
Terrapreta
“De Cuiabá voo até a velha Canarana. A cidade tem mais letreiros de comércios, mais construções e, ao mesmo tempo, mais gente pobre nas ruas: a conta do desenvolvimento nunca fecha. Tipos morenos de olhos puxados carregam tijolos e pedras nas obras que pipocam por todos os lados. Compro uma rede amarela, a mais bonita que encontro, de varanda ampla e trabalhada. Não posso levar muita coisa no pequeno bagageiro do avião monomotor, mas compro a rede grande pensando em usá-la por alguns dias e deixá-la pra Padjá.
Passo na farmácia da praça pra comprar analgésicos, antitérmicos, anti-histamínicos, remédio pra enjoo, vômito
e cólicas abdominais. O trauma da última viagem ainda é grande e vou sem recursos extras pra pagar pajé. A moça que me atende é uma jovem de cabelos oxigenados, precocemente envelhecida. Aguardo que ela tire a pressão de um senhor obeso, de pernas inchadas com veias saltadas e um mau-humor do cão, como se realizasse uma espécie de purgação cotidiana.
– Vai para o Parque?
– ele me pergunta, como se falasse de algum parque temático de mau gosto.
É inevitável, apesar dos exagerados remédios alopáticos que recolho nas prateleiras, algo em minhas roupas, na
minha mochila, no bracelete de miçangas que exibo, me entrega.
– Vou. Pro Xingu.”
Rita Carelli. Terrapreta.
Semana passada, participei do clube do livro da livraria Circulares aqui em Brasília. O livro da vez foi Terrapreta, de Rita Carelli, vencedor do prêmio São Paulo, na categoria romance de estreia.
Gosto desse clube do livro porque ele às vezes me apresenta leituras que eu provavelmente não escolheria por mim mesma. Terrapreta é um desses casos.

Rita Carelli
Rita Carelli não é exatamente uma iniciante nos escritos. Embora Terrapreta tenha sido seu primeiro romance, ela tem algumas publicações infantis, inclusive premiados também.
Não gostei de cara do livro. Demorei bem alguns capítulos para entrar de alma na leitura. Aí, quando entrei, o livro foi simplesmente devorado.
No início, fiquei com a sensação de que seria uma história de triângulo amoroso adolescente com a Terra Indígena como pano de fundo. Caramba! Não é nada disso, embora tenha tido esse tal triângulo e a personagem principal seja uma menina de quinze anos. Terrapreta é uma história de amor entre a adolescente Ana e a cultura dos indígenas xinguanos. Na próxima lista de livros para entender o Brasil ele deveria vir ali perto de outro livro que também deve ser incluído que é O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Veruncshk.
Ana, adolescente classe média de São Paulo capital, vai ter mudanças bruscas em sua vida, todas ao mesmo tempo: primeiro sua mãe falecerá de morte fulminante, aí ela vai se reencontrar com o pai, com quem não mantém grandes contatos, e para fechar esse pacotinho vai se mudar com o pai arqueólogo para o Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso.
Enquanto lida com o luto, Ana também tenta se adaptar à aldeia e aos seus costumes, desde os mais básicos como dormir na rede, até os mais complexos que envolvem a cultura daqueles povos e a organização do Kuarup na aldeia em que ela está hospedada.

