Capa do livro Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Wlliams.

MITCH – Você não se hospedava num hotel chamado Flamingo?

BLANCHE – Flamingo? Não! Chamava-se Tarântula! Eu me hospedava num hotel chamado Tarântula Negra.

MITCH (com ar de estúpido) – Tarântula?

BLANCHE – Sim, Tarântula. É o nome de uma aranha muito grande. Era para lá que carregava as minhas vítimas. (…) Sim, eu tive muitas intimidades com estranhos. Depois da morte de Allan… as intimidades com estranhos me pareciam ser a única coisa capaz de encher meu coração vazio. Eu acho que era pânico, somente pânico, que me levava de um para outro, buscando proteção aqui, ali, até mesmo nos lugares… Mais improváveis… Até mesmo um rapaz de dezessete anos, mas alguém escreveu ao diretor da escola dizendo: “Essa mulher é moralmente incapaz para exercer sua função!” (…) Verdade? Sim, suponho, incapaz é a palavra. Então eu vim para cá. Não havia nenhum outro lugar para onde eu pudesse ir. Estava acabada. Você sabe o que é estar acabada? Minha juventude, de repente, tinha ido embora, por um cano de esgoto.”

WILLIAMS, Tennessee. Um Bonde Chamado Desejo.

 

Stella mora com Stanley Kowalski, seu marido, em um bairro de Nova Orleans. Stella tem uma irmã, chamada Blanche Dubois, que mora no estado do Mississipi, na fazenda da família e é professora de literatura inglesa.

Blanche, personagem principal da peça, Um Bonde Chamado Desejo, escrita por Tennessee Williams, é uma mulher instruída, bonita, de gosto refinado, obcecada pela aparência. É também arrogante e desdenhosa. Uma pessoa de difícil trato.

Quando perde a propriedade da família, Belle Rêve, e é expulsa da cidade por ter tido um caso com um aluno menor de idade, Blanche vai de mala e cuia para Nova Orleans.

Chegando à estação, ela teria de pegar um bonde chamado desejo, outro chamado cemitério e estaria em Campos Elísios, lugar em que sua irmã residia.

Na casa de Stella, que tem apenas dois quartos separados por uma cortina, também vive Stanley: estereótipo do boy lixo. Stanley é um homem de boa aparência, rude e machista. O casal não tem muitos recursos financeiros e Blanche faz questão de relatar à irmã o quão perplexa está por ela morar naquela casa tão ruim.

Inicia-se então o choque cultural e a antipatia mútua entre Blanche e Stanley, que é a tônica da obra. Stanley a intimida para saber como ela perdeu Belle Rêve e porque ela não está trabalhando em pleno período letivo, além disso vasculha a vida pregressa da moça com a ajuda de conhecidos. À todas essas investidas, Blanche responde com altivez, se posicionando de igual para igual com o cunhado.

A peça é um texto curto, entretanto apresenta elementos que dariam boas discussões sobre vários temas como, machismo, escapismo, submissão, pobreza e alcoolismo.

O estopim para Blanche ser convidada a se mudar de sua cidade natal, foi o caso com o aluno de dezessete anos. Esse relacionamento não é pormenorizado no texto.

Cartaz do filme Notas sobre um escândalo, de Richard Eyre.

Para se ter um vislumbre do tipo de reação social que pode acontecer em um caso desses, há o filme Notas sobre um escândalo,  de Richard Eyre, em que a personagem Sheba Hart (vivida por Cate Blanchett) é descoberta tendo um caso com seu aluno, de quinze anos. Esse filme é baseado no livro Anotações sobre um escândalo, de Zoë Heller.

Sheba, nova professora contratada para uma escola pública em Londres, era amiga de Barbara Covett (Judy Dench), essa segunda é uma mulher idosa e solitária, com histórico de amizades doentias, fato, até então, desconhecido por Sheba. Quando Barbara descobre a relação de Sheba com o garoto, passa a ameaça-la de contar tudo a seu esposo em troca da submissão à seus caprichos. Esse filme é excelente, tenso do começo ao fim.

Não há como justificar Blanche ou Sheba. As duas personagens têm em comum a necessidade de serem amadas e nessa busca fizeram más escolhas.

Cabe pontuar, que muitos homens tiveram relacionamentos com suas alunas, sem que isso fosse apontado como um problema grave. A música Aula de Piano, de Vinícius de Moraes, é parte do musical A Arca de Noé (1980), que fez muito sucesso e embalou a infância de muitos de nós. A letra fala de um professor que assediava a aluna menor, esse relacionamento acabou em casamento e eles se tornaram um casal de músicos de sucesso, ou seja, não só naturaliza, como aponta para um final feliz. A década de 80 foi marcada por excelentes produções musicais para crianças e A Arca de Noé, que já foi citado no texto sobre o livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, é muito bom, exceto por essa letra em particular.

