Eu, Christiane F.: A vida apesar de tudo.

“A apenas dez minutos a pé da movimentada rua da estação, no estreito passeio entre o Museu Nacional Suíço e o ponto exato em que o Sihl desagua no Limmat, esse era o cenário macabro do maior e mais escancarado ponto de droga da Europa. No final da década de 1980, o parque do Platzspitz se tornou o ponto de encontro de viciados expulsos de outros lugares. Por muito tempo tolerados pela polícia e pelos políticos, os drogados vinham de toda a Suíça e do exterior. A maioria vivia na pobreza e financiava o vício com roubos ou prostituição. Na margem dos rios, várias pequenas comunidades foram construídas com caixas e coisas jogadas fora, pois a maior parte dos viciados não contava com abrigos na época. As habitações provisórias eram regularmente derrubadas pela polícia, mas as autoridades começaram a temer que o Platzspitz acabasse se tornando uma área marginal livre. O reduto foi se tornando mais violento na medida em que a cocaína substituiu a heroína no mercado. (…)

No final dos anos 1980, essas tristes cenas foram manchete na imprensa internacional, e o Platzspitz, no centro da rica Zurique, ganhou uma horrível reputação (era chamado Needle Park). Foi então criado o Zipp, um projeto municipal de intervenção contra a AIDS. Nos antigos banheiros do parque, médicos, atendentes, assistentes sociais e voluntários distribuíam seringas limpas, compressas e pomadas cicatrizantes. Três ou quatro vezes por dia Drögeler desacordados reanimavam, tratavam das feridas e aplicavam testes de HIV. Trocavam num dia até quinze mil seringas usadas por novas, davam conselhos sobre tratamentos com metadona, informavam sobre as ajudas sociais e programas de desintoxicação. Outras organizações forneciam refeições quentes e bebidas. Foi como aqueles homens e mulheres tentaram conter o vício e as doenças. Overdoses, infecções, aids e hepatites: o consumo de drogas se tornou a primeira causa de mortes para pessoas de certa faixa etária. Zurique tinha o percentual de portadores de HIV mais elevado da Europa. Para resolver o problema, alguns políticos pediram a legalização controlada da heroína, outros exigiam a internação e desintoxicação forçada dos Drögeler. Especialistas e pessoas que trabalhavam no local eram contra a coerção e a repressão em Platzspitz. Para eles, é justamente tendo um ponto central que se pode controlar melhor e ajudar os toxicômanos. Mas o prefeito via de forma diferente o problema e, em 5 de fevereiro de 1992, ordenou uma blitz e a limpeza do parque. Com cassetetes, jatos de água e tiros de borracha, a polícia lavou Platzspitz dos seus lixos, fedores e cadáveres — espalhando toda a sua fauna desvairada pelo centro da cidade.”

FELSCHERINOW, Christiane & VUKOVIK, Sonja. Eu Christiane F.: A vida apesar de tudo.

Como mencionei no texto anterior, Eu, Christiane F., 13 anos, Drogada, prostituída… foi um livro que aumentou meu gosto pela leitura lá na década de 90, quando o li pela primeira vez.

Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… (1978)

Nessa releitura, agora em 2022, constatei que continua sendo um livro excelente, principalmente porque é uma história real. Na época as referências musicais citadas no livro não me diziam muita coisa, mal mal eu sabia quem era David Bowie. Agora ele é também um ídolo meu. Inclusive recomendo a biografia dele, escrita por Marc Spitz, até para entender essa passagem dele por Berlim, que teve impactos tanto na vida de Chistiane quanto na do próprio Bowie.

