“Uma conversão bem-sucedida era medida a partir de quão rápida, profunda e completamente alguém se despojava de sua cultura e adotava novas práticas e valores. Por exemplo, entre o povo Giküyũ, a circuncisão era considerada um rito de passagem que marcava a transição da juventude, um estágio de nenhuma responsabilidade legal, para a maturidade, com total responsabilidade. Em 1929, uma série de sociedades missionárias na Província Central — a Igreja Missionária Escocesa liderada pelo dr. Arthur; a Sociedade Missionária do Evangelho; e a Missão do Interior Africano, que já haviam condenado a circuncisão feminina como bárbara e anticristã — deu prosseguimento à sua campanha contra a prática e anunciou que todos os seus professores e agentes africanos teriam que assinar uma declaração jurando solenemente nunca vir a circuncidar crianças mulheres; nunca se tornar um membro da Kikuyu Central Association, a principal organização política africana da época; nunca se tornar um seguidor de Jomo Kenyatta, secretário-geral da KCA, que então estava na Inglaterra como delegado da organização; e nunca se afiliar a qualquer partido a não ser que este fosse organizado pelo governo ou pelos missionários. A declaração solicitava aos adeptos do cristianismo da escola que tomassem uma posição contra a prática e também contra a política de resistência, que, apesar da interdição da East Africa Association de Harry Thuku em 1922, de seu exílio e aprisionamento, e do massacre de vinte e três quenianos do lado de fora da Delegacia Central de Polícia de Nairóbi, havia continuado e até mesmo fora intensificada sob a KCA. Havia um conflito de interesses. Desde muito cedo os missionários foram os porta-vozes colonialmente aceitos dos interesses africanos, tendo o dr. Arthur até mesmo garantido uma cadeira na legislatura colonial como o porta-voz oficial dos interesses africanos, ao passo que europeus e asiáticos tinham seus próprios representantes diretos. Portanto, a briga acerca da circuncisão feminina tornou-se uma procuração para a economia, a política e a cultura, e para qualquer pessoa ou organização que tivessem o direito de falar pelos africanos do Quênia.”
Ngũgĩ wa Thiong’o. Sonhos em Tempo de Guerra.
Tive que colocar o nome do autor no Google para entender a pronúncia de Ngũgĩ wa Thiong’o.
Não que ainda não tivesse ouvido falar dele. Ele tem uma biografia e produção bastante interessante, mas esse foi o meu primeiro Ngūgī wa Thiong’o lido. E que porta de entrada, senhores!
O moço nascido no Quênia, ainda colônia inglesa, é um escritor e dramaturgo prolífico, tem também uma revista escrita na língua gĩkũyũ, seu idioma natal.

Ngugi wa Thiong’o
Os primeiros romances que compõem sua obra foram escritos em inglês, até que ele decidisse passar a escrever seus originais em gĩkũyũ, como foi o caso de “Sonhos em Tempo de Guerra”.
“Escrevi em inglês meus primeiros quatro romances, inclusive Um grão de trigo. Quando fui preso, em 1977, foi porque escrevi uma peça de teatro em gĩkũyũ. Por isso, tomei a decisão política, de resistência, de escrever sempre no meu idioma original.”
Ele foi indicado mais de uma vez ao prêmio Nobel de Literatura, sendo a última em 2023, quando Jon Fosse levou a honraria. Já deu aulas de Literatura Comparada em Yale e NYU.
Para saber mais sobre sua vida, este livro é um bom começo, porque narra a infância do autor ao mesmo tempo que situa o leitor nos fatos da História do Quênia pelos olhos de um queniano. Então, no âmbito social privado tem: poligamia, economia doméstica, escola e o valor que aquela sociedade dava ao ensino formal. E é nesse meio particular que vamos entender porque a luta pelo ensino formal para quenianos é o próprio retrato da opressão inglesa e reflete o que culminaria nas guerras pela independência do Quênia. Se mistura à luta por educação questões político-econômicas como os meios usados pelos britânicos para cooptar nativos quenianos para a causa colonial, a formação dos grupos que lutaram em polos opostos na guerra, o significado de manter tradições como resistência à aculturação e ao domínio econômico e político.
