THOMPSON, Craig. Retalhos . p 549.

Retalhos

Fantástico! Devia ser leitura obrigatória nas escolas de ensino médio.

Craig Thompson criou essa HQ autobiográfica chamada Retalhos que trata de autodescoberta, religiosidade, educação dos filhos, convivência e amor em família, adolescência, iniciação sexual e outros tantos subtemas.

É um calhamacinho de quase seiscentas páginas que por serem no formato HQ são de leitura rápida. Demorei dois dias só.

Ganhei esse livro de um amigo que sempre indica coisas legais. Valeu Kad!

Eu queria ter lido antes. Queria ter lido com quinze anos. Vou dar para minha filha ler quando chegar nessa idade. Talvez para ela não tenha o mesmo significado que teria para mim, mas é certo que ela aprenderá alguma coisa.

Digo que não terá o mesmo significado, porque eu fui criada em uma família bem mais religiosa do que eu própria sou. Inclusive estudei em escola católica, a mais conservadora da cidade, e isso teve consequências boas e ruins. Aprendi os conteúdos programáticos muito bem aprendidos e de quebra ganhei um reforço na “culpa cristã” que custou para se desfazer.

O personagem principal é o próprio Craig. Ele vive numa casa na zona rural com a mãe, o pai e o irmão mais novo. Os pais são muito religiosos, especialmente a mãe. Eles são cristãos protestantes.

Em termos de técnicas para disciplinar os filhos, o pai é daqueles que dão broncas que passam da conta, que metem medo.

E tem um personagem que aparece pouco, mas choca bastante. É um baby sitter, um rapaz que tomava conta de Craig e do irmão quando novos e era muito estranho. Vai da leitura de entrelinhas que cada um fizer. Não falarei mais desse rapaz.

Craig era um artista nato imerso no bulling da escola, na vizinhança ultra conservadora, extremamente religiosa, na obrigatoriedade de ir ao acampamento cristão todo ano e na dificuldade em pertencer. Teve uma infância isolada e traumática.

O leitor vai acompanhar a evolução do menino à medida que ele passa a raciocinar sobre os preceitos que lhe foram inculcados pelos cuidadores (todos eles). Não se trata de invalidar, mas questionar.  Vai evoluindo criando sua própria relação com a espiritualidade e distinção entre certo e errado. Ele acolhe o que faz sentido e ressignifica o resto.

É lindo ver ele se permitir ter experiências, se libertar de preconceitos, do medo de decepcionar aos pais e a Deus.

Entendo que o poder dessa HQ em termos de libertação e compreensão da vida adolescente seja parecido com o da série Sex Education, da Netflix.

A série, inicialmente, é sobre o adolescente Otis, que é filho de uma sexóloga. Ele também é cheio de traumas e amarras, pelo motivo contrário ao de Craig: naturalidade excessiva da mãe ao tratar de assuntos íntimos.

Diante de uma situação inusitada, Otis Milburn (Asa Butterfield) se inteira sem querer dos problemas sexuais de um colega da escola onde estuda. Para se livrar de uma possível encrenca ele usa as técnicas que aprendeu de tanto ouvir a mãe falar com ele, com pacientes e sobre seus livros e estudos. Uma outra aluna, Maeve (Emma Mackey), presencia tudo e  impressionada com a habilidade, convence Otis a ser seu sócio em um “consultório” que funcionará no banheiro abandonado da escola atendendo aos colegas com problemas sexuais. À medida que a série avança esse consultório muda e a influência de Otis também.

Em Sex Education o assunto é o início da vida amorosa/sexual de todos os alunos de uma escola de ensino médio (High School). Outros dramas adolescentes são tratados como subtemas. É engraçado demais, tem hora que dá vontade de chorar, vai te deixar pensando. Para mim é uma das melhores séries já produzidas. Devo informar que ainda não terminou. Pelo menos mais uma temporada vem aí.

Os dramas dos adolescentes e do amadurecimento humano aproximam Retalhos e Sex Education. Uma diferença entre as obras é a questão da culpa cristã. Não me lembro de um personagem tão atormentado por questões religiosas em Sex Education.

O personagem que mais se aproxima dos dramas e da vivência de Craig é Adam Groff (Connor Swindells): o filho do diretor da escola. O pai de Adam é muito rígido e moralista. Impõe ao filho único suas regras, preconceitos e objetivos. É um homem amargo que, apesar das boas intenções paternais, acaba deixando o filho confuso e amedrontado. Assim como Craig, Adam vai ressignificar os aprendizados. Aliás, não só Adam, mas também seus pais.

Eu amo o personagem Adam. É dos meus favoritos da série. Também amo Otis, Maeve, Eric ( Ncuti Gatwa) e a mãe de Otis: a Dra. Jean Milburn (Gillian Andersen).

Sabe quem mais se sentia excluído? O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen (1853).

Craig, como comentado, mora na zona rural de uma cidade do interior. É uma comunidade que corresponde ao estereótipo do estadunidense country: que cultua armas e força bruta, tem caminhonetes enormes, briguento. Nesse contexto, Craig é um menino sonhador, da paz, desenhista. Fica bem claro que na sociedade em que Craig vive, desenhista é uma profissão inimaginável. Ou é coisa do capeta ou simplesmente não é para homens.

Hans Christian Andersen – Os 77 Melhores Contos

Eles riem do cabelo dele que vai até os ombros, riem das roupas, do físico mais magro.

Em um desses acampamentos cristãos, Craig vai conhecer Raina. Uma menina que assim como ele não se encaixa perfeitamente entre os colegas do acampamento. Ela não é exatamente como ele e nem vem da mesma cidade. Raina mora na cidade grande.

Hans Christian Andersen

Um dia ele consegue da mãe a autorização para passar uns dias na casa de Raina e essa viagem vai ser definitiva para a mudança de perspectiva de Craig sobre o mundo, famílias, tribos urbanas.

Uma das coisas que ele percebe logo de cara é que os amigos de Raina se parecem mais com ele . As pessoas que se vestem com roupas largas e tem o corte de cabelo do estilo do dele são rotuladas de grunges na cidade grande. Ele descobre que não é um perdido no universo.

Isso dá a ele outras perspectivas. A dimensão de que a cidade dele é apenas um ponto no infinito. O mundo pode oferecer muito mais.

Percebe como parece o patinho feio se descobrindo cisne? Por mais que se esforçasse o pequeno cisne não era um bom pato. Uma vez que sai do cercadinho e encontra por acaso outros animais mais parecidos com ele, se sente finalmente em casa. Floresce.  Craig é o patinho feio de Retalhos.

Não deve ser fácil ser um cisne entre patos ou um grunge entre os countries nem um country entre os grunges. E não há nada de errado em procurar os seus. O mundo é grande o suficiente para caber todos os desejos e concepções de vida.

Uma música para acompanhar a leitura: Não vou me adaptar, dos Titãs.

THOMPSON, Craig. Retalhos. Tradução: ASSIS, Érico. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2009.

JENNINGS, Jon. Sex Education. Reino Unido: Netflix, 2019 – atual.

SANDRONI, Luciana (Org.). Os 77 melhores contos de Hans Christian Andersen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.