
Ricardo e Vânia
“Logo depois da primeira aplicação, num passeio de fim de semana, Ricardo explicou a Vagner qual era o seu plano com o silicone. Na feira de antiguidades do Bixiga, encontrou duas bonecas chinesas de porcelana à venda. ‘Elas não são lindas? Você não queria ser assim?’, perguntou. Mais tarde, começaria a dizer que queria imitar Rosana, que estourou em 1987 com ‘O amor e o poder’, música cujo refrão ‘Como uma deusaaaa, você me mantééém’ se ouve no rádio até hoje. Já Vagner tinha outro alvo estético, que nunca mudou: Rita Hayworth. A estrela de filmes como Gilda e Salomé tinha um rosto amplo, bochechas generosas. O que Vagner ou nenhum fã da época sabia é que a atriz americana tinha feito procedimentos para conseguir alcançar a fama. Rita fez eletrólise, tratamento que mata bulbos de pelos com corrente elétrica, para tirar os cabelos, que começavam muito perto dos olhos, e fazer uma sobrancelha mais feminina. O novo look não foi um sucesso de crítica. A mãe de Vagner, quando viu o novo rosto do filho, começou a gritar e chorar. ‘Eu fiz uma operação, isso é inchaço, vai sair’, ele mentia para a família. ‘Todo mundo passou a me olhar onde eu andava. E acho que no começo eu gostava.’ Ricardo e Vagner gostavam das modificações, por mais que hoje Vânia acredite que elas tenham sido parte do seu declínio profissional. ‘O Ricardo deu na merda por falta de amor e também pelo silicone. As portas se fecharam para nós depois que nossos rostos ficaram daquele jeito. Imagina procurar emprego com aquela cara?’”
FELITTI, Chico. Ricardo e Vânia.
Chico Felitti está com a corda toda, especialmente depois do sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada, que desnudou a história de Margarida Bonetti, moradora de uma casa enorme e em péssimo estado de conservação no bairro de Higienópolis em São Paulo. Comentei sobre esse podcast no texto sobre Esperando, Godot de Samuel Beckett. Recomendo fortemente se você ainda não ouviu. Sensacional.
Margarida Bonetti não tem nada a ver com Ricardo ou com Vânia. Mencionei esse podcast por dois motivos. Primeiro para informar que o autor está na crista da onda por sua produção em outra mídia e, segundo, porque vou usar como gancho para começar esse conversa uma fala do Chicco Felitti em sua participação no Podcast Café da Manhã, episódio do dia 26 de julho de 2022, quando ele compara a recepção da matéria Fofão da Augusta: “Quem me chama assim, não me conhece”, que viralizou no BuzzFeed, e a igualmente viral recepção de A Mulher da Casa Abandonada. A fala do Chico foi mais ou menos assim: tanto o texto sobre o Ricardo no BuzzFeed quanto A Mulher da casa Abandonada geraram ondas de reação nos espectadores, a diferença entre essas ondas é que uma foi de amor, acolhimento e a outra de ódio e indignação.
Essa é a segunda vez que dedico meu tempo a escrever sobre um livro de Chico Felitti e posso dizer que isso deve acontecer de novo. Essas biografias são muito bem escritas. Nada sobra no texto. O primeiro foi Elke, Mulher Maravilha sobre a vida daquela mulher maravilhosa, que já era uma ídola minha antes mesmo da leitura da biografia.
Chico, se você ler um dia isso aqui, bora ser amigos?
E Ricardo? Por que uma matéria sobre ele gerou uma onda de amor?

Ricardo
Chico descobriu Ricardo andando pela rua Augusta. Notou que aquela pessoa provocava reações em quem passava perto dele. Por vezes o comportamento dele era agressivo, proferia xingamentos e, principalmente, por sua aparência peculiar. Aí esse senhor jornalista curioso, ficou intrigado e foi cavando até entender melhor a origem daquele homem que vagueava há anos pela rua Augusta.

Fofão, personagem infantil
Ricardo era conhecido como Fofão da Augusta. Augusta é a famosa rua boêmia de São Paulo e Fofão alude ao personagem Fofão dos programas infantis dos anos 80. Chico então foi escarafunchando as informações sobre aquele homem e descobriu que ele se chamava Ricardo e que já foi maquiador e cabeleireiro de estrelas brasileiras como Tônia Carreiro e Ana Maria Braga, e, que por circunstâncias do destino e das escolhas que fez, acabou na miséria e com o rosto deformado pela aplicação de silicone industrial. Isso virou um post no facebook, viralizou e Chico Felitti passou a receber mensagens de leitores sobre o Fofão, gente dizendo que o viu, que tirou fotos com ele, que ele estava fazendo sei lá o que sei lá onde.
