Foto do livro Drácula

“Enquanto íamos para casa, relatei os acontecimentos recentes e como meu próprio diário foi útil, por sugestão da Sra. Harker. Nesse ponto o professor me interrompeu:

 

– Ah, extraordinária madame Mina! Tem cérebro de homem, prodigioso, aliado a coração de mulher. O bom Deus cria alguém assim com propósito especial, acredita brindar com essa rica combinação. Amigo John, temos sorte de contar com ajuda dela até agora, mas a partir de hoje, não deve mais se envolver nessa história pavorosa. Não podemos permitir tamanho risco. Nós, homens, estamos determinados, ou melhor, comprometidos a destruir o monstro. Mas isso não é tarefa de mulher. Mesmo que nada aconteça, o coração pode não suportar tanto horror e ela sofre depois, tanto na vigília, com nervos, quanto no sonho, com pesadelo. Além do mais, é jovem recém-casada e tem outras coisas para fazer. Diz que ela faz transcrições e por isso, está com a gente mais tarde. Mas, amanhã, diz adeus a esse trabalho e seguimos sozinhos.”

STOKER, Bram. Drácula. p. 275.

 

Só de ler o título, nós leitores do século XXI, já sabemos qual o final da história. Não é spoiler nenhum contar que no final o rei dos vampiros será finalmente morto com uma estaca cravada em seu coração, depois de ter feito muita gente comer o pão que o diabo amaçou, sem nem mesmo entender por que estavam metidos naquela desgraceira toda.

Então como Drácula prende a atenção do leitor? Bram Stoker cumpriu belamente essa missão contando a história por meio de diários, cartas, notícias de jornal com muitos narradores diferentes e todos sem saber o que ocorreria no futuro. O leitor acompanha dia após dia os personagens vivendo suas vidas sem a menor pista do que será o dia de amanhã. É lindo de ser lido.

Um jovem advogado viaja para a Transilvânia, na Romênia, para vender uma mansão londrina a um conde que é o ricaço de sua região. Ok! Tarefa aparentemente simples, certo? Errado!

Capa de O Castelo

O início do livro quando Jonathan Harker chega à Romênia se parece com o livro O Castelo, de Franz Kafka.

Todas as pessoas são esquisitas e agem de maneira aparentemente enlouquecida. Em Drácula, os habitantes da Transilvânia, em especial os que trabalham na estalagem em que Jonathan se hospeda, começam a ter atitudes esquisitíssimas ao serem informados do objetivo do advogado inglês naquelas cercanias. Pessoas imploram para que ele não vá ao castelo, outros o presenteiam com crucifixo, alho e outros badulaques, que dificilmente seriam vendidos em lojas de presentes. Depois o cocheiro parece não querer levá-lo a seu destino apesar de ser pago para isso e os outros passageiros também ficam muito desconfortáveis ao saber o destino final do nosso personagem.

Em O Castelo, o personagem principal chamado simplesmente de K., é um agrimensor contratado para trabalhar em um castelo para o conde local.

Quisera o Sr. Harker ter a mesma sorte de K.

Para variar, Kafka escreve uma história louca, e nessa trama K. não consegue chegar ao castelo porque as pessoas que vivem na cidade meio que impedem que isso aconteça das mais variadas formas.

Confesso que O Castelo foi um livro difícil de ler. A primeira vez que tive contato com a obra foi em 2010, quando o amigo Victor me emprestou seu exemplar, li uma parte e devolvi sem terminar. Retomei alguns anos depois, li mais um tanto e larguei de novo.  Mais um par de anos e tornei a dar uma chance a O Castelo e finalmente ele acabou. É verdade que demorei muito menos para ler Anna Kariênina (Liev Tolstoi), que deve ter o triplo do tamanho. Talvez eu e K. tenhamos levado o mesmo tempo para concluir nossas missões. Brincadeira! Não vou contar se ele chega ou não ao castelo. No fim das contas a leitura de O Castelo foi bem satisfatória.

O fato é que Sr. Harker chega ao castelo do Conde Drácula no tempo previsto. E aí, meus caros, é só ladeira abaixo.

O Sr. Harker é um dos personagens principais, os outros são Mina Harker, Dr. Seward e Dr. Van Helsing. É por meio dos pensamentos desses quatro personagens que a trama é tecida. Lucy, amiga de Mina, também escreve um diário e se corresponde com Mina, sendo uma coadjuvante de grande importância.

Pontos que me incomodaram ou chamaram a atenção: o paternalismo/machismo em relação a Mina Harker, o tratamento dado ao personagem Quincey Morris e aos moradores da Transilvânia. Talvez tudo isso tenha sido intencional, para mostrar a contradição dos sabichões da trama? Talvez.

Como já foi dito nesse site em outras ocasiões: é preciso contextualizar. Essa obra foi escrita no século XIX, por um homem inglês bem sucedido (vide 20 Mil Léguas Submarinas e Frankenstein). Por tanto, para apreciar a leitura é preciso tentar raciocinar com os olhos da época, o que não impede de problematizar, e evoluir enquanto lê.

Vamos a Mina Harker. Claramente a mais inteligente entre os caçadores de Drácula. Digo isso porque mesmo não tendo o preparo acadêmico ou a mesma quantidade de aventuras no currículo que os personagens homens, é capaz de fazer deduções tão ou mais brilhantes que eles (vide epígrafe). Ela impressiona o Dr. Van Helsing que não esperava tamanha perspicácia de uma mulher. Tanto que ele se refere a ela várias vezes como tendo o cérebro de um homem (Oi?!).

