Suíte Tóquio

“No portão de embarque o relógio marca dez para o meio-dia. Pego a autorização que guardei dentro do livro com cuidado pra não amassar e penso que ainda posso voltar atrás, enquanto o
ônibus não partir eu ainda sou dona das minhas pernas, mas olhando para o papel lembro que não terei outra chance dessas e sigo em frente.

Aonde a gente tá indo?, a Cora diz. Acho que pela primeira vez ignoro uma pergunta dela, ocupada que estou separando os documentos e a passagem, relendo a autorização. Foi o seu Cacá quem fez, firma reconhecida em cartório, pra eu acompanhar a menor Cora de Azevedo Cunha até a casa dos pais dele no Rio de Janeiro, viagem que acabou não acontecendo mas que me deu a ideia de usar a autorização, válida por trinta dias. E como é hoje ou nunca, vamos, mulher, coragem, veja como o motorista nem olha direito pras pessoas, quer mais é que embarque todo mundo logo, até porque aqui fora tem gente que não acaba mais, e uma gente mal-educada que só, não tá enxergando a menina?, digo pra uma moça que quase passa por cima da Cora. Pra evitar outra topada, levanto a Picochuca no colo, vem cá com a Maju. Ela olha encantada para o alto, para o ônibus de dois andares. A gente vai nesse aí? Digo que sim e dou um beijo nela, um medo tomando conta de mim, minha mão aguando de novo, será que o motorista vai perceber a mão suarenta entregando os documentos? Mentalizo a minha Nossa Senhora Aparecida e quando vejo ele já está lendo a autorização. Confere a minha identidade e ajeita a gravata amarela, não sei por que faz isso, ajeitar a gravata, e diz: boa viagem.”

MADALOSSO, Giovana. Suíte Tóquio.

Esse foi um daqueles livros que fui ler sem grandes expectativas. A indicação veio de uma entrevista da Aline Bei (@alinebei) e eu fui ler sem saber do que se tratava, sem ler sinopses, orelha, quarta capa…nada.

Eis que, de cara, a gente se depara com o sequestro de uma criança. Assim na primeira linha. Nas duas primeiras páginas fica claro que a sequestradora é a babá, se chama Maju e a criança se chama Cora.

Giovana Madalosso escreveu esse livro em capítulos curtos, alternando a narrativa entre Maju, a babá, e Fernanda, a mãe da criança. A história retroage e conta sobre a vida dessas duas mulheres meses antes do ocorrido, até o dia após o sequestro.

Giovana Madalosso

O que temos aqui… duas mulheres jovens com vidas aparentemente opostas, mas com mais pontos de contato do que se esperava.

Maju é empregada doméstica na casa de Fernanda. Foi para São Paulo trabalhar e estudar para ser professora, mas só o trabalho aconteceu. Quando Maju chega à maior cidade do Brasil se depara com relações de trabalho que impossibilitaram que ela executasse as duas ações paralelamente.

Fernanda é produtora de audiovisual, adora o trabalho, é casada com Cacá, com quem tem um relacionamento morno e é mãe da pequena Cora.

Na casa de Fernanda ela é quem recebe o melhor soldo e não foi conflituoso decidir que ela trabalharia fora e Cacá ficaria em casa. Cacá é quem tem os telefones das mães das amigas de Cora, quem sabe o que tem que ser resolvido na escola. Ele, naquele momento está produzindo e vendendo terrários, muito caprichados pelo preço que cobra, praticamente não dá lucro. Fernanda viaja muito a trabalho, trabalha por horas a fio.

Um dia, Fernanda recebe a proposta de trabalho que esperava há tempos, salário muito melhor e maiores responsabilidades, o que faria com que tivesse ainda menos tempo para a vida em família.

Para assumir o novo emprego ela propõe à Maju um salário mais alto para que ela só folgasse um domingo a cada quinzena e mais uma folga mensal cujo pretexto não vou contar.

É nesse ponto que Maju vai ter um upgrade no quartinho de empregada, que a dona Fernanda apelida de Suíte Tóquio, por considerar parecido com os quartos compactos de hotéis japoneses.

Quarto de hotel cabine em Tóquio/ Japão.

Essas alterações na vida profissional das duas trarão consequências, revirando as vidas familiares, amorosas, anseios, perspectivas e culminando com o sequestro de Cora.

As duas mulheres têm o mesmo checklist para a felicidade, ter um amor, uma família e um emprego bom. O que isso significa para cada uma delas tem variações, entretanto, tratando cruamente, não passa desses três itens.

Fernanda tem uma filha que ela mal conhece, um apartamento lindo, matrimônio com papeis bem definidos entre o casal, e o emprego na área que escolheu trabalhar. Assim como muitas pessoas, tanto homens quanto mulheres, ela tem objetivos altos em relação à carreira e se esforça nesse sentido.

Maju ainda não tem filhos, conhece um homem gentil que também trabalha fora, pelo qual está apaixonada e com quem pretende construir uma família. Por outro lado, ela se sente um tanto frustrada por não ter conseguido realizar o objetivo de estudar e ter melhores condições de vida, então quando aparece a oportunidade de ganhar mais a ponderação passa por todo o dilema do equilíbrio das condições entre vida pessoal e vida profissional.

