Amazon.com.br eBooks Kindle: Um estranho no ninho, Kesey, Ken“Eles riem, e então eu os ouço cochichar atrás de mim, as cabeças bem juntas. Zumbido de maquinaria negra, zumbindo ódio e morte e outros segredos do hospital. Não se dão ao trabalho de falar em voz baixa sobre seus ódios secretos quando estou por perto, porque pensam que sou surdo e mudo. Todo mundo pensa isso. Sou suficientemente vivo para enganá-los a esse ponto.

Se o fato de eu ser como um índio mestiço alguma vez me ajudou nesta vida suja, ajudou-me a ser vivo, ajudou-me durante todos esses anos.

Estou limpando perto da porta da enfermaria quando uma chave gira na porta do outro lado, e sei que é a Chefona, pela maneira como os encaixes da fechadura cedem à penetração da chave, suave, rápida e familiar, já que há tanto tempo ela está habituada com as fechaduras.

Ela entra com uma rajada de frio, tranca a porta, e vejo seus dedos deslizarem pelo aço polido — a ponta de cada dedo da mesma cor que seus lábios. Um tom de laranja esquisito. Como a ponta de um ferro de soldar. Uma cor tão quente ou tão fria que, se ela nos toca, não sabemos dizer a temperatura. Carrega sua bolsa de vime trançado, como as que a tribo Umpqua vende em quantidade à beira da estrada durante o mês quente de agosto, uma bolsa com o formato de uma caixa de ferramentas e alça de cânhamo. Ela sempre usou essa bolsa em todos os anos em que estive aqui. O ponto é aberto e posso ver lá dentro; não há estojo de pó-de-arroz ou batom ou objetos de mulher, ela mantém aquela bolsa cheia de milhares de componentes que tenciona utilizar no cumprimento de seus deveres cotidianos — rodas e engrenagens, dentes de engate polidos a ponto de mostrar um brilho violento, minúsculas pílulas que cintilam como porcelana, agulhas, fórceps, alicates de relojoeiro, carretéis de fio de cobre…

Ela me cumprimenta com um aceno de cabeça quando passa. Largo o esfregão, recuo, encostando-me na parede, sorrio e tento enganar os detectores dela o máximo possível, não deixando que veja meus olhos — ninguém pode saber muito a respeito de outra pessoa se não houver muito contato visual.”

Ken Kesey. Um Estranho no Ninho.

Ken Kesey publicou em 1962 o livro Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest), que posteriormente deu origem ao filme com mesmo nome.

O filme, estrelado por Jack Nicholson e Louise Fletcher, foi indicado a nove categorias do Oscar e arrebatou cinco estatuetas: melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor atriz e melhor roteiro adaptado. Impressionante, né? E teve mais seis Globos de Ouro e seis Baftas.

Deixaremos o filme, que é excelente, para o final. E vamos ao livro que, para a surpresa de ninguém, é ainda melhor que o filme.

Temos três personagens principais: a enfermeira Ratched e os pacientes McMurphy e Bromden.

Ela é a chefe do hospital psiquiátrico. Não devia ser, mas é. Teoricamente, Ratched estaria abaixo do psiquiatra e comandaria apenas o time de enfermeiras, mas, como está ali há anos e goza de boa reputação com os donos do hospital, quem manda na prática é ela, tendo poder inclusive para demitir os psiquiatras.

Muito organizada e metódica, a senhorita Ratched usa de humilhação, superexposição dos casos dos pacientes em rodas de terapia coletiva, eletrochoques com indicações bem suspeitas e até lobotomia. Nada pode perturbar a ordem daquela enfermaria. Outra ameaça para controlar os pacientes é a de transferir os insurgentes para o andar de cima: a ala dos perturbados.

Na ala de Ratched convivem dois grupos de pacientes: os agudos e os crônicos. São cerca de vinte de cada classificação. Entre os crônicos estão aqueles que não conseguem participar da vida coletiva e há ali o subgrupo dos “vegetais” que são pessoas que nem mesmo se movem.

Os agudos, apesar de seus comprometimentos mentais, são pessoas funcionais. Ajudam na limpeza, jogam, fazem terapia de grupo, conseguem seguir as rotinas , regras de convivência e autocuidado.

