
Ulysses
“Com quais concomitantes indignidades?
A impiedosa indiferença de mulheres anteriormente amigáveis, o desprezo dos machos musculosos, a aceitação de fragmentos de pão, a ignorância simulada por casuais conhecidos, a latração de cães vagabundos ilegítimos e ilicenciados, a detonação infantil de mísseis vegetais decompostos, valer pouco ou nada ou menos que nada.
O que poderia obstar a uma tal situação?
Falecimento (mudança de estado), partida (mudança de lugar).
Que considerações tornavam-na não de todo indesejável?
A coabitação constante impedir a tolerância mútua dos defeitos pessoais. O hábito das aquisições independentes crescentemente cultivado. A necessidade de contrabalançar por estada impermanente a permanência da detenção.
Que considerações tornavam-na não irracional?
As partes envolvidas, em se unindo, haviam crescido e se multiplicado, o que, feito, cria produzida e educada até a maturidade, as partes, se ora desunidas, eram obrigadas a se reunir para crescimento e multiplicação, o que era absurdo, para formar por reunião o casal original de partes unidas, o que era impossível.
Que considerações tornavam-na desejável?
O caráter atraente de certas localidades da Irlanda e do exterior, conforme representado em mapas geográficos gerais de padrão policromado ou em cartas de mapeamento disponíveis para encomenda especial através do emprego de numerais de escalas e hachuras.”
JOYCE, James. Ulysses. p.659.
Um mês e vinte e cinco dias. Foi o tempo que levei para ler Ulysses, de James Joyce. Talvez Ulysses seja a obra considerada mais difícil de ler em ficção. E é mesmo.
Não é sobre um personagem chamado Ulysses. Os principais são Stephen Dedalus, um jovem filósofo/poeta irlandês meio perdido no universo; Leopold Bloom, um homem católico de ascendência judia que trabalha com anúncios patrocinados em um jornal; Marion Bloom, cantora lírica, esposa de Leopold meio irlandesa/judia meio espanhola.
É sem dúvida um livro sobre paternidade, realçando os conflitos entre Stephen e seu pai Simon, o suicídio do pai de Leopold , a relação do casal Bloom com sua filha Millicent e com o falecimento do filho Rudy e ainda a relação meio paternal que vai se desenvolvendo entre Leopold Bloom e Stephen Dedalus.
Então pronto, Ulysses é sobre amor e relações entre pais e filhos? Não só. Ulysses também é sobre relação conjugal, sobre Dublin (capital da Irlanda) e, sobretudo, sobre forma, técnica e experimentalismo. Nada disso é secundário.
É um livro colossal, tanto no sentido de número de páginas quanto no tanto de detalhes, enigmas, subtemas e cenas. Toda essa treta se desenrola em um dia incompleto. Inicia-se às oito horas da manhã do dia 16 de junho de 1904 e termina na madrugada do dia 17. Uma quinta-feira que, dependendo das impressões do leitor, é um dia qualquer.
O dia 16 de junho ficou conhecido pelos fãs de Ulysses como Bloomsday.

Odisseia
Ulysses é uma paródia da obra Odisseia, de Homero, que conta anos na vida do herói grego Odisseu, chamado pelos romanos de Ulisses. Depois da guerra de Troia, Odisseu tenta regressar a Ítaca, sua ilha natal, onde ele é o rei e se reencontrar com sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco. A Guerra de Troia já havia durado 10 anos e o pobre do Odisseu leva mais 10 para chegar em casa, ou seja, seu filho recém nascido na época da convocação tinha já 20 anos quando do regresso. O retorno foi demorado desse jeito porque Poseidon, deus dos oceanos, implicou com Odisseu e fez o diabo para dificultar a viagem. Penélope, é importante dizer, passou esses vinte anos casta, fiel ao esposo ausente.
Em contraponto, Joyce vai contar uma história de um homem ordinário, em um dia aparentemente banal, que convive com pessoas nada extraordinárias e que retorna no fim do dia para a esposa infiel.
