
Capa do livro Senhora de José de Alencar
“A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa: pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem, que não me soube compreender, que mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicarei que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta-me que eu o ame. Esta última consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração; era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: este constante martírio a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento. O senhor ficará livre e rico.”
ALENCAR, José. Senhora. p. 102.
Já vem José de Alencar com aquelas mocinhas sem sal, excessivamente ingênuas e boazinhas…
Aqui não, senhoras e senhores. Aurélia tinha tudo para ser uma dessas mocinhas, mas depois de comer o pão que o diabo amaçou, se tornou uma mulher forte e determinada. E, sim, foi criada por José de Alencar. Esse autor é o terror dos adolescentes, um dos principais responsáveis pela resistência dos leitores aos clássicos nacionais.
O mais famoso autor do romantismo brasileiro, escreveu vários romances em que o bem e o mal são bem demarcados, os enredos são extremamente descritivos e a linguagem é pomposa, rebuscada.
Embora Senhora, publicado pela primeira vez em 1875, caiba nas características da pompa do vocabulário e da descrição, o que o destaca são a crítica social e a humanidade dual dos personagens.
Os principais personagens são: Aurélia Camargo, mulher de grande beleza física e inteligência que herda a fortuna do avô, e Fernando Seixas, de classe média, em busca de um casamento por interesse. Além deles são também importantes a mãe, o irmão, o pai e o avô de Aurélia, bem como: seu tio materno Lemos, a tia também materna Firmina e Torquato o advogado.

Cena da novela Senhora, 1975. Com Cláudio Marzo e Norma Blum nos papeis de Seixas e Aurélia.
Aurélia era filha de pais que se casaram por amor, abandonaram as respectivas famílias que eram contra o casamento e foram viver juntos. Tiveram dois filhos e uma vida muito modesta.
Embora não faltasse amor, faltava dinheiro. O pai, Pedro Camargo, era filho de Lourenço Camargo, que por sua vez era um fazendeiro muito rico. Pedro foi deserdado quando optou por seguir sua vida ao lado da costureira Emília.
A vida dessa família foi bastante difícil dependendo do trabalho de todos eles para o sustento. Aurélia sempre se destacou por sua inteligência, embora por ser mulher no século XIX, tenha ficado relegada aos bastidores, por exemplo executando o trabalho de contabilidade do irmão para que este recebesse o salário. Essa condição de trabalho imposta socialmente às mulheres é alvo de crítica do autor, que entende ser injusto que ela não possa trabalhar no que faz com competência.
À medida que os membros de sua família foram adoecendo e falecendo a vida financeira da moça ficava ainda mais complicada.
De repente, tomado pelo remorso, bate à porta o avô. Este deixa em testamento toda sua fortuna para a neta. Claro que antes de ter conhecimento da existência do testamento, Aurélia ficou órfã e passou pelos piores momentos da vida. Uma vez descoberta sua fortuna, ela se viu sozinha para usufruir da fortuna, tornando-se a solteira mais rica do Rio de Janeiro.
Como tutor, foi nomeado o tio Lemos, que sempre rejeitou a família de Aurélia, mas era interesseiro o suficiente para se sujeitar às ordens da sobrinha em troca de viver com ela em abastança. A tia Firmina, que assumiu a pobre menina órfã e pobre após a morte da irmã, se tornou mulher de confiança e apreço da nova dama da sociedade carioca.
Falta agora inserir Fernando Seixas nessa história.
Naquele tempo as mulheres pagavam dotes aos seus futuros maridos para que se efetuasse o casamento.
Fernando, jovem bonito e bom partido, conheceu Aurélia ainda pobre. O casalzinho estava apaixonado, ela não tinha nada para oferecer em dote e sabia que as condições financeiras de Fernando não a tirariam da pobreza. Estavam resolvidos a se casar por amor. Até que a Seixas foi oferecido um dote de 30 contos de réis, para desposar Adelaide Amaral. O mocinho que tinha lá seus desvios de caráter, terminou o noivado com Aurélia e aceitou o dote.
Aurélia ficou arrasada, porém se recompôs e voltou mais linda que a luz do sol, riquíssima e com sede de vingança.
A desilusão fez com que a moça cultivasse um cinismo fino. Ela olhava os pretendentes nos bailes da alta sociedade do Rio de Janeiro com desdém, comentando com as amigas a cotação de cada um dos seus bajuladores no mercado de maridos. Passou a entender o matrimônio como um negócio. Comprou Seixas por cem contos de réis, com a condição de que aceitasse se comprometer sem saber quem era a noiva. Isso só lhe seria revelado depois de firmado o negócio. Mais uma vez nosso “herói” se vendeu, desmanchando o noivado com Adelaide para se casar com a noiva incógnita.
E não foi que o jovem mancebo achou que tinha tirado a sorte grande casando-se com o amor de sua vida e de quebra ficando podre de rico?
Aurélia arquitetou aquela vingança com frieza. Agora, Seixas a pertencia, deveria fingir felicidade e obedece-la em público, sem uma gota de amor no privado.
Mulheres humilhadas, enganadas, agredidas dispostas a se vingar são tema de centenas de outras histórias. No cinema, temos encenadas obras primas com esse tema.