Cena de um Kuarup (https://www.significados.com.br/kuarup/)
O pai de Ana é um pesquisador que está reunindo evidências para provar que aqueles povos do Parque Indígena do Xingu estão ali há muito mais tempo do que gostariam os grupos sociais que estão de olho grande em suas terras. O chefe Kamaka o considera um irmão e, apesar de algumas das ações fundamentais do trabalho arqueológico se chocarem com a cultura local, o chefe compreende ser necessário produzir provas aceitas pelos brancos para prosseguir a luta pelos direitos dos povos originários.
Kamaka é pai de Kassuri uma moça que está em reclusão desde seu primeiro ciclo menstrual à espera do dia do Kuarup, quando lhe será permitido sair da casa em que mora com sua família. O Kuarup não é só o evento em que as moças se tornam oficialmente mulheres adultas, é também a festa em que se despedem de seus entes queridos que faleceram entre um Kuarup e outro. É uma festa enorme, várias pessoas de outras aldeias veem participar, tem comida, luta, dança, cantoria. As pessoas daquela aldeia trabalham muito para garantir que tudo dê certo para que as funções espirituais do evento sejam alcançadas.
Além da estreia de Kassuri na vida adulta, Kamaka também está lidando com a despedida de seu primogênito, que deveria, se estivesse vivo, substituí-lo como chefe de seu povo.
Quando Ana chega com seu pai, faltam dois meses para o Kuarup, então ela vai acompanhar de perto todos os preparativos e ter tempo para um curto, porém intenso, convívio com a cultura local.
O tal do triângulo se dará entre Kassuri (a adolescente reclusa), Yakaru (pretendente de Kassuri) e Ana. Isso trará mais implicações que um simples romance juvenil. Não falo mais nada disso para não estragar a experiência de leitura de ninguém.
Essa história de passa em três lugares do mundo: São Paulo, Parque Índigena do Xingu e Paris. Sim, Paris. É onde Ana, já adulta vai fazer seu mestrado na Sorbonne, mais de uma década depois de ter deixado Kassuri e seu povo.
O livro intercala capítulos entre os acontecimentos urbanos da vida de Ana, sejam mais recentes ou do tempo em que morava em São Paulo, e a estadia de dois meses no Xingu. É lindo ler como ela absorveu parte da cultura e da alma xinguana e adaptou essa vivência aos seus próprios costumes.
Essa não é uma história sobre o sofrimento indígena, é sobre o dia a dia e os valores deles vistos da perspectiva de uma menina branca realmente interessada em compreender. Embora tenham acontecimentos chocantes e tristes, fica claro que o objetivo do livro não é esse, muito pelo contrário, é de tentar explicar pelas lentes urbanas de Ana, os preceitos da cultura xinguana. Inclusive não é apenas elogioso. Ela relata alguns costumes que podem não soar bem aos ouvidos que quem não estiver disposto a adentrar aquele cosmos e se permitir ter a perspectiva da outra concepção de mundo.
E vivas às vidas que a literatura nos permite viver!
Vou citar dois episódios de um podcast que tenho ouvido muito: Rádio Novelo Apresenta. Se a Rádio Novelo produz, é porque é bom. Esse podcast conta histórias reais inusitadas. Por episódio, são dois casos com temáticas que têm alguma ligação. Mais ou menos o que tentamos fazer aqui, aqui, no Livros e Outros, ligando livros a outras histórias, às vezes fatos outras muitas só ficção. Já o Rádio Novelo Apresenta conta sempre histórias reais.
No episódio Trama e Subtrama, o primeiro caso é o da doença que acabou matando o cientista Augusto Ruschi (que eu nem sabia que existia).
Esse senhor tinha um histórico de viagens para florestas, sobretudo a Amazônia, para coletar e/ou catalogar pássaros e orquídeas, até o dia em que se deparou com uma espécie de sapo que nunca tinha visto. Os indígenas que guiavam e acompanhavam o estudioso se recusaram a pegar alguns espécimes daquele sapo para ele, então Augusto mesmo foi com suas próprias mãos e pegou cerca de 30 sapos.
O que ele não sabia e que os acompanhantes não avisaram é que aquele animal era venenoso.
Augusto nunca tinha contado essa história, até que, prestes a morrer, já bem debilitado, deu uma entrevista em que contava o que estava acontecendo em seu organismo e a provável causa. Resultado: comoção nacional.
O então presidente José Sarney, solicitou ao amigo Cacique Raoni que curasse o cientista. Raoni então aceitou e passou uma semana no Rio de Janeiro, junto com o pajé Sapaim realizando um complexo ritual de cura. Deu certo? Vai ter que ouvir para saber.
Só adianto que do muito que aprendi com essa história, uma das lições é que, assim como aos médicos não indígenas, é necessário pagar o pajé que cuida do seu mal estar. E mais importante: é necessário pagar o quanto pesa. Nada de regatear nem pechinchar. As consequências da subestimação do trabalho do outro ou do pãodurismo podem ser graves…
Ana sabia disso. Em um trecho de Terrapreta, ela vai visitar a aldeia e leva praticamente uma farmácia consigo, porque se passasse mal, sua atual condição financeira não seria suficiente para pagar o pajé. Melhor se garantir com alopatia mesmo.
O segundo episódio que tem total relação com a história de Terrapreta é o Caixas Pretas. Dessa vez a gente vai ficar com o segundo caso, que é sobre o acidente aéreo entre uma aeronave da Gol que se chocou com um jato Legacy em 2006. Embora o problema tenha sido causado pelos eventos envolvendo o jato, este conseguiu pousar sem fazer vítimas. No avião da Gol todos que estavam a bordo morreram.
A Gol iniciou um processo para indenizar as vítimas.
Além das vítimas que estavam no voo, outras pessoas requereram reparação: os índigenas que habitavam a Terra Indígena Capoto Jarina. Os indígenas da etnia Mebêngôkre (Kaiapó) tentaram contato com a empresa até que um dos advogados da Gol, oito anos depois, foi conversar com os Kayapó para saber que danos a queda do avião causou na região e descobriu que… se tratava de um dano espiritual. Era uma interferência no modo de vida daquelas pessoas que inclusive forçou aldeias inteiras a se mudarem da região mais próxima à queda. Esse caso se tornou uma importante jurisprudência para as causas indígenas.

Kayapós no local da tragédia do voo Gol em 2006
Cara, eu ouvi Caixas Pretas na academia, no dia seguinte ao clube do livro da Circulares e cheguei a derramar umas lágrimas enquanto fazia leg press.
Sabe quem foram os líderes que representaram os Kayapó nessas negociações? O Cacique Raoni, aquele mesmo do episódio anterioremente citado, e seu sobrinho Megaron.
É muito interessante ver a estratégia jurídica e como os Kayapós conseguiram convencer que era justo serem indenizados.
Só para fechar: uma citação de Terrapreta e uma música para um final feliz. A música é A Ordem das Árvores, de Tulipa Ruiz e a citação segue abaixo.
“– No começo, as árvores não queriam dar fruto, mas eu arranhei os troncos com dente de jacaré e elas deram muito! – diz batendo amistosamente no tronco de uma árvore, como se cumprimentasse um parente. – O pequi já foi jacaré.
– Antes do Mariká matar ele – completo.
– Isso mesmo, mas o dono dele é o beija-flor. Olha o dono ali!
Eu demoro pra vê-lo, procurando entr
e as árvores algo que se mova. De fato, lá no fundo, um beija-flor miúdo, de asas verde-esmeralda e pescoço furta-cor, circula entre as árvores com ares de senhor. Os índios escutam e veem muitíssimo mais, já vou me conformando com as minhas desvantagens.
– Foi Gueti, o Sol, que deu o pequi pra ele. Fez os pássaros e foi distribuindo as coisas que existiam: pro urubu, águia, periquito… Cada planta, cada caminho. Os pássaros ficaram os donos das coisas, eles cuidam, mas também podem fazer mal.”
CARELLI, Rita. Terrapreta. Rio de Janeiro: Editora 34, 2022.
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