O mais interessante, e credito a isso a maturidade e ao conhecimento aleatório adquirido com o tempo, foi perceber os subtemas e o tanto te obscurantismo e crimes que rodeiam essa história, redigida em 1978. Tem mentalidade adolescente, música, moda, tráfico de drogas, Alemanha no pós-Guerra, Alemanha dividida, violência doméstica, abuso de menores e por aí vai…

É um livro sobre o uso de drogas altamente viciantes por adolescentes e esse é o tema principal. Nessa linha, já indiquei no texto passado o filme Diário de um Adolescente (1995) e indico aqui o filme Querido Menino (2018). Esse último foi inspirado em dois livros. Um escrito pelo “menino”, Nic Scheff, hoje ex-usuário de metanfetamina, Tweak: Growing up on Methanfetamines. O outro pelo pai dele, David Scheff, jornalista da Rolling Stone, que escreve da perspectiva do pai desesperado para salvar o filho: Querido Menino. No filme,  o filho é interpretado por Timothé Chalamet (muso teen dos dias atuais) e o pai por Steve Carell.Chorei uns três baldes. Na boa, Steve Carell não deveria mais fazer comédias. O cara é muito bom em papeis dramáticos, pelamordedeus. Querido Menino está disponível no Prime Vídeo.

Nic Shceff escreveu mais um livro de memórias além daquele citado acima. Infelizmente, nenhum deles foi traduzido para o português ainda.

Ainda não li os livros, estão na minha lista para um dia desses quem sabe.

Retomando os temas periféricos, quando se examina as condições em que aqueles adolescentes alemães da década de 1970 trabalhavam vendendo sexo na estação Zoo, é de dar engulhos. Os clientes, não são apenas clientes, são pedófilos. Pedófilos que se servem da situação de desespero dessas crianças.

Em alguns trechos Christiane explica quem conseguia pagamentos melhores, em outros fala de homens que tinham meninas fixas e faziam o pagamento em heroína. A preferência deles era pelas mais novas. Quanto mais cara de criança, mais a menina ou menino teria retorno financeiro.  Ela também comenta que quando retornava à “cena” depois de passar por desintoxicação, sempre chegava com um ar mais saudável e era nessas ocasiões que faturava mais. Outra informação é que as crianças que se prostituíam preferiam entrar em carros que tinham cadeirinha de bebê, porque era um indicativo de que o cliente, dono do carro, não ia querer problemas ou escândalos.

A audiência judicial em que Hermann e Rieck descobriram Christiane era uma em que ela era testemunha de acusação contra o pedófilo que usufruía dos serviços de uma amiga dela da mesma idade, na época 15 anos.

Esse tema lembrou outro caso, bem mais antigo. Na primeira década do século XX uma menina se mudou com a mãe e um irmão para Nova York. Ela, que tinha 14 anos, trabalhava como garçonete. Foi nesse contexto que foi vista e apadrinhada pelo arquiteto mais badalado da cidade naquela época. Essa menina, viria a ser a primeira It Girl do mundo e ficaria conhecida como Evelyn Nesbit.

Evelyn Nesbit

Esse caso ficou conhecido primeiro porque de cara já envolvia Evelyn Nesbit que era a modelo preferida de fotógrafos e pintores, além de ter também atuado e cantado. Segundo, porque acabou em desastre. O tal arquiteto, que se chamava Stanford White (só para constar é o rapaz que projetou o Madison Square Garden e outros tantos prédios icônicos de Manhattan), foi assassinado pelo então marido de Evelyn, o socialite Harry Thaw.

A melhor fonte para esse que ficou conhecido como o Julgamento do Século é um livro, que não tem tradução para o português, e se chama American Eve: Evelyn Nesbit, Stanford White, the Birth of the “It” Girl, and the Crime of the Century, escrito pela historiadora Paula Uruburu. Muitos relatos dão conta de que Evelyn era amante de Stanford, que a alçou ao estrelato, e que depois se casou com Harry, que “enciumado” matou o ex-“amante” da esposa com um tiro a queima roupa em um concerto no Madison Square Garden.

American Eve

Quando a gente vai fuçando, descobre que sim, quem recomendou e transformou a garçonete em estrela, foi Stanford White. É preciso frisar que se ela não tivesse talento não teria prosperado como prosperou. Ele fez a apresentação, mas o mérito é dela. Aí, cavando mais um pouquinho, descobrimos que ele, arquiteto renomadíssimo, com mais de quarenta anos de idade se tornou amante dessa linda garota de quatorze. Oi?