Cartaz de Kill Bill Volume 1
“A vingança é um prato que se come frio” é o provérbio que inicia o filme Kill Bill, clássico de Quentin Tarantino.
Toda vez que vejo algum líquido vermelho espirrando, tal como catchup ou molho de tomate, lembro-me desse filme. É tanto sangue, mas é tanto sangue, provavelmente o mais sangrento Tarantino de todos e, em se tratando desse roteirista e diretor, isso é muita coisa. A atriz Uma Thurman que protagoniza Kill Bill também trabalhou como roteirista junto com Tarantino. A fotografia é lindíssima, os efeitos e as cenas de luta também.
Kill Bill tem quatro horas de duração e foi lançado em dois volumes. Nele está narrada a saga de Beatrix Kiddo (Uma Thurman) que era parte do grupo Esquadrão Assassino de Víboras Mortais, comandado por Bill (David Carradine) e do qual faziam parte mais três mulheres: O-Ren Ishii (Lucy Liu); Elle Driver (Daryl Hanna); Vernita Green (Vivica A. Fox).
Tudo começa quando Beatrix decide sair da organização e comunica essa intenção a Bill, que aparentemente levou numa boa. Então, no dia do casamento de Beatrix, Bill e as Víboras Mortais, vão até o local da cerimônia e tentam matar a desertora, que, diga-se de passagem, estava grávida.

Poster de Kill Bill Volume 2
Incrivelmente, Beatrix sobrevive. Depois de quatro longos anos em coma, acorda pronta para a desforra.
Beatrix faz intenso treinamento com um mestre do kung-fu e recebe dele uma poderosa espada que junto com seu traje amarelo são a marca do filme. Dizer que quase todos os personagens morrem quando falamos da produção de Tarantino não é estragar a surpresa. Assim como José de Alencar, o cineasta de Kill Bill também tem suas marcas.

Poster de Promissing Young Woman (Bela Vingança, em Português)
Outro filme excelente e cheio de retaliações é Bela Vingança, que conquistou o Oscar 2021 de melhor roteiro original, para Emerald Fennel, e foi indicado a outras quatro categorias. Entre as indicações estão melhor atriz para Carey Mulligan e Melhor direção para Emerald Fennel. O nome original é Promising Young Woman (Jovem Promissora, em tradução livre) que é um título irônico, embora Bela Vingança não seja ruim.
Nesse suspense/comédia, a personagem Cassandra é uma “educadora” de homens que abusam sexualmente de mulheres inconscientes em clubes noturnos. Fingindo embriaguez para testar o comportamento de homens aleatórios, pune os que não são aprovados. Circunstâncias inesperadas a ajudam a por em marcha um plano contra personagens específicos, que participaram ativamente ou foram omissos em relação a um acontecimento que provocou trauma profundo em Cassie.
Com pitadas de humor ácido e um roteiro muito bom, Bela Vingança é um filme tenso e divertido com final supreendente.
Até agora, apresentamos filmes de vingança feminina envolvendo mais de uma pessoa atingida pelos planos meticulosos das protagonistas. Citemos então, mais uma mulher inteligentíssima, aliás a obra deixa claro que estamos lidando com um QI acima da média, e que, assim como Aurélia, apontou seus canhões para o cônjuge: Amy Dunne (Rosamund Pike) de Garota Exemplar (Gone Girl). Esse filme foi dirigido por David Fincher, mesmo diretor de Clube da Luta.

Poster de Gone Girl (Garota Exemplar, em português)
Amy Dunne, esposa do professor universitário Nick Dunne (Bem Afleck) desaparece misteriosamente, deixando o esposo desesperado e na posição de principal suspeito. O filme é baseado no livro Gone Girl de Gillian Flynn. No decorrer da trama, o expectador vai percebendo que a vida do casal não era assim tão perfeita e as reviravoltas estão ao longo de toda a história, por isso não darei mais detalhes.
Apesar de Aurélia ter sido bastante sagaz e calculista, Amy Dunne, Beatrix Kiddo e Cassandra a superam de longe nos requintes de crueldade.
Por fim, fiquem com a música Top Top da banda Mutantes, para embalar as histórias de vingança:
“Eu vou sabotar/ Você vai se azarar/ O que eu não ganho eu leso/Ninguém vai me gozar, não jamais/Eu vou sabotar/ Vou casar com ele/ Vou trepar na escada/Pra pintar seu nome no céu/ Sabotagem/ Sabotagem/ Sabotagem/ Eu quero que você se… top top top Uh!/ Ninguém vai dizer/ Que eu deixei barato/ Vou me ligar em outra/ Te dizer bye bye, até nunca, jamais.”
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Penguin, 2013.
FINCHER, David. Garota Exemplar. EUA: 20th Century Fox, 2014.
FENNEL, Emerald. Bela Vingança. EUA: Universal Pictures, 2020.
TARANTINO, Quentin. Kill Bill Vol 1. EUA: Miramax, 2003.
TARANTINO, Quentin. Kill Bill Vol 2. EUA: Miramax, 2004.
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