Ulysses foi inicialmente publicado em fascículos. Cada fascículo tinha como título nomes alusivos à Odisseia e seguiam a mesma sequência do poema homérico. São dezoito episódios em Ulysses contra vinte e quatro cantos de Odisseia. Na primeira parte, cujo personagem central é Stephen Dedalus e é conhecida como Telemaquia os capítulos seriam: Telêmaco, Nestor e Proteu. Na segunda o personagem principal é Bloom, seria a Odisseia e os capítulos: Calipso, Os Lotófagos, Hades, Éolo, Os Lestrígones, Cila e Caribde, As Rochas Ondulantes, As Sereias, Os Ciclopes, Nausicaa, O Gado do Sol e Circe. A Terceira e última parte chamada Nostos, mistura os três personagens e possui três capítulos, entre eles, o único narrado e protagonizado por Marion (Molly) que é o último: Penélope. Os dois outros são: Eumeu e Ítaca.
Os fascículos tinham título, mas o livro, quando publicado na íntegra, perdeu todos esses subtítulos.
Ulysses foi publicado completo pela primeira vez pela lendária livraria parisiense Shakespeare & Company, que na época não era uma editora, foi a primeira experiência de Sylvia Beach no ramo editorial. Esse lançamento coincidiu com o aniversário de James Joyce em 2 de fevereiro de 1922.
Li na edição comemorativa de 100 anos da publicação, lançada esse ano pela Companhia das Letras, com tradução de Caetano Galindo e ilustrações de Robert Motherwell. Nesta edição comemorativa, a separação dos episódios é feita por retângulos pretos e só. Ficou linda, mas contracapa descola do miolo e isso me deu uma aborrecida.
Nada, nada, nadica de nada de notas de rodapé. Essa edição veio com 815 páginas sendo 715 da obra propriamente dita e o restante de textos extra. Existem no mercado vários guias para Ulysses e alguns deles são quase tão volumosos quanto o objeto de estudo, ou seja, o livro seria imensamente maior caso fosse explicado em notas de rodapé. Além do mais, quem quer livro facinho de entender não pega Ulysses para ler. É para malhar o cérebro, consultar o que estiver disponível, decifrar.
Decifrei tudo? Claro que não. Li e reli alguns capítulos, outros achei menos difíceis. Teve um sentimento de vitória quando acabei a leitura. Estou me sentindo mais inteligente. É um gosto que só os grandes desafios fazem por nós. Aliás, nesse ponto, devo mencionar que Faulkner, Woolf e outros autores considerados difíceis e que foram lidos antes, deram uma preparada no terreno para aumentar a confiança desta que vos escreve.
Não precisa ler Odisseia antes de ler Ulysses, porém, terminando Odisseia, devo reler a obra de Joyce. Para falar a verdade, tem uma listinha que pretendo vencer antes de reler e ela inclui praticamente toda a obra de Shakespeare porque vai mudar a percepção

Shakespeare
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No segundo episódio do livro entendi a importância de Shakespeare para Ulysses. Parei de ler, li Hamlet e voltei. Fez toda a diferença. Outras obras que estão nas referências e que fazem falta pelo menos saber do que se trata: Otelo (Shakespeare), Robinson Crusoé (Daniel Dafoe), Don Giovanni (Mozart. Filmagens de interpretações dessa ópera podem ser encontrados na íntegra na internet), Alice no País das Maravilhas (Lewis Caroll).
Stephen Dedalus faz muitas referencias a outras obras. As partes dele são especialmente fartas delas. Já os episódios protagonizados por Bloom fazem uma coisa que para mim foi ainda mais complicado, que são as referências a lugares e à cultura irlandesa. E aí? Como fazer quando você não tem dinheiro nem tempo para ir a Dublin seguir os passos de Bloom?
Uma dica é usar um guia de leitura para Ulysses, tem alguns por aí. Usei um que foi sugerido no canal Literature-se, em uma série de vídeos em que a Mell Ferraz fez sobre sua experiência lendo Ulysses: Ulysses: Um Estudo, de Abdon Franklin de Meiroz Grilo. Pode procurar no Google, está disponível gratuitamente. Essa pessoa abençoada, simplesmente, fez centenas de notas que tornam possível ao leitor de primeira viagem entender as referências. Recomendo.