Ocasionalmente, quando um agudo sai da curva, ele recebe tratamento individual que pode ser um remedinho extra, uma temporada com os perturbados ou a TE (Terapia de Eletrochoque), que é o terror da enfermaria.

Ratched é descrita como uma pessoa impassível. Que detém o total controle do tom de voz, olhares, expressões faciais e que na maioria dos casos consegue conter seus pacientes e seu staff apenas com esses atributos. Todo mundo tem medo dela.

McMurphy é o malandrão. Esse cidadão estava cumprindo pena por agressão em uma colônia penal e fez de doido para poder ser transferido para um hospital psiquiátrico. A justiça engoliu a conversa dele e lá estava McMurphy sob a responsabilidade de Ratched.

Ainda restavam seis meses para completar a pena e ele, um ruivo, cheio de cicatrizes nas mãos e no nariz, forte e cara de pau, decidiu que seria mais confortável terminar sua reclusão em uma instituição psiquiátrica.

McMurphy vive de tirar vantagem de outras pessoas, seja fazendo as vezes de crupier em jogos de azar, vendendo benefícios aos colegas de enfermaria, convencendo os outros a se insurgir para mudar as regras da enfermeira ou propondo apostas. Grande parte da confusão da trama se deve a uma dessas apostas. McMurphy apostou com os outros agudos que conseguiria tirar a impassível enfermeira Ratched do sério. Se ela surtasse ele receberia dinheiro dos colegas.

Ken Kesey - Wikipedia

Ken Kesey

E é isso. É um livro que, como A Redoma de Vidro e Garota, Interrompida, trata do sistema manicomial dos Estados Unidos, fala dos tratamentos, diagnósticos e tals, mas o foco aqui é a disputa de poder entre um interno malandro e uma enfermeira de regras rígidas. Adianto que os dois estão errados. São péssimas pessoas.

Agora o meu favorito: Bromden.

Bromden é um índio extremamente alto e forte, que faz de conta que é surdo e mudo e está internado há dez anos.

Ele fica entre os crônicos, mas convive com os agudos. Está no limiar entre as categorias. Esse é o nosso narrador. É um dos melhores narradores que já li. Ele é nada, nadíssima, confiável.

Porque a equipe do hospital acredita que ele não ouve, ele é sempre escalado para fazer a limpeza da sala dos funcionários. Eles não têm receio de falar nada perto dele. Logo, Bromden sabe de tudo. Os internos também pensam que ele é surdo mudo. Ele guarda todos esses segredos para si próprio. O objetivo não é ajudar os colegas, é se defender da “Liga”.

Ele desenvolveu uma teoria da conspiração na qual a “Liga” quer controlar mentes e corpos de todos os seres humanos e a equipe do hospital faria parte desse grupo. Então ele se faz de desentendido para saber o que pretendem seus inimigos.

Bromden é filho de um chefe de uma tribo indígena com uma mulher branca, de onde vem o nome dele. Esse homem que não verbaliza nada, tem pensamentos bastante racistas em relação aos funcionários negros da enfermaria.

O leitor acompanha a história pela perspectiva de um homem paranóico e tem vários delírios permeando a narração da história. Aí vai tudo se misturando. De repente ele está falando de McMurphy e sua influência sobre os outros internos e corta para um insight filosófico sobre a Liga. Aí ele vai narrar um fato e descamba para um pensamento nonsense ou uma memória de quando vivia com os pais. É muito divertido.

Tem uma carga de tensão, uns conceitos meio anacrônicos, perdoáveis porque é uma obra dos anos 60, mas na maior parte é bem engraçado.

Não vou focar no McMurphy. O filme já fez isso. E tudo bem, é um filme excelente. Nosso objeto para comparações aqui será Bromden.

Esse homem enorme, com uma percepção surrealista sobre si mesmo e o mundo que o cerca e que direcionou seu comportamento por uma teoria da conspiração: a Liga.

Essa paranoia sobre estar sendo seguido, observado, ouvido o fez se passar por surdo mudo numa tentativa de enganar a Liga. Outros personagens dirigiram ou estragaram suas vidas por suas crenças em teorias conspiratórias: Jerry Fletcher e John Nash.