Um belo dia… Chico recebe uma mensagem de uma enfermeira dizendo que o Fofão estava internado na ala de pacientes sem identificação de um hospital em São Paulo.
Chico e sua mãe prontamente se dispuseram a visitar o ilustre paciente com os intuitos de conhecer melhor aquele homem e ajuda-lo no possível, a começar por reconhecê-lo, tornando-o uma pessoa com nome e não um indigente.
Esse morador de rua de aparência estranha ganhava a vida como entregador de panfletos/artista de rua, sempre maquiado. O rosto enorme e disforme de Ricardo se deve a aplicações de silicone industrial. Não foi só ele. Essa coisa do silicone também foi aplicada no ex-namorado Vagner.
Nos anos 80 e 90, o casal foi sucesso como cabeleireiros e maquiadores, ganharam muito dinheiro, gastaram muito dinheiro, consumiram muitas drogas e tiveram uma história de amor com uma fase de felicidade e depois um tanto abusiva. Esse romance acabou com um deles fugindo de casa. Vai vendo…
E Vânia? Cadê Vânia nessa história?
Depois de se separar de Ricardo e se mudar para a Europa para morar com o irmão, Vagner se entendeu como uma mulher trans e adotou para si o nome de Vânia. Ela hoje trabalha na França. E tem uma história tão impressionante quanto à de Ricardo. Vânia foi por anos garota de programa. Até o momento em que o livro estava sendo fechado, Vânia, já com certa idade, se preparava para retomar a profissão de cabeleireira.
Vidas complicadas, interessantes, cercadas de preconceito, dor, sofrimento e felicidade também. No caso de Vânia, pode-se dizer até superação. Se você conseguir terminar esse livro sem querer dar um abraço forte em cada um, você é uma coração de pedra.
Ricardo faleceu enquanto Chico preparava o livro para publicação. Teve assistência do jornalista e de sua mãe desde o dia em que foram visitá-lo no hospital até o fim de seus dias.

Ricardo e Vânia em 1981
O livro é dividido em duas partes: a busca (praticamente garimpo) de Chico Felitti pela história de Ricardo e a vida de Vânia contada por ela mesma. E que histórias! O legal das biografias é ver que existem possibilidades de vida muito diversas das nossas, vidas extraordinárias e, às vezes, anônimas.
A coisa do silicone é tão impressionante. Talvez essa obsessão pelo rosto perfeito e tudo que os dois fizeram perseguindo esse ideal, possa ser comparado a um vício em substâncias químicas. Ou ao comportamento de pessoas com distúrbios alimentares.
Acho que distúrbios alimentares estão mais próximos por envolver a questão da aparência física e a incapacidade de a pessoa ter uma percepção realista sobre si mesma.
O fato é que principalmente Ricardo era compulsivo com as aplicações. No livro, há menção de que ele queria se parecer com bonecas chinesas de porcelana e com a cantora Rosana. E Vânia mirava a aparência de Rita Hayworth.

Vânia em 1999
Consigo entender como se inicia uma mudança física assim. Ainda não conheci ninguém plenamente satisfeito com os atributos físicos que tem.
Que história triste, meu Deus do céu! Pessoas talentosíssimas, criativas, bonitas (pois eles eram lindos antes das intervenções) e, no caso de Ricardo, um fim de vida doente, sendo tratado como uma criatura exótica, desprovida de humanidade, solitário nas ruas da capital do estado de São Paulo. Importa dizer que Ricardo sofria com distúrbios mentais que pioravam a condição dele e foram responsáveis, em parte, de sua derrocada. Há também uma possibilidade de que essas questões psicológicas tenham sido agravadas por uma surra que ele teria tomado nas ruas de São Paulo. Uma radiografia da face comprovou que havia muitos ossos fraturados, corroborando o relato do espancamento.
O Brasil é bem conhecido pela quantidade de cirurgias plásticas feitas por aqui todos os anos. Inúmeros cirurgiões brasileiros gozam de boa fama profissional. Por outro, sempre houve o charlatanismo no mercado estético. Os noticiários estão apinhados de aplicadores de silicone presos por exercer atividade irregular, muitas vezes com resultados nefastos.
É possível encontrar na internet explicações baseadas em ciência sobre os perigos o uso de silicone líquido. Uma vez injetada no organismo essa substância incha, se instala, se torna sólida e pode com o tempo mudar de lugar. Ainda no livro, Chico Felitti entrevistou um cirurgião plástico que se especializou na retirada de silicone industrial. A Própria Vânia já se submeteu a cirurgias para retirada de silicone do rosto.