Recomendo também o vídeo de Sylvia Beach sobre sua decisão de publicar Ulysses na íntegra pela primeira vez e um outro fofo do Stephen Fry explicando porque Ulysses é o seu livro preferido. Também deixo um resumo muito legal de Ulysses em 18 minutos com bonecos playmobil.
Todos os episódios têm Monólogo interno e/ou fluxo de consciência. O leitor está sempre entrando e saindo da cabeça daqueles três personagens principais. Fluxo de consciência por si só é uma técnica um pouco desafiadora. Em Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, por exemplo, uma vez que a gente pega o ritmo a coisa vai, mesmo pingando de personagem em personagem como uma pulguinha que lê a mente do hospedeiro.
É aí que entra o que é a genialidade desse romance, que é o fato de que cada episódio/capítulo é como se fosse um livro diferente da perspectiva do método, da forma. São dezoito capítulos e dezoito estilos de narrativa distintas, sempre permeados pelo monólogo interior e o fluxo de consciência.
Meu preferido é o último: Penélope. Que fica na mente de Molly Bloom. É uma perspectiva diferente, narrado em primeira pessoa, permite que o leitor conheça essa personagem em sua intimidade, posto que se fala dela pelo livro todo. É um paragrafão de trinta páginas sem um sinal de pontuação. Nenhuma vírgula, ponto, travessão… José Saramago é o doido dos sinais de pontuação perto de James Joyce escrevendo Penélope. E ainda assim é um capítulo tranquilo de ler comparado a alguns outros.
Outro que amei foi o episódio 6 (Hades) em que Bloom vai ao velório do amigo Paddy Dignam. De acordo com Joyce, a técnica foi o incubismo (o que quer que isso queira dizer). Vai ser uma narração em terceira pessoa, com pensamentos de Bloom, diálogos entre Bloom e os amigos, narrativas em terceira pessoa de conversa de seus amigos falando dele sem a presença dele. Vamos acompanhar esses senhores na carruagem a caminho da casa de Paddy e depois o deslocamento deles até o cemitério. Os pensamentos de Bloom sobre a senhora viúva e os filhos e o amigo falecido. Descobriremos algumas das dores de Bloom e é o capítulo que mais me fez gostar dele. No geral ele é uma pessoa mais boa que ruim, tendo em algumas partes sido bem humano e feito coisas tolas e em outras coisas bem ruins, do tipo assediar a empregada doméstica.
É um livro muito bem humorado. Ri em diversas passagens. Escatologia? Temos. Onomatopeia de flatulências? Temos também. Muitas muitas piadas escatológicas: pum, cocô, arroto e por aí vai. Piadas hereges? Aos montes.
O mais fenomenal é que é um livro de esperança na humanidade. Otimista. Com personagens que caem, levantam e continuam seguindo a vida esperando o melhor. E foi uma surpresa coração quentinho.
É fácil apontar algumas das obras que inspiraram Joyce, a começar pela mais óbvia que é Odisseia. Também é fácil apontar escritores que foram influenciados por ele. Já mencionei dois acima: Faulkner e Woolf, mas a lista é inesgotável.
Ao longo da leitura, várias passagens, pelos mais diversos motivos, lembraram outras coisas. Começo pela descrição de Dublin, que é o coração da trama.
Um dado óbvio sobre os personagens de Ulysses é que os dublinenses bebem muita cerveja. No episódio Os Lestrigones, hora do almoço, eles comem seus lanches e bebem bebidas alcóolicas para acompanhar. Em As Sereias Bloom e seus amigos vão a um hotel para uma tarde musical e bebem. Na sequência, episódio Os Ciclopes, vão a um pub e bebem mais. Em O Gado do Sol, Bloom vai a uma maternidade ver como anda o parto difícil de uma conhecida e encontra vários estudantes na recepção. Todos os estudantes estão completamente bêbados. Eles saem da maternidade e seguem para um bordel no capítulo Circe. Advinha só? Bebem mais ainda.

