
Capa do livro Sobre a Escrita: A Arte em Memórias.
“A ideia de que criatividade e substâncias que alteram a mente estão ligadas é um dos grande mitos pop-intelectuais do nosso tempo. Os quatro escritores do século XX cujo trabalho é, em grande parte, responsável pelo mito são, provavelmente, Hemingway, Fitzgerald, Sherwood Anderson e o poeta Dylan Thomas. Eles formaram nossa visão de um deserto existencial de língua inglesa, onde as pessoas estão isoladas umas das outras e vivem em uma atmosfera de estrangulamento emocional e desespero. Esses conceitos são muito familiares para a maioria dos alcoólatras; a reação mais comum a eles é o divertimento. Escritores viciados não passam de pessoas viciadas. (..) Qualquer defesa drogas e álcool como necessidade de embotar sensibilidades mais refinadas não passa de conversa autopiedosa para boi dormir. Ouvi motoristas de caminhões limpa-neves alcoólatras dizerem a mesma coisa, que bebem para acalmar seus demônios. (…) Hemingway e Fitzgerald não bebiam porque eram criativos, alienados ou moralmente fracos. Bebiam porque é isso que bêbados estão programados para fazer.”
KING, Stephen. Sobre a Escrita: A Arte em Memórias. p. 89.
Sobre a Escrita: A arte em memórias é um livro em que Stephen King discorre sobre sua experiência como escritor e seu processo criativo.
O estilo é bem informal, fácil de ler e assimilar. É como se o autor estivesse batendo um papo com um pupilo com quem tem bastante liberdade. É desbocado, direto, sensível e prático. Por essas características é que autores de ficção falando sobre como se cria histórias sempre indicam a leitura dessa obra.
Ela destoa das demais obras de Stephen King, por ser autobiográfica e, portanto, não ficcional. Ninguém terá pesadelos porque leu Sobre a Escrita, muito menos dormirá com a cabeça coberta pelo edredom porque está com medo de ficar sozinho. Muito pelo contrário, a experiência de leitura é agradável, generosa e muito divertida.
O autor conta passagens complicadas sobre sua vida pessoal e vai demonstrando como a pior das experiências ou a mais banal delas pode ser um mote para criar histórias, desde que se esteja atento aos insights.
Existem divisões no livro, embora os temas de uma parte permeiem as demais. A primeira delas, depois dos três prefácios, se chama “Currículo” e é a autobiografia resumida. Engraçadíssimo. Que senso de humor! Um tanto desbocado, como são muitas das conversas informais, e isso dá a impressão de estar em uma mesa de bar, ou de um restaurante, posto que Stephen King não consome mais bebidas alcoólicas.
A segunda se chama “Caixa de Ferramentas” em que ele identifica quatro “gavetas” fundamentais para a escrita. Cada gaveta de sua caixa de ferramentas, possui itens sem os quais o escritor não conseguiria trabalhar. O básico do básico. Seriam elas: vocabulário, gramática, elementos de estilo, material para aplainar o texto (cortar o desnecessário).
Em uma parte chamada “Sobre a Escrita”, assim como o título do livro, ele vai discutir seu método de trabalho e como foi aprimorando a técnica até chegar nesse sistema pelo qual escreve suas obras (lembrando que King tem cerca de sessenta romances e mais ou menos duzentos contos publicados). Esse método vai desde a primeira centelha da ideia da história até a publicação, com dicas sobre o mercado editorial estadunidense e até como encontrar um agente literário.
Quase no encerramento, outra parte autobiográfica em que ele narra um acidente que quase lhe tirou a vida, a volta ao ofício depois da tragédia e como a escrita foi importante em sua recuperação.
Iniciei o parágrafo acima com um “quase”, porque Stephen generosamente incluiu mais três adendos depois do postscriptum. Parece que a cada edição de Sobre a Escrita um novo prefácio e um novo posfácio são incorporados. Desses adendos o primeiro é uma demonstração prática de como limpar o texto tornando-o mais interessante e fluido, os dois últimos são listas de indicações de livros, que influenciaram a escrita de Stephen King (dos quais li muito poucos e alguns têm texto nesse site. Os links estarão no final).
Embora seja bem menos desbocado, meu ex-orientador do mestrado tem estilo de fala e escrita (me refiro à escrita informal, em redes sociais, e não à acadêmica) bem parecidos com o de Stephen King nessa obra. Inclusive na metade do livro fui impelida a escrever para ele informando que à medida que lia o livro a voz que pronunciava aquelas frases na minha cabeça era a dele. Sem rodeios nem firulas e divertido. Salve, João!
Sobre generosidade intelectual nos momentos em que pessoas excepcionais se dignam a ensinar os ordinários a produzir, além do João Furtado, que foi meu orientador (não escreveu livro sobre o processo de pesquisa acadêmica, pelo menos não que eu saiba), podemos citar o intelectual italiano: Umberto Eco.

