Capa do livro Robinson Crusoé

“Um dia, Sexta-Feira confessou-me que, se o nosso Deus podia ouvir-nos, ainda que vivendo pra lá do sol, devia ser um deus maior que ‘Benamuque’, o qual vivia, apenas, um pouco além, e, assim mesmo, só os podia ouvir quando subiam às grandes montanhas, onde ele vivia. Perguntei a Sexta-Feira se já tinha ido lá para falar-lhe. Respondeu-me que não, pois os homens novos nunca iam. Só iam os velhos, a quem chamava ‘nocaque’, isso é religiosos, o clero, conforme me explicou. Eles é que se dirigiam às montanhas para dizer ‘ó’ (assim designava as preces), voltando, depois, para contar-lhes o que Benamuque dissera. Foi assim que me inteirei da existência de clero mesmo entre os pagãos mais cegos e ignorantes do mundo. (…)

Expliquei-lhe ainda, da melhor maneira que pude, porque o nosso bendito redentor não lhe dera a natureza dos anjo, mas a da progênie de Abraão e, por que, devido a esse fato , os anjos caídos não compartilhavam da redenção. Disse-lhe mais que não passava de ovelha perdida do povo de Israel e assim por diante. Deus sabe  que usava mais de sinceridade do que de sabedoria na catequese do pobre bugre.”

DAFOE, Daniel. Robinson Crusoé.

 

Aventura é um gênero que leio muito pouco, embora, quase sempre, ao vencer o bloqueio que me distancia dessas histórias o resultado seja positivo. Aliás, não me lembro de não ter gostado de um livro de aventura.

Não são normalmente as obras mais complexas, e isso pode ser momento precioso entre uma obra que exige muito raciocínio e outra.

Esse é o caso de Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe. Resisti o quanto pude a ler essa história e quando cedi, me surpreendi muito positivamente, ao ponto de dar por certo uma releitura no futuro e de recomendar a todos sem restrições.

Robinson Crusoé é um homem inglês jovem, e destemido, com sede de desafios. Antes da maior aventura de todas, houve outras, todas elas marcadas por uma incrível sorte do protagonista, que era agraciado com boas surpresas e reviravoltas sempre se dando muito bem. A mais bem sucedida das aventuras foi inclusive no Brasil.

Robinson, que vem parar em solo brasileiro, mais especificamente em Salvador, quando resgatado por um navio português, se estabelece na Bahia, tornando-se um promissor produtor de cana.

Devemos aqui fazer uma pausa e atentar para ano da primeira publicação deste livro: 1719, portanto, início do século XVIII. Nessa época o Brasil, assim como todas as colônias de exploração nas Américas, principalmente as de dominação espanhola e portuguesa, era sustentada por mão de obra escravizada, fossem povos originais, pessoas traficadas da África ou descendentes de africanos. As discussões acerca da desumanidade desse sistema só teriam força no século seguinte, tanto é que no Brasil a abolição da escravatura só ocorreu em 1888.

Outro aspecto de época que vale pontuar é que, as viagens para fora da Europa eram consideradas aventuras cheias de perigos e exotismo, sendo os habitantes originários dessas regiões tidos como menos racionais, selvagens e inferiores.

Agora situados para ler a obra sob a perspectiva de um homem inglês do século XVIII, prosseguimos com a razão que levou Robinson Crusoé à maior, mais fantástica e duradoura aventura, que foi sobreviver por quase trinta anos em uma ilha pouco habitada e de moradores nada amigáveis.

Ele estava plenamente estabelecido no Brasil. Entretanto, mais pela aventura do que pelos lucros da empreitada, Robinson acabou convencido por outros monocultores a se juntar a eles em uma viagem á África para traficar pessoas que seriam escravizadas em suas fazendas a fim de eliminar os atravessadores, posto que portugueses e espanhóis tinham o monopólio nessa travessia e comércio.

Nessa viagem, a embarcação deles naufraga e nosso herói é o único sobrevivente em uma ilha caribenha quase deserta.

Muito engraçado tudo o que ele passa na ilha e as suas engenhosidades para sobreviver. Poderia ser trágico, mas Robinson é tão sortudo, sem noção e safo, que é hilário!

Não entrarei em detalhes sobre o que ele aprendeu a fazer e como usou os recursos de que dispunha. Apesar de ser um náufrago, era sem dúvida uma pessoa de muita coragem, capacidade de observação, adaptação e conhecimentos aleatórios que o levaram não só a vinte e oito anos de sobrevivência, mas a vinte e oito anos de sobrevivência confortável.

Pôster do filme Náufrago.

Obviamente, o filme Náufrago, de 2000, estrelado por Tom Hanks é inspirado nessa obra. Pode-se dizer que Náufrago é quase uma adaptação de Robinson Crusoé. Aliás, todas as histórias de pessoas perdidas em ilhas desertas devem ter um pezinho na trama de Dafoe. Apesar da problemática relação do personagem principal do filme com a Fedex, empresa de entregas em que trabalha, a luta por sobrevivência utilizando os destroços do avião de carga em que estava e as encomendas que o avião transportava, são o mesmo roteiro que Robinson segue com os destroços do navio naufragado.