Bar do Orlando

The Temple Bar
Bloom em uma de suas descrições de Dublin menciona a grande quantidade de bares e afins o que me lembrou de Belo Horizonte, que é a capital do estado de Minas Gerais e é famosa pela quantidade de botecos e, mais que isso, pelo fato de que eles tem freguesia o dia inteiro qualquer dia da semana.
Bloom não é muito beberrão, embora passe o dia todo entrando e saindo desses lugares. No episódio Os Ciclopes, que em Homero são criaturas brutas, Bloom vai se meter em confusão com o personagem chamado de “o cidadão”. Esse cidadão é um homem esquentado, desses brigões de bar. Muitos dos presentes naquele pub demonstram predisposição para bate-boca e agressividade. O modo como Joyce conduz a passagem de Bloom pelo tal pub se parece com o que acontece com o eu lírico da música Tribunal de Bar, dos Paralamas do Sucesso. Uma frase pode te transformar em um réu de boteco e de repente virar uma confusão catalisada pelo álcool.
Recentemente assisti ao filme Ataque dos Cães, que recomendo fortemente. É uma história tensa, delicada, cheia de não ditos, com atuações magistrais. No elenco:
Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee.
Está disponível na Netflix, venceu o Oscar 2022 de melhor direção, estatueta entregue para Jane Campion, tendo sido indicado para mais onze categorias. Também venceu Baftas, Globo de Ouro e outras premiações.
A trama é baseada em livro chamado The Power of the Dog, do autor americano Thomas Savage. Ataque dos Caes se passa no velho oeste estadunidense, embora não possa ser considerado um filme de Western, pelo menos não no sentido típico. Ataque dos Cães acompanha a vida de dois irmãos que comandam uma fazenda. Um deles se casa com uma mulher viúva, mãe de um filho adolescente que tem gostos peculiares para a região e a época. O irmão solteiro vai fazer o inferno na vida dessa mulher e seu filho. É muito interessante o desenvolvimento desse homem solitário e que é capaz de espezinhar a cunhada daquela maneira, alguns segredos fazem com que o personagem vivido por David Cumberbatch cresça muito no filme, bem como o do garoto adolescente, interpretado por Kodi Smith McPhee. Surpreendente!
No filme que se passa em 1925, um dos personagens mantinha escondidas revistas de fisiculturismo. Na época, um homem chamado Eugen Sandow era o modelo de “corpo malhado”. Referência de boa forma masculina.

Eugen Sandow
Bloom menciona Eugen Sandow pelo menos três vezes ao longo de Ulysses. Ao que parece, havia revistas ilustradas com exercícios para que os homens entrassem em forma seguindo o método Eugen Sandow. E Bloom tinha essas revistas. Ele vai dizer da necessidade que tem de praticar o método Sandow e melhorar seu porte físico em episódios distintos, ou seja, era um tema que passava pela cabeça do nosso herói diuturnamente.
O que também leva às fitas de viodeotape de ginástica filmadas por Jane Fonda que revolucionaram o mundo fitness nos anos 1980. Muitas mulheres aderiram ao exercício caseiro praticando ginástica segundo a atriz hollywoodiana, já bastante famosa.
Para terminar com outra música, o meu episódio favorito, Penélope, tem tudo a ver com a música Let`s do it (let`s fall in love), composta por Cole Poter.
Não tenha medo de Ulysses. Vale cada corrida ao guia ou ao dicionário.
JOYCE, James. Ulysses. Tradução: GALINDO, Caetano. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
CAMPION, Jane. Ataque dos Cães. EUA, UK, Austrália, Canadá & Nova Zelândia: BBC Film, entre outras, 2021.
HOMERO. Odisseia. Tradução: LOURENÇO, Reinaldo. São Paulo: Penguin, 2011.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. tradução HELIODORA, Barbara & LEAO, Liana de Camargo. In: Shakespeare Grandes Obras. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.
DAFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Tradução: COSTA NEVES, Flávio P. de F. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
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