora ela viesse de uma família de baixa renda que morava em um conjunto habitacional com outras 45 mil pessoas, o combo que levou essa menina e seus amigos à um modo de vida degradante eram outras dezenas de fatores, sendo o principal a falta de opções para tornar interessantes a vida dessas pessoas de tão pouca idade, numa fase em que todos estão ávidos por experiências, aceitação e atenção.
Pronto, o livro foi um best seller instantâneo, que vende super bem até hoje, 44 anos depois. Christiane tem vivido da renda obtida com ele e suas derivações, desde 1978.
Então, por que lançar um outro livro tanto tempo depois?

Eu, Christiane F.: A vida apesar de tudo.
Claro que ela devia saber que seu segundo livro venderia bem também, mas apesar de ser grata por sua condição financeira, Christiane ficou tão famosa, como uma “Junkie Star” (palavras dela), que isso teve consequências positivas e negativas. Sua história pós-lançamento do primeiro livro, estava sendo contada por outras pessoas e muitas vezes de forma sensacionalista e mentirosa. Com jornais vendendo tiragens imensas com manchetes do tipo “O cachorro de Christiane F. me mordeu”, ou o caso de 2008 quando ela perdeu a guarda do filho. convém ressaltar que a versão da própria Christiane para esse caso é bem diferente da divulgada pela imprensa mundial. O relato dela está no livro Eu, Christiane F.: A Vida apesar de tudo e a notícia da época pode ser lida em fontes como o Der Spiegel ou O Globo.
Christiane conheceu muita gente importante, teve oportunidades de trabalho interessantes e amigos leais? Sim. Sofreu preconceito porque todo mundo sabia quem era ela e o que tinha sido sua vida? Sim. Foi para sempre perseguida por jornalistas? Sim. Esse preconceito se estendeu a pessoas próximas, como amigos e o filho? Sim também.
Um dia, quando já tinha 51 anos, bateu à sua porta a quase jornalista Sonja Vukovic, estagiária do Der Spiegel, importante jornal alemão. Sonja omitiu essa condição de ainda ser estudante declarando-se jornalista. O caso do primeiro encontro das duas é ótimo.
Sonja disse que bateu o interfone de Christiane, se apresentou conforme já relatado. Christiane disse que estava em uma hora complicada, mas que se ela deixasse o cartão ligaria de volta.
Então Sonja pensou: deixo o cartão ou subo as escadas e tento bater na porta dela? Optou por deixar o cartão, ainda que o cartão denunciasse sua condição de estagiária. E não é que Christiane ligou e marcou um encontro?
No tal encontro, Sonja e um amigo também jornalista, esperaram pela convidada que atrasou mais de uma hora e quando finalmente chegou falou como uma matraca, emendando um assunto no outro, por horas.
Fica muito claro que Christiane é uma pessoa comunicativa, tanto pelo encontro com Sonja, quanto pela entrevista de duas horas que durou dois meses para Kai Hermann e Horst Rieck.
O segundo livro vai contar a história dela do ponto em que para o primeiro. Depois do livro de 1978 ela passou cinco anos limpa de heroína, consumindo outras drogas mais leves. Nesse tempo, o livro virou filme e ela viajou com os autores e a equipe do filme para divulgação, sobretudo nos EUA. Fala da diferença do consumo de drogas na Europa e nos Estados Unidos. Depois voltou ao vício com força total, morou na Grécia dentro de uma arvore oca com um namorado de lá. Foi presa algumas vezes, se limpou da heroína e recaiu outras tantas, contraiu Hepatite C, teve um filho, perdeu a guarda do filho (essa história é insana). Enfim, Christiane tem o que pode se chamar de uma vida agitada.
A discrição do que ela chama de “cena” nos países por que passou é muito interessante para quem gosta de uma história junky. Outra coisa que torna os livros interessantes são as referências musicais e artísticas em geral.
David Bowie é a referência mais conhecida, por ter sido o grande ídolo da juventude dela e também porque foi ele quem preparou a trilha sonora do filme no qual também atua.
Em A vida apesar de tudo ela cita nomes que ela conheceu ou até mesmo que fizeram parte de seu cotidiano: o próprio David Bowie, a banda Depeche Mode, Nina Hagen, Anna e Daniel Keen e tantos outros.
Christiane fez parte de uma banda punk (bem ruinzinha) e atuou em dois filmes: A cidade de Neon e Decoder. Nenhum dois dois pode ser considerado um sucesso.

Christiane em Neonstadt (A Cidade de Neon)
É possível assistir Decoder com legendas em espanhol no Youtube, é um filme distópico meio ficção científica. A Cidade de Neon (Neonstadt) faz parte do catálogo do Mubi, parece que a participação dela aqui foi só uma ponta.