De acordo com o médico essas cirurgias têm sido menos frequentes, tanto porque outros cirurgiões se interessaram pela tarefa quanto pelo silicone ter se tornado menos popular com o surgimento de opções menos arriscadas.
Por décadas somos bombardeados por material que “ensina” como fazer a barriga secar e virar um tanquinho, que lança moda sobre sobrancelhas, lábios carnudos, que divulga que Fulana de Tal fez o nariz e ficou ótimo e que Beltrana emagreceu trocentos quilos em três dias para alguma foto ou evento.
Isso é devastador. Pode acabar com a autoestima das pessoas. Ricardo e Vânia, conta a história de duas pessoas que tiravam seu sustento do trabalho de maquiadores e cabeleireiros. Eram cercados de padrões de beleza por todos os lados.
Mulheres e homens no mundo inteiro têm feito opções de intervenção estética duvidosas. Como se ficassem viciados ou dependentes de cirurgias e preenchimentos para se sentirem bonitos. Vai ficando cada vez mais opressivo envelhecer. Muitas vezes o up no visual pode ser uma maneira de tentar reerguer outro aspecto da vida que não vai lá muito bem. Uma injeção de ânimo. Mudo aqui para ganhar confiança e mudar ali.
Um desses exemplos é a genial Donatella Versace, que foi mudando bastante fisicamente, desde o assassinato do irmão e sócio, Gianni, que era o espírito criativo da marca. Ela de repente se viu com a tarefa de assumir a criação de coleções para manter a marca em alta e se deparou com o que? Críticos ferozes. As primeiras coleções conduzidas por ela foram implacavelmente massacradas. Talvez nem fossem ruins. Provavelmente os críticos queriam o estilo de Gianni e receberam outro olhar, afinal de contas Donatella não era Gianni.
Essa mulher de repente se viu deprimida e com a autoestima tão abalada que começou a mudar o rosto. Talvez fosse uma necessidade de mudar, de se tornar outra pessoa ou de tentar surpreender seus críticos aparecendo mais bela? Vai saber? O fato é que a pressão da crítica especializada, a ameaça a perder o patrimônio da família que seria herdado pela filha dela, levaram ao excesso de intervenções faciais. Não sei em que ponto, porque não fiquei procurando tanto assim, mas outra fuga apareceu: o vício em cocaína. Quem cuidou da rehab da Donatella foi seu amigo Elton John, que já tinha passado por problemas semelhantes. Nesse caso não é possível desfazer as plásticas e preenchimentos. A parte boa é que Donatella se firmou como uma das estilistas mais bem pagas e respeitadas do mundo e continua dirigindo a marca Versace e passando muito bem. Obrigada!
Quis falar de Donatella Versace, para mostrar que esse tipo de questão não é exclusivo de pessoas que só têm acesso a procedimentos estéticos clandestinos e que o excesso pode dar bem errado mesmo quando realizado pelos mais caros e conceituados profissionais. Duvido que ela tenha sido operada por açougueiros.
Um outro aspecto dos desejos de mudança física de Ricardo e Vânia é que eles tinham objetivos. Querer parecer com Rita Hayworth, vamos combinar que é bem compreensível. Com Rosana, que estava em alta e, antes de ela mesma se transformar, tinha um rosto bem marcante, bonito. Agora, parecer com bonecas chinesas de porcelana? Oi?
Isso é outra tendência entre pessoas insatisfeitas com sua aparência e que idolatram pessoas famosas, personagens ou bonecos a ponto de querer se transformar neles. Nem vou falar dos célebres Kens e Barbies. Aliás nem vou mostrar nenhum desses. Vamos ficar apenas com uma moça iraniana bem interessante que enganou uma pá de gente convencendo o mundo de que tinha feito cinquenta cirurgias para se parecer com Angelina Jolie. Sahar Tabar ficou conhecida como Angelina Jolie Zumbi, por causa do boato sobre as cirurgias e pelas fotos que ela postou no Instagram.
Ela até fez algumas cirurgias plásticas, mas não cinquenta e também não queria virar a Angelina Jolie. As imagens postadas eram muitíssimo editadas e uma boa parte da aparência se devia à maquiagem. Na maioria das fotos fica claro que tem um trabalho pesado de maquiagem.
A brincadeira quase custou caro a Sahar Tabar que chegou a ser condenada pelo governo iraniano a dez anos de prisão por obscenidade e insulto ao hijab. Posteriormente, ela foi liberada da pena.
Essa moça provocou muita discussão sobre a obsessão com a aparência física e os distúrbios de imagem. Com uma rápida olhada na internet percebe-se que até hoje muita gente acredita na conversa das cinquenta cirurgias dela.
FELITTI, Chico. Ricardo e Vânia: O maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor. São Paulo: Todavia, 2019.
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