Torto Arado – Editora Todavia

“Àquela altura, a terra da Fazenda Caxangá, que havia rendido fartura de frutos por toda a sua vida, estava retalhada. Cada homem com desejo de poder havia avançado sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. Outros trabalhadores que não tinham tanto tempo na terra estavam sendo dispensados. Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem. Diziam que haviam comprado pedaços da Caxangá. Alguns eram confirmados pelos capatazes, outros não. Meu pai, depois de chegar a Água Negra, retornou algumas vezes ao lugar onde havia nascido. Essas histórias nos foram contadas por Salustiana, enquanto crescíamos. Só preservaram Donana por lá por conta da idade avançada, por já terem de alguma forma se afeiçoado à sua presença. E também porque corriam de casa em casa, de boca em boca, os poderes da velha feiticeira, das viuvezes, provas do seu fardo, e do filho que enlouqueceu e foi viver no mato por semanas com uma onça.”

 

VIEIRA JR, Itamar. Torto Arado. p.22.

 

Ganhei Torto Arado de aniversário, em março de 2021. Aí, fui adiando essa leitura, que queria muito fazer, mas preferi esperar para não ser tão influenciada pela avalanche de comentários e elogios que o livro recebeu. Mais um livro maravilhoso e original de realismo mágico (discorde quem quiser).

Torto Arado conta a história de duas irmãs, Belonísia e Bibiana, que crescem em uma comunidade muito pobre, descendente de escravizados, na Chapada Diamantina. Nas primeiras páginas, as garotas que tinham seis e sete anos de idade respectivamente, movidas pela curiosidade infantil, mexem nos guardados da avó, encontram uma faca – uma faca linda, diferente das que já haviam visto – e acabam se acidentando. Uma delas decepa parte da língua naquele evento, perdendo a capacidade de falar. E isso não é spoiler, está na segunda página de um livro em que acontecem coisas o tempo todo.

Itamar Vieira Junior construiu o livro em três partes, que por sua vez são particionadas em outras menores, cada uma delas narrando um acontecimento.

Ah, a narrativa! A narrativa merece destaque. É uma prosa muito linda, poética, sofisticada na medida que a história pede. A primeira parte, chamada Fio de Corte, é narrada pela irmã mais velha, Bibiana, e vai dar a perspectiva dela para a vida na fazenda Água Negra desde a infância das irmãs até a adolescência. A segunda, que tem o mesmo nome do livro, Torto Arado, é também contada em primeira pessoa, mas pela outra irmã, Belonísia. Além da perspectiva de Belonísia para acontecimentos contados no primeiro ato, o leitor acompanha fatos ocorridos em Água Negra durante a vida adulta delas. E a última, Rio de Sangue, é contada em terceira pessoa por uma “encantada”, que é uma entidade do Jarê – religião praticada naquela comunidade. Essa entidade que está se esvanecendo porque os comunitários não a requisitam mais, acompanhou toda a formação da comunidade, bem como a trajetória de todos os personagens, mesmo as gerações anteriores a Bibiana e Belonísia.

Lindo demais! Esse livro é de uma delicadeza ímpar para contar uma história brutal de pessoas que vivem em condições análogas à escravidão. Pessoas que desde a abolição da escravidão no Brasil, passam de geração em geração, de fazenda em fazenda, pedindo morada, pois foram tornados “libertos” sem ter nenhuma compensação financeira por anos de trabalhos forçados e sem ter para onde ir.  Por sua condição de desamparo completo, acabaram tendo que se sujeitar a condições ultrajantes de vida, sem perspectivas de romper o ciclo de um regime escravista dissimulado e hipócrita.

Torto Arado. Editora LeYa.

É um livro fundamental para entender de maneira quase poética como são formadas as comunidades descendentes de escravizados, quilombolas. Uma forma linda de mergulhar nos personagens e compreender quem são as comunidades quilombolas, o processo de auto-reconhecimento como comunidade tradicional e como muitas delas não foram formadas por pessoas pretas fugidas da escravidão, mas têm seu cotidiano assinalado por características religiosas, linguísticas, de subsistência, medicinais, de justiça e tantas outras facetas que lhes são próprias e que, uma vez negadas, põe em cheque todo aquele modo de organização social.

Outra importante lição que poderá ser tirada do livro é a de que algumas modernizações não eliminam o modo de vida tradicional daquelas comunidades, cujos membros podem e devem estudar, ter formações universitárias, obter lucro pela exploração de suas terras, direito a aposentadoria e ainda ter suas terras demarcadas.

Assim como Vidas Secas, Grande Sertão Veredas, Maria Altamira e outros tantos livros de ficção que superam o universo imaginativo e ajudam os brasileiros urbanos a entender as outras realidades tão diversas deste país gigantesco, Torto Arado deveria fazer parte de um curso de formação para postulantes a cargos públicos. Logo estará nas bibliografias obrigatórias de vestibulares e cursos de literatura brasileira. Concordo com os críticos que dizem que esse livro já nasceu clássico.

