“Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio (…) Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia
deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.”
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Pg 11.
Vidas Secas, sem dúvida um dos melhores livros já escritos, é um clássico e meu preferido da literatura brasileira. Conta a história de retirantes do polígono da seca nordestina e tem como personagens: Fabiano, o líder da família; sinha Vitória, a esposa de Fabiano de quem ele admira a inteligência; os filhos mais velho e mais novo; a Baleia, que é o personagem com sentimentos mais claros e humanizados, apesar de ser uma cadela; o Soldado Amarelo, homem que abusa de sua autoridade para humilhar e subjugar. A família no início da trama tem um papagaio e fala repetidamente sobre o Seu Tomás da Bolandeira. Também tem outros personagens menos destacados, como o patrão de Fabiano.

Cartaz do filme Vidas Secas.
O livro se destaca por sua linguagem típica daquela região do nordeste do Brasil, o que pode tornar a leitura complicada para muitos adolescentes, quando obrigados a ler para cumprir suas funções escolares.
Vidas Secas retrata o cotidiano de retirantes, que lutam para sobreviver à fome, sede e miséria. Os personagens são complexos e têm um quê de fantástico.
A escrita de Vidas Secas, apesar de ser de estilo diferente, lembra o início de Farenheit 451, de Ray Bradbury, pela aproximação do estado mental do personagem no momento em que se encontra.
Como Fabiano tem vocabulário escasso e reflete pouco sobre sua condição de vida, a narrativa vai tateando as relações pessoais, a comunicação e as conclusões conforme o pensamento de um homem massacrado pela dureza da vida. Ele simplesmente deixa-se levar, em busca de sobrevida para si e sua família. Suporta humilhações das mais diversas e de diversas pessoas, se deixa humilhar, por se considerar um bicho, uma criatura de pouco valor.
Esse recurso de utilizar a linguagem conforme estado mental do personagem está presente nas primeiras páginas de Farenheit 451, quando o bombeiro, Guy Montag, que é o personagem principal, relata seus pensamentos e como conversa e assimila as frases proferidas pela vizinha. Ele também era homem com capacidade reduzida de raciocínio sobre sua própria condição, resignado com o que não lhe agrada, por nem mesmo pensar se aquilo lhe agrada ou não. As primeiras linhas são difíceis de compreender de imediato por serem escritas em conformidade com o pensamento do bombeiro. À medida que a história se desenrola, o texto adquire mais fluidez, demonstrando a evolução cognitiva do protagonista.
Fabiano, no capítulo destinado exclusivamente a ele, em um momento de felicidade diz em voz alta: “Fabiano, você é um homem.” Em seguida, se sente envergonhado de ter dito isso e receoso de ter sido ouvido por sua família e então diz: “Você é um bicho, Fabiano”. Essa segunda afirmação sobre si, lhe parece mais confortável, adequada ao modo como se percebe. Posteriormente, se refere à cachorra Baleia dizendo a ela “Você é um bicho, Baleia” e essa frase foi um elogio, um reconhecimento de que a cachorra se parece com ele. Fica entrevisto que ele tem sonhos de estabilidade e abundância para a família, porém rechaça esses pensamentos de bonança em uma resignação absoluta em sua miséria e passa grande parte da história entendendo que os meninos, seus filhos, deveriam ser mais como a Baleia e serem capazes de sobreviver sendo bichos e não homens.

Cartaz do filme Indomável Sonhadora.
A animalização dos personagens na luta pela sobrevivência se assemelha ao modo como se percebem os personagens do filme Indomável Sonhadora, de 2013, cujo título original é Beasts of the Southern Wild, algo como Bestas do Sul Selvagem, que convenhamos é um título bem melhor. Esse filme retrata uma comunidade extremamente miserável do sul dos Estados Unidos. Vivem à beira de um pântano e apenas sobrevivem. No caso desse filme o “bicho” que cuida da família é a filha de 6 anos de um pai que tem problemas com a bebida alcoólica.
As três referências trazem humanos como algum grau de animalização, cada um a seu modo. Em Farenheit 451 Bradbury criou pessoas que não raciocinam sobre suas realidades, exceto pela personagem Marianne e pelos leitores clandestinos que participam da vida de Montag. Os habitantes daquela civilização distópica, vivem no automático, porém não lhes falta alimento ou moradia. Em Beasts of the Southern Wild, os personagens que vivem precariamente, também seguem um fluxo praticamente instintivo para sobreviver ao ambiente violento, à falta de alimentos e de cuidados.
A animalização em Vidas Secas também é produto da miséria, falta o mínimo para manter-se dignamente, falta vocabulário. Não falta amor entre os membros da família, embora por vezes a violência substitua as palavras. É um modo de vida mais parecido com o animalesco pela maneira de conseguir recursos. Entre outras facetas, sua subsistência depende da caça, conseguida muitas vezes pela cachorra Baleia, e de comer e beber o que encontram pelo caminho, inclusive o papagaio de estimação.

Cena do Filme Vidas Secas.
A saída da miséria em Vidas Secas aparece no final, quando sinha Vitória se impõe a Fabiano e decreta que a família migrará para fora do sertão em busca de um futuro menos escasso para os filhos. E Fabiano que até então entendia que deveria treinar os filhos para serem animais, que sobrevivem com o mínimo em condições de precariedade absoluta, cede. Como se reconhecesse que Vitória tem razão e que está na hora de tentar diferente, visto que a seu modo as coisas não têm se ajeitado a contento. Esse é o desfecho de muitas pessoas que vivem em lugares inóspitos e demonstra a condição de desespero que leva milhares de brasileiros a se mudar para os grandes centros urbanos.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 84ª Edição. Editora Record: São Paulo, 2002. Primeira edição em 1938.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Globo, 2007.
SANTOS, Nelson P. Vidas Secas. Brasil, 1966. 100 minutos.
ZEITLIN, Benh. Beasts of the Southern Wild. EUA, 2012. 92 minutos. Título em português: Indomável Sonhadora.PORTINARI, Cândido. Criança morta,1944. Imagem retirada de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Grande_Sert%C3%A3o.jpg. Licença: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt. A imagem não foi modificada.
Os videos foram visualizados em 07/01/2021:
20/01/2021 at 08:58
Que maravilha. Adorei o site.
20/01/2021 at 09:28
Fico muito feliz que tenha gostado! Obrigada!
20/01/2021 at 11:08
Adorei o seu blog!
Muito bom mesmo.
Vou seguir todas as postagens.
É bom que é uma forma de manter o papo em dia sobre um dos meus assuntos favoritos.
20/01/2021 at 14:31
Obrigada! Bora trocar ideias! inté!
20/01/2021 at 13:56
Muito, muito bacana! Amei o estilo e o paralelo! Obrigada pelo conhecimento compartilhado!
Aguardando os próximos textos!
20/01/2021 at 14:33
Muito obrigada! Já já terá post novo!
Bjs!
21/01/2021 at 13:17
Adorei Zá, parabéns! Obrigada por compartilhar com a gente suas reflexões com tantas informações interessantes, de forma tão bem escrita e gostosa de ler!
21/01/2021 at 15:47
Obrigadaaaaa! no fim de semana vai ter mais coisa.
23/01/2021 at 15:13
Que bela iniciativa, texto agradável e com boas dicas de filmes e comparações para despertar a “curiosidade epistemológica”, já diria Paulo Freire! Sucesso com o site e leituras!
23/01/2021 at 18:58
Obrigada! Fico feliz que tenha gostado! =)