No início a mãe dela sempre acompanhava a filha e a relação de Evelyn e Stanford era meramente amigável. Até um dia, em que ele a atraiu para sua casa, sem a mãe com uma desculpa de um jantar para apresentá-la a pessoas importantes para a carreira dela e… advinha? O jantar era para dois convidados apenas. Nessa noite ele dopou e estuprou a então virgem Evelyn Nesbit. Daí, ela, menina dos anos 1900, pobre, ficou desesperada e entendeu que sua única opção era continuar com ele. A mãe, ao que parece, fez vista grossa, afinal elas nunca tiveram condições financeiras tão boas.

O Julgamento do Século ficou assim conhecido porque nele Evelyn foi obrigada a narrar no fórum como eram suas relações com o Senhor White. Incluindo um detalhe de um balanço de veludo vermelho. Esse crime foi transformado em filme O Escândalo do Século (1955), título original The Girl in the Red Velvet Swing. Joan Collins interpretou Evelyn Nesbit.

Segundo as fontes da época consultadas por Paula Uruburu, foi um julgamento muito explorado pela mídia e os detalhes foram amplamente divulgados vendendo tiragens absurdas de jornais e revistas.

Sobre Harry Thaw, esse também era uma pessoa péssima, mas por outros motivos. Quem sabe podemos falar dele em outra ocasião.

A autora de American Eve, conta que um taxista da época ao saber do assassinato a queima roupa de Stanford White disse a um jornalista algo como: “Foi um marido? Sempre achei que isso ia acontecer, mas achei que seria um pai.” Tamanha era a fama de Stanford White como abusador de crianças.

Saindo desse para outro assunto muito presente nos dois livros, é preciso comentar a importância da moda na vida de Christiane.

Gente, vou precisar dizer que as jaquetas que personagem principal usou no filme… queria todas. O figurino do filme é muito legal.

Depois da onda de sucesso do filme Chistiane F. junto com o aumento exponencial do consumo de heroína por pessoas no mundo todo, incluindo artistas de grande visibilidade, veio um novo conceito de moda que ficou conhecido como Heroin Chic. Olha o desserviço!

O mundo já tinha visto roupas com temática rock’n’ roll ganhar as ruas, mas não as passarelas, além do mais até meados dos anos 90 as modelos, apesar de bastante magras, tinham um aspecto de saudáveis. Lembra? Cindy Crawford, Elle Macpherson, Naomi Campbell, Claudia Schiffer e tals.

Super modelos dos anos 90 – Linda Evangelista, Cindy Crawford e Claudia Schiffer

 

A era das supermodelos coradas e provocantes, foi aos poucos dando espaço a um estilo milimetricamente pensado para parecer desleixado, as modelos não eram exatamente brancas, eram pálidas, com olhos carregados de maquiagem, muito magras. Passou a ser chique o after party. Jovens saiam para a rua com cara de quem está voltando de uma farra homérica.

Ícones desse tempo são a modelo Kate Moss, os fotógrafos Corrine Day e Davide Sorrenti e sua namorada a modelo Jamie King. Davide Sorrenti morreu de overdose de heroína aos 22 anos.

Glamourizar o uso de drogas e a degradação dos corpos jovens foi um enorme desserviço a humanidade. Distúrbios alimentares aumentaram exponencialmente nessa época. Era cool parecer um viciado.

Christiane já achava cool ser uma viciada nos anos 1970. Era para pertencer à turma, ganhar o respeito dos frequentadores da discoteca Sound e da estação do Zoo. E ela comenta muito a importância e a diferença do visual dos amigos e das outras tribos. Chega a chamar as roupas que ela gostava de uniforme de viciada. Lá por volta de 1976 a moda era mais para Glam rock do que para Heroin Chic.

Acho essas roupas bem legais para dizer a verdade. O problema são as fotos e a magreza excessiva. O culto aos corpos intoxicados e supermagros.

Uma das formas de Christiane se mostrar útil aos amigos junkies da Estação Zoo era se oferecer para apertar seus jeans. As calças tinham que ser muito justas e ela sabia costurar, então à medida que as drogas consumiam os músculos e os usuários de heroína, incluindo ela, emagreciam muito, ela ia apertando as roupas para que eles continuassem mantendo o visual que os identificava como uma tribo.