Hoje ela mantem e empresta o nome para uma fundação que trabalha para manter jovens ocupados e longe do vício: F Foundation. Essa fundação tem até uma lojinha de camisetas para arrecadar fundos.
Li o primeiro livro Eu Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída (Wir Kinder vom Banhof Zoo – Nós crianças da estação Zoo) numa idade entre 14 e 16 anos, não sei exatamente, emprestado de uma amiga. Na época também fez sucesso o filme Diário de um Adolescente, que também é inspirado em um livro chamado The Basketball Diaries, do escritor Jim Carroll. Esse livro/filme conta a história real do escritor. É a publicação do diário que ele mantinha na adolescência. Jim Carroll, que também foi um viciado em heroína foi interpretado por Leonardo Di Caprio, o muso teen da época.
Devo dizer que foi certamente esse o livro que me transformou em uma grande leitora. Eu já era boa leitora antes, mas depois desse passei a devorar livros. O colégio em que estudava me permitia acesso à biblioteca da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a sessão de literatura, ainda mais para uma adolescente, era um deleite.
Dos 3 aos 14 anos, estudei em uma escola católica, bem conservadora mesmo. Nos dois últimos anos de educação carmelita, tinha uma matéria chamada Atualidades Educacionais, e o conteúdo era bem diversificado, ia de meio ambiente a política e passava por tópicos comportamentais aí se encaixavam as drogas e educação sexual. Sobre essa parte comportamental, a intenção da escola pode ter sido boa, mas era um tom que realmente não ajudava. Era tudo meio ameaçador do tipo: você vai morrer de overdose ou você vai se tornar mãe e sua vida acabará. Fora as fotos de gonorréia e outras perebas em estágio avançado. Enfim, uma escola católica no início dos anos 90. Vou dizer que dois anos de discurso de terror, proferidos por uma adulta, não tiveram um cisco do efeito que Christiane F. e sua história real, narrada por uma adolescente, teve no meu imaginário. Esse livro teve um efeito benéfico na minha relação com as drogas lícitas e ilícitas muito maior que qualquer orientação que eu possa ter recebido de um adulto.
E sabe quem concorda com essa perspectiva? Supla. Ele afirmou recentemente que desde que assistiu ao filme Eu, Christiane F., 13 anos drogada e prostituída decidiu que nunca experimentaria drogas injetáveis. Ele foi menos radical, mas dá para ter uma ideia do poder de impressionar pessoas que essa história tem.
Quando o filme foi lançado, essa pessoa que vos escreve tinha apenas um ano de idade. Depois que li o livro e me informei de que havia um filme, até procurei para assistir, mas era mais complexo naquele tempo. Não consegui o VHS e depois acabei esquecendo.
Eis que esse ano, 2022, a versão remasterizada comemorativa de 41 anos do filme voltou aos cinemas e aí eu fui. Acho inclusive que ainda está em cartaz.
O filme é, obviamente, uma versão resumida. Por exemplo as tentativas de desintoxicação se resumem a apenas uma. Sobre as mudanças em relação ao livro a adaptação do roteiro me causou ótima impressão. O que importa está ali muito bem costurado. Os personagens principais representados e bem caracterizados. É um filme da década de 80 que pela qualidade poderia facilmente ter sido feito esse ano. Muito bom. Muito impressionante. Foi por causa dele que procurei de novo o primeiro livro e acabei lendo também o segundo.
Christiane F. se tornou o símbolo de uma geração, de uma questão social grave. Não é porque a heroína não emplacou no Brasil que estamos fora daquela realidade. Talvez aqui isso possa ser encaixado no uso de crack. Muda a droga, repetem-se os problemas.
Esse assunto continua na parte 2, porque esse texto já está enorme.
Abaixo deixo links com vídeos onde aparecem alguns dos personagens reais que compõe a história complicada dessa mulher fascinante e trailers dos filmes aqui comentados, exceto Neonstadt, porque não encontrei.
HERMANN, Kai; RIECK, Horst & FELSCHERINOW, Christiane. Eu Christiane F., 13 anos, Drogada, Prostituída… Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
FELSCHERINOW, Christiane & VUKOVIK, Sonja. Eu Christiane F.: A vida apesar de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
EDEL, Ulrich. Eu Christiane F.: 13 anos, Drogada e Prostituída. Alemanha e EUA: 1981.
KAUFMAN, Avy. Diário de um adolescente. EUA: New Line Cinema, 1995.
12/09/2023 at 02:28
verygood the website i like it so much
gostei muito do seu site parabéns