Jerry Fletcher, interpretado por Mel Gibson em Teoria da Conspiração, é um personagem ficcional. Ele é um taxista que edita e distribui um jornalzinho chamado Teoria da Conspiração. A tiragem é ridícula, mas constante. Lá ele põe seu cérebro desconfiado para trabalhar descrevendo possíveis conspirações ou enganos deliberados que o governo quereria impingir à sociedade estadunidense. Acontece que em um dos volumes de seu periódico artesanal, Jerry vai acertar a teoria. E um dos assinantes é a CIA. Então ele e a mulher de seus sonhos, uma advogada do governo interpretada por Giulia Roberts, vão ter que fugir.

Alguns detalhes desse filme são muito legais, tipo a casa que se autodestrói em caso de o governo perseguir o dono e a quantidade absurda de exemplares do mesmo livro que Jerry Fletcher tinha em seu apartamento: O Apanhador no Campo de Centeio.

É um blockbuster de 1997. Não assisti recentemente, apenas me lembrei do filme. Perseguições realmente não são meu estilo preferido, mas os detalhes eram bem interessantes tanto que lembro deles até hoje.

O outro John Nash, é um personagem real. O filme Uma Mente Brilhante é inspirado na vida do matemático, professor e pesquisador da Universidade de Princeton: John Forbes Nash.

Nascido em Bluefield, Virginia Ocidental, Estados Unidos em 1928, o principal feito desse homem genial ficou conhecido como Teorema da Imersão de Nash (não esperem que eu consiga explicar. Nem vou tentar). Por seu trabalho como matemático/economista ele recebeu, em 1994, o prêmio Nobel de economia.

E tudo ia lindo. John Nash tinha o emprego que queria, reconhecimento no meio acadêmico, estava casado com Alicia (de quem se separou depois se casou de novo), até que por volta de 1958 começou a dar sinais de esquizofrenia paranóide.

No filme Uma Mente Brilhante, a mente de Nash (Russell Crowe) criou personagens com quem conversava e que seriam agentes do serviço secreto americano e que precisavam do talento matemático dele para quebrar códigos de mensagens trocadas por supostos inimigos internacionais.

Esse filme é muito bom. Lindo demais.

Apesar dos méritos citados, o filme Teoria da Conspiração, não chega aos pés de Uma Mente Brilhante, que por sua vez, foi indicado a seis e venceu quatro Oscars.

O John Nash da vida real viveu até 2015, quando faleceu em decorrência de um acidente de carro. Os sintomas de sua condição mental eram controlados com algum sucesso por medicação e idas e vindas a hospitais psiquiátricos. Ele continuou produtivo e genial até o fim de seus dias.

Sabe que outro filme não só compete, mas em minha opinião ganha de Uma Mente Brilhante? Sim, Um Estranho no Ninho, de 1975.

Em relação ao livro, o filme tem algumas diferenças. São mudanças que tornaram a produção possível e não alteraram o enredo.

O foco do filme é na treta entre Ratched e McMurphy, Bromden (Will Sampson) é quase um interno como os outros. Não é ele quem dirige a narrativa. Um coadjuvante bastante importante, porém coadjuvante. O filme é narrado a partir da perspectiva dos oponentes.

Dica bônus. A Netflix produziu a série Ratched, que conta a vida da enfermeira Ratched e tenta explicar a origem de sua influência sobre o hospital. É uma produção lindíssima em termos de fotografia, cenário, figurino, música e todos os aspectos técnicos. Eu gostei bastante e recomendo, entretanto, estou ciente de que não é uma unanimidade. A enfermeira mãos de ferro é interpretada pela atriz Sarah Paulson. Dá uma olhadinha no trailer e espia a qualidade. Quem sabe não te apetece?

 

KESEY, Ken. Um estranho no ninho. Tradução: DEIRÓ, Ana Lúcia.Rio de Janeiro: Record.

FORMAN, Milos. Um estranho no ninho. EUA: United Artists, 1975.

DONNER, Richard. Teoria da Conspiração. EUA: Warner Bros., 1997.

ROMANSCKY, Evan. Ratched. EUA: Netflix, 2020.