Mesmo sendo muito inteligente e fundamental os colegas de caçada várias vezes escondem fatos dela ou tentam protegê-la dos perigos da empreitada, tendo que sempre por os rabos entre as pernas e voltar a informá-la dos detalhes em busca de auxílio na interpretação dos fatos.

Capa de 20 Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne

Quincey Morris é o único personagem não europeu, é estadunidense. E apesar de ser rico e ter um certo refinamento em relação ao personagem Ned Land de 20 Mil Léguas Submarinas, por exemplo, é o bronco da turma. É o impetuoso inconsequente, necessário para o andamento da história.

Sobre preconceitos, cabe um comentário especial dedicado aos romenos não vampiros. Vejam bem: estamos falando de um grupo de pessoas abastadas, refinadas e estudadas, que descobre ser real a existência de um monstro imortal que tem medo de sol, artefatos católicos e alho. Ou seja, acabaram de descobrir que várias “superstições” são verdadeiras.

Essa constatação sobre a veracidade das superstições levaria à óbvia conclusão que o povo romeno estava certo o tempo todo. Deveria vir acompanhada de um pedido de desculpas por terem subestimado  as crenças locais e quem sabe até um papo mais aprofundado que teria poupado muito tempo dos nossos heróis em seu intento de acabar com o lorde das trevas. Entretanto, não foi o que se sucedeu. Eles estavam, simplesmente, caçando um vampiro em terras romenas e desdenhando da fé local, taxando-os de supersticiosos, irracionais e, por tanto, inferiores.

Ah, mas a Romênia fica na Europa! É verdade, no leste Europeu, que é tipo uma Sub-Europa, cheia de gente quase europeia, na concepção do inglês do século XIX.

Van Helsing também não é inglês, é holandês, sendo assim, vem da parte nobre da Europa. É o senhor mente aberta, o mais culto de todos, que é capaz de saber quais superstições vale a pena testar, considerando o inusitado da situação em que se meteram.

Esse personagem é construído brilhantemente por Bram Stoker. Ele não fala como os outros. A escrita das partes narradas por Van Helsing é mais truncada, com verbos mal conjugados e concordâncias erradas. Como um homem que fala bem outras línguas, mas não tem o inglês como língua materna. É plenamente possível compreender o que Van Helsing diz, porém exige um raciocínio a mais. Às vezes é como se ele falasse profeticamente, como outros personagens tidos como guias nas mais diversas histórias. Exemplos desse recurso do sotaque estrangeiro para conferir sabedoria são: Mestre Yoda (Star Wars), Sr. Miyagi (Karatê Kid) e Dr. Z. (Que Monstro te Mordeu?).

Que Monstro te Mordeu? é uma produção infanto-juvenil maravilhosa do SESI São Paulo, transmitida originalmente pela TV Cultura. Hoje é possível achar todos os episódios no Globoplay.

A premissa está logo na frase de abertura da série: “Toda vez que uma criança desenha um monstro, ele ganha vida no Monstruoso Mundo dos Monstros”. Então, uma criança desenha uma menina coberta de folhas, com um rabo pequeno, garras nas mãos e nos pés e nasce Lali Monstra, uma menina-monstra. Ela é adotada por Dr. Z. e Morgume e passa por várias situações divertidas no mundo dos monstros. A cada episódio um novo monstro é criado e ele vai influenciar o comportamento dos personagens fixos do programa. Normalmente esses monstros novos são indutores de comportamentos, sentimentos e sensações, como inveja, avareza e mentira.

Dr. Z.

Dr. Z., o pai de Lali, é o monstro estudioso. Ele cataloga todas as espécies de monstro daquele mundo e ainda estuda os humanos. Eles nunca viram os humanos cara a cara.

Dr. Z. tem uma boca de livro, um globo de vidro com um cérebro dentro e um único e enorme olho. Ele fala português com sotaque de estrangeiro e vive em seu laboratório. A palavra final e grande parte das lições de moral vêm dele. É como o personagem encarregado do fechamento dos episódios, o que racionaliza toda a aventura, exatamente como Van Helsing em Drácula.

Pôster do filme Drácula

Para terminar, indico o filme Drácula, de Francis Ford Coppola, de 1992, que traz como casal Harker os atores Keanu Reeves e Winonna Ryder, Gary Oldman como Conde Drácula, e Anthony Hopkins como Van Helsing. Maravilhoso esse filme, apesar das alterações em relação à história original. Esse eu vi pela primeira vez no cinema, quando era ainda uma adolescente e até hoje me lembro do impacto causado por esse filme que venceu três Oscars: Melhor figurino, edição de som e maquiagem.

Agradecendo ao amigo Kad que indicou e emprestou o livro.

 

STOKER, Bram. Drácula. Tradução: HELOISA, Márcia. São Paulo: Darkside, 2018.

COPPOLA, Francis F. Drácula. EUA: Columbia Pictures, 1992.

HAMBURGUER, Cao; LOPES, Valdy; KERCHOVE, Pierre & NAKAO, Jum. Que Monstro te Mordeu? Brasil: Sesi São Paulo, 2014-2015.

KAFKA, Franz. O Castelo. Tradução: CARONE, Modesto. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.

https://www.youtube.com/watch?v=GKC5QtLJdZ0