Como se Faz Uma Tese
Umberto Eco é muito conhecido por obras, de fôlego em pesquisa histórica embasando o pano de fundo do universo ficcional, como O Nome da Rosa. Eco não foi apenas um escritor de ficção, ele foi antes um acadêmico da cadeira de Semiótica na Universidade de Bologna, tendo lecionado também em: Yale, Columbia, Harvard, Collège de France e Universidade de Toronto.
Essa pessoa com esse currículo, compartilhou, em um manual de quase duzentas páginas, pormenores de seu método de pesquisa: Como se Faz uma Tese.
Das obras que serão citadas nesse texto, Como se faz uma tese foi o primeiro que li. Lembro-me de, ainda na graduação, ter me sentido no caminho certo ao descobrir que algumas das dicas de Eco eu já aplicava intuitivamente. Os capítulos são sobre: O que é uma tese e para que serve; A escolha do tema; A pesquisa do material; O plano de trabalho e o fichamento; A redação; A redação definitiva.
King e Eco têm, é claro, alguns pontos em comum em seus métodos, embora um seja escritor apenas de ficção e o outro seja pesquisador acadêmico e escritor de ficção.
Se em uma ponta está meu ex-orientador e Umberto Eco, no meio e está Stephen King, e na outra ponta está uma outra referência, que em relação a King é bem mais desbocada e com uma vida bem mais problemática: Ozzy Osbourne. Sim, Ozzy Osborne, aquele que comeu um morcego no palco do show do Black Sabbath.
Há muitos anos, um amigo me disse, “vou te recomendar um livro que vai te livrar para sempre das ressacas morais.” E foi com essa premissa em mente que devorei em pouquíssimos dias a autobiografia de Ozzy Osbourne: Eu sou Ozzy. Inclusive está narrado no livro o episódio do morcego e todas as vacinas antirrábicas que se seguiram.

Capa de Eu sou Ozzy.
Tanto Ozzy quanto Stephen tiveram suas questões familiares pré-fama, problemas com drogas e álcool, feitos importantíssimos em suas carreiras e famílias que lhes auxiliaram a sair dos buracos em que se meteram.
O tom das duas confissões é o mesmo. Descontraído, como se estivesse conversando com o leitor e como se o leitor fosse uma pessoa de quem querem se tornar íntimos. Guardadas as devidas semelhanças, a lama da vida de Ozzy é a lama da vida de Stephen King elevada à décima potência. Se você rir das passagens engraçadas narradas por King, vai gargalhar com as de Ozzy. Se tiver raiva das vezes em que Stephen King pisou na bola, vai querer fulminar Ozzy Osbourne por seus erros, que foram enormemente mais sérios.
Além do morcego, Ozzy conta: sua prisão por ter urinado no Álamo, patrimônio histórico dos Estados Unidos; a dose cavalar de anestesia que teve que tomar porque as doses normais não faziam efeito naquele corpinho junkie, seu péssimo comportamento com as mulheres, a relação com os filhos, o reality show The Osbournes, que foi sucesso mundial e os problemas da superexposição que o programa causou… Talvez The Osbournes possa também ser incluído na categoria autobiografia dado o nível de intromissão na intimidade da família.

Pôster de The Osbournes
Outras semelhanças são o gosto dos dois por temáticas obscuras, que muitas pessoas consideram amedrontadoras, e o fato de que King também tem uma banda de rock, a Rock Bottom Remainders, composta por autores que gostam de fazer música.
Fiquem com a música do último disco de Ozzy Osbourne, de letra intimista e com uma dose de autobiografia: Ordinary Man.
Links para textos comentando alguns dos livros preferidos de Stephen King:
Harry Potter e a Pedra Filosofal – o espaço físico é um personagem
KING, Stephen. Sobre a Escrita: A Arte em Memórias. Tradução: TEIXEIRA, Michel. Rio de Janeiro: Suma, 2021.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Tradução: SOUZA, Gilson Cesar Cardoso de. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
OSBOURNE, Ozzy. Eu sou Ozzy. São José dos Campos: Benvirá, 2012.
JONATHAN, Taylor. The Osbournes. Estados Unidos: MTV, 2002-2005.
01/10/2021 at 22:54
Muito bom!
Esse livro do Ozzy é um dos meus preferidos.
Ele me abriu as portas pra um dos meus gêneros preferidos hoje em dia, as biografias de rock.
07/10/2021 at 16:44
Num é? Inesquecível. Eu fico feliz só de lembrar.