Não pude deixar de reparar que uma dessas tradições é o que é chamado no livro de ‘circuncisão feminina’, que o mundo ocidental condena e há forte campanha para erradicar esse costume que tanto prejudica as mulheres. Sobre esse ponto, o autor o entende como parte do arcabouço de tradições que deve ser mantido para assegurar a independência cultural do Quênia. Embora ele não emita opinião explicita sobre a prática como o faz em relação à circuncisão masculina, ritual pelo qual ele mesmo passou.
A obra inicia antes de Ngũgĩ nascer, com a história do avô paterno e do pai e seus casamentos. Passa pelas Guerras Mundiais, especialmente a segunda quando um dos irmãos mais velhos dele lutou em favor dos britânicos. Então chega ao nascimento de Ngūgī, no meio da II Guerra, e sua primeira infância do menino vivendo com suas quatro mães (as esposas do pai), o pai, seus vinte e quatro irmãos e o tempo em que ele começa a frequentar a escola.
Então o leitor é apresentado às diferenças entre as escolas mantidas pelos ingleses (missionários) e as mantidas por quenianos tradicionalistas quanto ao tipo de ensino ofertado em cada uma delas. Vai também perceber a escalada de violências, seja na distribuição de terras, nas substituições das leis quenianas, até então apalavradas, pelas leis e burocracia vindas da Europa. O livro para no início da guerra de independência, que coincide com o ingresso do protagonista em um internato considerado como o mais conceituado de todo o país.

Kimane Maruge (o verdadeiro) na sala de aula com seus colegas de classe
Concluí que entrei nesse livro sem saber mais que duas linhas de História do Quênia e saí sabendo um pouco mais. “Sonhos em Tempo de Guerra” foi para mim uma porta de entrada para entender melhor aquele país, pois a cada fato mencionado, corri para pesquisar do que se tratava, primeiro para entender melhor a trama e depois porque aguçou a curiosidade histórica mesmo.
Talvez, a maior mensagem desta obra cheia de mensagens possíveis, seja sobre o poder e a importância da educação formal na vida de um indivíduo e como isso foi transformador para o autor.
Uma história real, assim como a de Ngũgĩ, e que também fala do poder transformador da educação é “Uma Lição de Vida“. Esse filme, que também se passa no Quênia, vai dar outro ponto de vista sobre a independência do país, suas relações neocoloniais com países ricos e todas as injustiças que advieram da exploração daquele país africano. O homem em questão é Kimane Maruge, que voltou a estudar aos oitenta e quatro anos de idade. Por que ele demorou tanto? Porque entre outras dificuldades ele esteve preso pelo poder colonial. Preso por pertencer à etnia Kikuyu, uma das mais enfronhadas no movimento Mau Mau, cuja luta, iniciada por volta de 1952, culminou com a independência do Quênia em 1963.
Com foco no pós-independência do Quênia e o neocolonialismo com seus interesses, conflitos abusos e injustiças monumentais, ainda indico um filme que ficou bem mais conhecido que “Uma Lição de Vida”: “O Jardineiro Fiel”, indicado a 4 Oscars, levou o de atriz coadjuvante para Rachel Weisz. Aqui não temos uma história de superação e esperança. Ao contrário, sai-se do filme com a amarga impressão de que um continente inteiro, no caso a África, está preso em uma armadilha, condenado a ser eternamente o almoxarifado do edifício ou, no caso específico, um laboratório cheio de animais de teste para novas substancias antes de serem disponibilizados ao público “nobre”. O filme conta a história de testes de medicamentos causadores de sérios efeitos colaterais em pacientes quenianos e o que aconteceu com os que perceberam a conspiração e lutaram para desmontá-la. Ah! A direção é brasileira, de Fernando Meirelles.
THIONG’O, Ngũgĩ wa. Sonhos em Tempo de Guerra: Memórias de Infância. Tradução: BONILO, Fábio & MESQUITA, Elton. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2015.
MEIRELLES, Fernando. O Jardineiro Fiel. Estados Unidos & Reino Unido: 2005.
CHADWICK, Justin. Uma Lição de Vida. Estados Unidos & Reino Unido: 2010.
19/08/2024 at 09:32
Excelente retorno às leituras e com ótimas dicas de filmes! Valeu!
19/08/2024 at 10:16
Obrigada! =)
Todas as indicações desta postagem são ótimas mesmo.