É óbvio que é um livro para pensar nas opções, imposições culturais (apesar de não ser sobre isso), desejos e possibilidades para mulheres no mundo contemporâneo.

Suíte Tóquio é dinâmico e tranquilo de ler.

Sobre as relações familiares, uma série bem bacaninha é Parenthood. É uma série sobre algumas possibilidades de organização familiar. O casal Braverman, Camille e Zeek, teve quatro filhos, que estão agora adultos e têm seus próprios filhos. Cada um desses núcleos familiares chefiados por um descendente Braverman terá questões e desafios diferentes.

Tem o mais velho, Adam Braverman se casou com Kristina e são pais de Haddie e Max, uma adolescente e uma criança que recebe o diagnóstico da Síndrome de Asperger.  Tem Sarah Braverman, mãe solo sobrevivente de relacionamento abusivo, cujos filhos Amber e Drew são adolescentes precisando de muita atenção e com sérias questões comportamentais, especialmente a rebelde Amber. Tem o mais novo, Crosby Braverman, que vai descobrir que tem um filho, quando a criança já tem uns seis anos de idade.

E aí chegamos ao ponto que queríamos a brilhante advogada, Julia Braverman (Erika Christensen), casada com Joel Graham (Sam Jaeger) e pais de Sidney (Savannah Paige Rae), Victor (Xolo Maridueña) e duas outras crianças cujos nomes não são revelados e só aparecem no final da última temporada.

Nas duas primeiras temporadas, o casal Julia e Joel são pais apenas de Sidney. Joel é o pai que fica em casa com a filha, que, assim como Cacá, tem os contatos dos pais dos colegas de escola, sabe quando e onde serão as festinhas de aniversário, tem o contato do pediatra e tals. Joel é mais presente que Cacá, até porque ele não tem babá para ajudar na criação da filha. A mãe, Julia, é advogada de uma corporação e passa muito tempo ocupada com as coisas do trabalho, que ela ama.

Se Cacá e Fernanda terão questões para resolver, Julia e Joel também terão as suas: Sidney é uma menina com altas habilidades que prefere abertamente o pai à mãe;  depois de várias tentativas frustradas de aumentar a família eles vão adotar um menino com idade próxima da filha biológica e enfrentar tanto a adaptação do filho, quanto os ciúmes e mau tratamento destinado a Victor por parte de Sidney; e ainda terão aquela crise no casamento.

Esse casal também tem papeis bem definidos e também aparentemente estão com tudo resolvido até que não estará resolvido mais…

Parenthood é um novelão? É um novelão. Seis temporadas. É para chorar baldes e baldes. Ótimo para desentupir canais lacrimais.

Pensando em Maju e em sua relação com Cora, o filme brasileiro Que horas ela volta? tem semelhanças com o amor dedicado por Val (Regina Casé) e Fabinho (Michel Jonas), o filho da patroa. Nesse caso é possível ainda comparar Fernanda e Cora, pelo relacionamento da mesma Val com sua própria filha, Jessica (Camila Márdila).

Vejam bem, se os pais de Fabinho não querem lhe dar atenção, Val acaba assumindo todos os cuidados, inclusive os emocionais do rapaz. Quando a filha de Val chega a São Paulo para prestar vestibular para a mesma universidade que Fabinho prestará, fica evidente o conflito da mãe tentando justificar para a filha, que ela mal conhece, o estilo de vida e o tratamento que recebe dos patrões. Val, simplesmente, não sabe lidar com a filha.

Val saiu de sua cidade e abriu mão de criar a filha para sair da condição de extrema pobreza e enviar recursos que dessem à Jessica uma vida melhor. Logo, tem similitudes, mas não é exatamente a mesma situação de Fernanda. O que não deslegitima a vontade de Fernanda de querer ascender na carreira.

Val e Fabinho desenvolvem um carinho que atenua a saudade que ela sente da filha ausente e a que ele sente dos pais negligentes. Claro que os pais de Fabinho são ainda mais ausentes que os de Cora. O que quero dizer aqui é que Maju, de Suíte Tóquio, também vai estabelecer um laço forte com a pequena Cora.

Que horas ela volta?  é um filmaço. De uma crítica social mordaz. No Festival de Sundance, venceu o prêmio especial do juri de melhores atuações para Regina Casé e Camila Márdila. Festival de Berlim: prêmio do público de melhor ficção. Grande Prêmio do Cinema Brasileiro: 14 indicações e 7 Quiquitos, entre eles melhor filme, direção, atriz, atriz coadjuvante e roteiro original. Fora outros prémios e indicações em outros festivais pelo mundo.

São três obras sobre famílias, ambições, filhos perdas, danos e escolhas. Uma é um livro dinâmico, sem julgamentos, nada piegas. Outra é um novelão, sensível e dramático. E a última obra, um filme que é acima de tudo um tapa na cara de muitas famílias brasileiras.

MADALOSSO, Giovana. Suíte Tóquio. Rio de Janeiro: Todavia, 2020.

MUYLAERT, Anna. Que Horas Ela Volta? Brasil: Pandora Filmes, 2015.

MASSIN, Dylan. Parenthood. EUA: NBC, 2010-2015.