Vamos a uma outra categoria do entretenimento que certamente deve ter sido projetada por pessoas que conheciam essa história, que seriam os criadores do jogo Minecraft, cuja primeira versão foi lançada em 2009.

Minecraft é o jogo mais vendido do mundo em todos os tempos. Basicamente é um jogo pixelizado em que o jogador tem que obter matérias primas e construir um mundo. Existem dois modos: sobrevivência, em que o jogador precisa obter os recursos necessários para sobreviver, e o modo criativo, em que esses recursos são ilimitados e estão disponíveis.

Pôster de Minecraft

Esse jogo foi inventado por Markus “Notch” Persson e hoje é desenvolvido pela Mojang Studios, que pertence à Microsoft. A estética de Minecraft e a marca já renderam muitos desdobramentos em desenhos animados, brinquedos, roupas e outras tantas mercadorias, sendo extremamente lucrativa.

Assim como o avatar do jogo Minecraft precisa prover bens e materiais para sua própria sobrevivência Robinson Crusoé teve que ser astuto e criativo para não morrer após o naufrágio que vitimou seus companheiros.

A novela Salsa e Merengue, produzida pela Rede Globo, fez homenagem a Robinson Crusoé nomeando uma personagem como Sexta-Feira. No livro, Sexta-Feira é um homem de uma tribo nativa que reside do outro lado da ilha e que é salvo da morte por Robinson. Em troca Sexta-Feira se oferece para ser seu servo. Para se comunicar eles usavam sinais até que Robinson o ensinou  a falar inglês. Na fase em que não conseguiam se comunicar por meio da linguagem falada, Robinson deu o nome ao rapaz de Sexta-Feira, porque foi o dia da semana em que se encontraram pela primeira vez.

Sexta-Feira e seu amo tem o melhor diálogo do livro em minha opinião. Eles discutem as divindades de seus povos e Daniel Dafoe dá a entender que Robinson não tinha tantas certezas sobre sua fé, apesar de tentar catequizar o rapaz. Enquanto conversavam sobre quem era Deus para Robinson e quem era Deus para Sexta-Feira, eles concluem que o Deus do europeu era mais poderoso por ser onisciente e onipresente, por outro lado Robinson não consegue responder ao questionamento de Sexta-Feira quando indaga se Deus é todo poderoso, porque não acaba com o demônio e o mundo passa a ter só o bem. Nesse ponto Robinson tergiversa, declara estar com sono e interrompe a conversa.

A atriz Mara Manzan no papel de Sexta-Feira

Na novela global, Sexta-Feira é uma mulher, interpretada por Mara Manzan, que é empregada doméstica na casa de Teodora, personagem vivida por Débora Block. Ela inicialmente não fala a língua de Teodora, é extremamente devotada, leal e um tanto atrapalhada. Exatamente como o personagem de Dafoe. Não dá para dizer que a relação entre elas tenha envelhecido bem. Teodora não era exatamente uma patroa gentil e Sexta-Feira tinha que pedir permissão para fazer coisas que não deveriam ser da alçada da empregadora, mas ainda assim, foi uma interessante interpretação por parte da atriz Mara Manzan. Salsa e Merengue foi ao ar em 1996, escrita por Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa e dirigida por Wolf Maia.

Bem no início do livro ficamos sabendo que o sobrenome do personagem não é Crusoé, mas Robinson Kreutznaer. A pronúncia desse sobrenome foi sendo corrompida até que eles mesmos passassem a se chamar de Crusoé, inclusive escrevendo com essa grafia.

Esse detalhe de corrupção do nome tem tantos casos de registros estranhos em cartório porque os pais ou o escrivão (ou as duas partes) não pronunciaram ou não compreenderam bem o que era para ser escrito.

Lembra o caso do nome da atriz Saoirse Ronan, protagonista de filmes como Ladybird, Adoráveis Mulheres e Brooklin. Ela é irlandesa e seu nome, que significa liberdade, é de origem gaélica.

Em várias aparições da atriz em programas de entrevista ela esclarece a pronúncia de seu nome, o que deixa bem evidente a dificuldade do público em dizer corretamente o nome dela. Um vídeo do canal Tecla Sap, mostra como falar corretamente e também tem algumas dessas vezes em que a atriz esclareceu como era seu nome.

Eu mesma pronunciei Saoirse errado centenas de vezes. A correta forma de dizer Saoirse, em fonemas da língua portuguesa, seria Soersha (ou algo parecido).

Uma mulher inglesa enquanto grávida lia um livro com personagem chamada Saoirse, gostou desse nome e deu-o à filha. Essa filha, que não é irlandesa,  descobriu já adulta que sempre pronunciou o próprio nome errado. Essa descoberta se deu justamente em uma dessas entrevistas em que Saoirse Ronan explicava à sua audiência como era a correta pronúncia de seu nome. A mulher inglesa disse sempre ter sido chamada de “Say-or-cee”, sem que ninguém em seu entorno apresentasse outras possibilidades de pronúncia.

ZEMECKIS, Robert. Náufrago. EUA: DreamWorks, 2000.

MAIA, Wolf. Salsa e Merengue. Brasil: Globo, 1996.

DAFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Tradução: COSTA NEVES, Flávio P. de F. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.