Kate Moss, por Corrine Day

Em uma das temporadas de desintoxicação, ela vai para a casa da avó em uma cidade menor e passa lá muito tempo. Claro que ela engordou, porque desintoxicada voltou a comer. As roupas que levara não serviam mais, teve que usar as da prima. Ela comenta que achou as calças xadrez horrorosas, mas era o que servia. Teve que passar aquelas semanas na casa da avó sem o “uniforme”.

Até o final de Wir Kinder Vom Banhof Zoo (nome original do livro de 1978 que quer dizer ‘Nós crianças da estação Zoo’), Christiane achava os punks, que começavam a se destacar em Berlim,  simplesmente péssimos, pela estética e por serem violentos demais. Não entendia como alguém poderia se identificar com aquele pessoal. E não é que a Senhorita Felscherinow mudou de ideia depois dos 18 anos, tendo inclusive tentado a carreira de cantora de música punk?

Quem nunca falou uma coisa quando era muito novo e depois fez exatamente o contrário que atire a primeira pedra. Mick Jagger feelings!

Em A vida apesar de tudo, ela cita pessoas que tinham dinheiro para vestir Vivienne Westwood, que ficou famosa fazendo os figurinos do Sex Pistols e hoje é uma das estilistas mais caras do mundo. O vestido de casamento chiquérrimo de Carrie Bradshaw no primeiro filme de Sex and The City era um Westwood. O filme é ruim o vestido é um bafo.

Vivienne Westwood

Uma das pessoas que foi visitar Christiane no presídio quando ela foi presa no final da década de 80, foi a cantora punk Nina Hagen, que foi parte da banda Tokyo. Quando digitei no Google “Nina Hagen” e pedi imagens advinha quem apareceu em várias fotos com ela? Ele aqui de novo: Supla.  Supla e Christiane F. têm uma amiga em comum! Ao contrário das músicas gravadas por nossa protagonista, as de Nina Hagen são boas. Ela participou de uma das gravações da música “Garota de Berlim” junto com Supla.

Nessa fase punk, Christiane morou em Zurique por um tempo, cidade que ela considerava mais junky que Berlim e que tinha um parque onde o consumo e a venda de drogas era escancarado. Ela descreve o estado de saúde das pessoas que frequentavam aquela área e cita os corpos mortos por overdose que a polícia retirava de lá cotidianamente. É bastante chocante.

Um belo dia a prefeitura de Zurique expulsou os drogados do Platzpitz espalhando-os por toda a cidade o que desagradou profundamente aos moradores dos bairros para onde eles se dirigiram. Do jeitinho que a prefeitura de São Paulo fez com a Cracolândia poucos anos atrás. Deu ruim em Zurique na década de 1980, deu ruim em São Paulo nos anos 2010.

Para terminar o culto a esse que é um dos meus livros da vida e do qual fiquei muito feliz em reler e reafirmar que é realmente maravilhoso, tanto para leitores adultos quanto para os adolescentes,  vamos citar uma frase… uma única frase que era repetida pelos traficantes da feira de drogas do parque Platzpitz e juntar com o também maravilhoso e bem humorado Bezerra da Silva. A autora narra que vendedores de cocaína ficavam gritando como feirantes gritam para propagandear tomates: “Coca, coca, coca da boa!”. Como não lembrar do samba Overdose de Cocada? Viva Bezerra da Silva!

HERMANN, Kai; RIECK, Horst & FELSCHERINOW, Christiane. Eu Christiane F., 13 anos, Drogada, Prostituída… Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

FELSCHERINOW, Christiane & VUKOVIK, Sonja. Eu Christiane F.: A vida apesar de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

GROENINGEN, Felix Van. Querido Menino. Amazon Studios: EUA, 2018.

URUBURU, Paula. American Eve: Evelyn Nesbit, Stanford White, the Birth of the “It” Girl, and the Crime of the Century. EUA: Riverhead Books, 2009.

FLEISHCER, Richard.The Girl in the Red Velvet Swing. EUA, 20th Century fox, 1955.