Achei complicado direcionar as comparações que a intertextualidade de Torto Arado permite fazer encaixando em um eixo temático. Então, vamos conversar sobre obras, com perspectivas diferentes, que se relacionam com temas importantes em Torto Arado, até porque essa obra tem tantos temas importantes que esgotar as possibilidades seria impossível para postagens como essas que compõem esse site.

A cumplicidade das irmãs e aridez do cenário onde vivem me lembrou um documentário que assisti quando foi lançado em 2005 chamado A Pessoa é para o que Nasce. Esse longa metragem conta a história de três mulheres irmãs que nasceram no sertão da Paraíba e que se mudaram para Campina Grande, onde viviam (ou vivem) de esmolas recebidas como pagamento pelas músicas que cantavam na rua. Elas seriam apenas artistas de rua como milhares de outros pelo mundo, não fosse por um fator: as três nasceram cegas.

O documentário conta não só a história pregressa delas, a vida com os pais, os trabalhos apesar da deficiência, a amizade entre elas, os amores, as tristezas, mas, principalmente, acompanha o cotidiano. Como vivem em seu dia a dia, como se apoiam, a música e a luta diária pela sobrevivência.

Um dos propósitos com a realização do documentário foi tornar menos dura a realidade dessas pessoas que sempre viveram com pouquíssimo e que mantém a vontade de viver e a alegria apesar das dificuldades. Um dos frutos do interesse do diretor Roberto Berliner pelas irmãs cegas de Campina Grande foi a gravação de um CD delas com Gilberto Gil e que teve a produção e os bastidores registrados no filme.

A Pessoa é Para o que Nasce está disponível na íntegra no Youtube.

Torto Arado trata do racismo como um tema transversal indissociável de outros como acesso a terras, salários, religiões de matriz africana. Digo isso, porque faremos um paralelo com o episódio 8 da segunda temporada da série Dear White People, da Netflix, cujo tema é o racismo em um campus universitário. Naquele episódio, é apresentado, ainda que de forma superficial, um conceito que pode ser aplicado para amparar a linha do tempo e a maneira como os personagens de Torto Arado lidam com as injustiças a que são submetidos, o conceito de epigenética. Segundo a série, seria possível a mutação genética e a transmissão por DNA de traumas profundos como o da escravidão para as gerações subsequentes.

Em dado momento de uma discussão tensa entre Sam e seu ex namorado Gabe, ela diz:

“Joelle was talking about it the other day. Shit! What was she saying? Oh right, it’s the inheritance of pain. Basically, scientists have figured out that people who experience intense trauma, like slavery, pass that down through their DNA, so pain and suffering is literally in my blood.”

A série é um prolongamento do filme com mesmo nome em que a personagem Samantha White, estudante e ativista do movimento negro, tem um programa na rádio universitária da importante instituição da Ivy League* estadunidense chamada Winchester. O programa se chama Dear White People. Winchester não existe na vida real, nem o programa de Sam, mas os problemas que são abordados na série são bastante reais. Essa universidade tem inclusive um dormitório que é quase exclusivamente ocupado por alunos pretos que conseguiram entrar na prestigiada instituição por meio das cotas raciais. Sim, os EUA têm política de cotas raciais desde a década de 70.

As duas primeiras temporadas de Dear White People são sensacionais. Ainda não assisti às duas últimas, pretendo resolver esse atraso em breve.

Torto Arado foi lançado em 2018 em Portugal pela editora LeYa e em 2019 no Brasil pela editora Todavia. Essa obra conseguiu um feito poucas vezes alcançado por um escritor brasileiro: colocar a literatura brasileira nos holofotes.

Tendo vendido, até então, dezenas de milhares de unidades, Torto Arado alçou o hype no final de 2020 quando venceu os principais prêmios de literatura brasileira, o Jabuti, na categoria Romance Literário e depois o Oceanos. O prêmio Oceanos nasceu em Portugal tendo sido posteriormente assumido pela Itaú Cultural, empresa brasileira, e premia obras escritas em língua portuguesa, independente da nacionalidade do escritor.

Por fim, uma música que tocou na minha cabeça desde que o personagem Severo apareceu no livro foi Funeral de um Lavrador, de Chico Buarque, baseada na obra Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto. A letra dá uma ideia do que acontece com a distribuição de terras retratada em Torto Arado:

“É uma cova grande pra tua carne pouca/ Mas à terra dada, não se abre a boca/ É a conta menor que tiraste em vida/ É a parte que te cabe deste latifúndio/ É a terra que querias ver dividida/ Estarás mais ancho que estavas no mundo/ Mas à terra dada, não se abre a boca”

 

 

 

*As oito universidades que fazem parte da Ivy League são privadas: Brown, Pensilvânia, Princeton, Harvard, Yale, Columbia, Cornell e Dartmouth.

VIEIRA JR., Itamar. Torto Arado. Rio de Janeiro: Todavia, 2019.

BERLINER, Roberto. A Pessoa é para o que Nasce. Brasil: TV Zero, 2004.

MARBY, Tina; JENKINS, Barry & McDOWELL, Charlie. Dear White People. EUA: Netflix, 2017 – atual.