Voltando a Um bonde chamado desejo, primeiro li a peça, depois assisti à versão cinematográfica de 1951, que foi indicada a 11 categorias no Oscar, rendendo 3 estatuetas, sendo uma delas para Vivian Leigh no papel de Blanche. O filme foi dirigido por Elia Kazan e no Brasil o título foi traduzido como Uma Rua Chamada Pecado .

Cartaz do filme A Street Car Named Desire, de Elia Kazan.

Como Tennessee Williams participou da equipe de produção do filme e essa é uma peça que já havia sido encenada na Broadway com supervisão do autor, tive que me render à constatação de que Blanche foi pensada para ser uma dondoca muito afetada, no estilo decadance avec elegance. A primeira impressão sobre ela, na experiência da leitura foi de que sim, ela era metida e um tanto desagradável, mas também foi a única pessoa a perceber o quão problemático, violento e desequilibrado era Stanley Kowalski e a única a falar com ele de igual para igual, sem submissão. Apesar de ter em si arraigada a mentalidade do final da década de 40, acreditando que uma mulher precisa se casar para ser respeitada e enxergando seu possível enlace com Mitch como oportunidade de passar o passado a limpo, Blanche não se sentia diminuída por ter tido vários parceiros. Embora omitisse e muitas vezes mentisse tentando criar uma aura de donzela para conseguir seu intento de casamento. Ela não aceitava o comportamento cafajeste de Stanley e tentava abrir os olhos da irmã. Ou seja, por traz da aparente futilidade, existia uma mulher mais consciente e livre que as outras personagens femininas na mesma história.

Sobre o tal comportamento de Stanley, que age como se fosse o dono do mundo, ele mantém com Stella um relacionamento abusivo, do qual ela não quer sair e justifica várias vezes ao logo da peça o comportamento agressivo do marido. Stanley chega a agredir fisicamente tanto a esposa quanto a cunhada, tendo sido o episódio da cunhada muito mais grave.

Uma faceta importante e infelizmente recorrente até hoje, está na parte final de Um Bonde Chamado Desejo, quando ninguém acredita no que Blanche relata sobre o cunhado e sofre consequências terríveis por ser desacreditada. A vítima feminina não costuma ser levada a sério. O benefício da dúvida é quase sempre concedido ao agressor.

Há uma passagem sobre Eunice e seu marido, de personalidade parecida com a de Stanley. Eles são os vizinhos do andar de cima. Em uma noite Eunice apanha dele e sai correndo gritando que vai chamar a polícia. Acaba não chamando, entretanto esse episódio lembrou a música Maria da Vila Matilde, interpretada por Elza Soares.

Capa do livro O Analista de Bagé, de Luiz Fernando Veríssimo.

Tanto Stella como sua amiga e vizinha Eunice, assumem uma atitude de invisibilidade para não perturbar os jogos de pôquer dos maridos. O que por si só não seria problemático, considerando que não há nada de errado em queremos tempo para diversão apenas com amigos. Casais não são obrigados a compartilhar os mesmos interesses. A questão está no comportamento de Stanley durante os jogos que acontecem em sua casa.

A caricatura perfeita para os jogos de pôquer de Stanley e seus amigos é um texto de Luiz Fernando Veríssimo chamado Pôquer interminável, do livro Analista de Bagé. São partidas inabaláveis e eternas, nada mais importa a não ser o jogo e a diversão do grupo de homens. Ainda que os acontecimentos ao redor sejam graves.

Em Pôquer Interminável (I, II e III), três jogadores homens, estão em uma partida sem fim, que não para nem para nascimento de um filho e nem para nada. A cada interrupção, segue o bordão: ninguém sai, ninguém sai, ninguém sai. A TV Pirata, programa humorístico veiculado pela Rede Globo entre 1988 e 1992, encenou essa esquete.

Tanto na comédia quanto no drama e na vida real, a tendência, apesar dos notórios avanços, é de que a vida dos homens siga sem remorsos e sem punições independente da gravidade da falta, enquanto as mulheres sofrem represálias, por atitudes exatamente iguais às deles. Não está-se falando que mulheres são infalíveis e que não devam repensar suas atitudes ou pagar por crimes, apenas se considera que a hipocrisia social muitas vezes protege os homens, tratando-os como crianças ou como infalíveis, lançando mão de justificativas rocambolescas e antiquadas.

Deixo-lhes com a música A Woman Left Lonely, de Janis Joplin, sugerida pelo amigo Victor.

 

WILLIAMS, Tennessee. Um Bonde Chamado Desejo. Tradução: NIKITIN, Vadim. São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2004.

KAZAN, Elia. Uma rua chamada pecado. EUA: Warner Bros, 1951.

EYRE, Richard. Notas sobre um escândalo. Reino Unido: Fox, 2006.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Analista de Bagé. Porto Alegre: L&PM, 1981.