“Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João ir comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou um pedaço.
Eu chinguei o chico de ordinário, cachorro, eu queria ser um raio para cortar-lhe em mil pedaços. O pão não deu e os meninos não levaram lanche.
…De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. Ele deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera. A Dona Alice veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! o dinheiro! Que faz a morte, que faz ódio criar raiz”
JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. p.49.
Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, é um clássico brasileiro, de não ficção.
Esse livro é exatamente o que traz no subtítulo: o diário de uma mulher que mora em uma favela de São Paulo na década de 1950. As páginas foram escritas de julho de 1955 até 1º de janeiro de 1960.
Indispensável. Fundamental que leiamos conscientes de que é não ficção. Não tem romanceamento, não tem palavras belamente usadas para florear a realidade ou tornar a história palatável. Aliás, como extrair histórias leves de uma população que vive em péssimas condições de saneamento, segurança alimentar, segurança pública e ensino, entre outros fatores?
De certa forma, Carolina, quando encontramos em seu cotidiano a vontade de ser escritora, o prazer da leitura e a esperança de que esses hábitos a ajudem a sair da favela, é talvez o que confere a beleza que tornou possível para ela a persistência. É uma mulher que tendo nascido e vivido em uma realidade dura se deixou tocar pela arte e pela vontade de conhecer as coisas. Carolina sabia coisas que muitos de seus vizinhos não sabiam, por exemplo ela fala de valsas vienenses, e, mais básico ainda, ela sabia ler e escrever.

Quarto de Despejo
Quarto de Despejo reconstituiu uma situação de violência cotidiana e normalizada contra mulheres na favela. Inclusive essa é uma das justificativas dela para não querer se casar. Além do medo da violência doméstica, o conhecimento e a capacidade de leitura do ambiente criaram na autora o apreço pela liberdade. Ela tinha clara a noção de que, naquele contexto, um marido atrapalharia mais do que ajudaria seus planos e estilo de vida. Basicamente, todas as vizinhas casadas apanhavam e eram obrigadas a viver para atender aos maridos, muitas vezes alcoolistas.
Ela tinha dois filhos. Trabalhava como catadora de papel descartado para venda. O dinheiro que ganhava era a conta para comer naquele dia. Há momentos em que outros catadores de papel fizeram “concorrência” reduzindo ainda mais a parca renda de seu barraco.
As finanças são o que ocupa mais as preocupações de Carolina. Há registros precisos de quando a féria do dia era boa, suficiente ou pouca. Também saberemos sobre sua relação com o pai biológico da filha; os cheiros da favela; a lata d’água na cabeça para abastecer sua família; a convivência conflituosa com os vizinhos; a preguiça da fofoca e da especulação; o gosto por passar um tempo sozinha. Até que ela é descoberta por um jornalista que a ajuda a publicar seu livro.
É lindo e triste ler sobre a época em que ela acompanhou o processo de editoração de Quarto de Despejo. O deslumbre com o escritório no Prédio Assis Chateaubriand, a cortesia com que foi tratada nesse ambiente e as expectativas com a venda do livro.
Uma outra tristeza, que aparece em uma espécie de epílogo que fala da vida da escritora, é que “Quarto de Despejo” deu a ela uma casa de alvenaria, mas não a tirou da pobreza. Seus outros livros não tiveram o mesmo impacto no mercado editorial. Não há detalhes do que Carolina fez em nome da sobrevivência, se voltou a catar papéis, por exemplo.
A editora Companhia das Letras está publicando atualmente os demais livros escritos por Carolina. Talvez seja possível dizer que a autora está sendo redescoberta e esteja em alta póstuma, como acontece com diversos artistas que morrem na miséria para se tornarem hits quando já não desfrutarão dos lucros obtidos com suas obras. Se servir para algum descendente dela, já será alguma coisa. Carolina Maria de Jesus, morreu em 1977, portanto, conforme as leis brasileiras, a obra só estará em domínio público em 2047.
Quarto de Despejo, combinado a outras leituras, ajuda a traçar uma linha do tempo. Como chegamos até aqui como país, em termos de desigualdade social e preconceito racial?
Obviamente, as origens estão no nosso horrendo passado escravocrata, baseado majoritariamente na escravização de pessoas negras africanas ou descendentes dos traficados da África. Mas como se deu isso? É possível indicar obras literárias que auxiliem a visualização dessa tragédia social?
Acredito que sim. Portanto, indicaremos livros que enfiaram os dedos nas feiras e giraram. Essenciais para o entendimento, visto que uma das principais vantagens, se não a principal, das boas histórias é nos transportar para o lugar de existência daqueles personagens.
Antes de passar à linha, a Folha de São Paulo publicou no dia 4 de maio deste ano uma lista com 200 obras, indicadas por intelectuais da língua portuguesa, para entender o Brasil. Advinha quem estava no primeiro lugar isolado com 29 indicações? Sim, Quarto de Despejo. Todas as obras que serão citadas aqui figuram nessa lista. Dois no top 10.
Iniciando, falemos de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Ele está na lista da Folha empatado no 7º lugar com Macunaíma (Mário de Andrade) e Vidas Secas (Graciliano Ramos).
Primeiro o enredo e alguns dados sobre o livro, depois considerações pessoais sobre ele.

Um Defeito de Cor
É uma história ficcional construída sobre uma personagem real chamada Luísa Mahin ou Kehinde. Na trama, Luísa foi o nome católico adotado por ela quando veio traficada da região africana que hoje corresponde ao Benin. Ao aportar no Brasil os africanos eram batizados e tinham seus nomes pagãos substituídos antes de serem vendidos a senhores de escravos.
Essa obra tem quase mil páginas e é um romance de formação. Vai contar desde a infância de Kehinde na África até sua morte, passando pelo período em que foi escrava na Bahia, depois liberta, mulher de negócios, envolvida na revolta dos malês como liderança. Teve dois filhos em solo brasileiro.
Luísa Mahin, a personagem real, é a mãe de Luís Gama, poeta, advogado abolicionista importantérrimo, que nasceu livre e foi vendido pelo pai quando criança.

Luís Gama
Sobre Luísa Mahin, não há muito registro de sua passagem pelo Brasil, mas Luís Gama é muito conhecido, inclusive a história de sua venda como escravo e as menções mais importantes sobre sua mãe vêm de cartas escritas por ele próprio, amplamente conhecidas por historiadores e literatos.
Um Defeito de Cor não menciona que Luís é Luís Gama, sacou? No livro, Luís é uma criança afrodescendente como qualquer outra. Tem umas pistas, mas não está explícito.
Pronto. Chega de enredo.
Minhas considerações: é importante para entender o Brasil? Super. Também é importante para entender a África e ainda os escravizados brasileiros que retornaram libertos para a África e sua relação com os que nunca saíram de lá.
A autora fez uma exaustiva e extensa pesquisa sobre rituais, festas, costumes, rebeliões, nomes, tipos de escravo (doméstico, lavoura, mineração, ganho), geografia da cidade de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e de algumas regiões africanas, economia, estratificação social… ufa!
Em entrevista, Ana Maria Gonçalvez disse que a história de Kehinde é uma costura de situações vividas por várias mulheres escravizadas e libertas, que em sua pesquisa ela foi encontrando. Lógica semelhante à usada por Margaret Atwood em O Conto da Aia.

Luisa Mahin
Como literatura, não consigo simplesmente dizer se gostei ou não gostei. Gostei muito do conteúdo que serve de pano de fundo. A reconstituição do que seria a vida escrava, a vida de africana liberta ou a condição de retornada à África no século XIX. Isso foi muito bem descrito. E para mim essa reconstituição histórica, que é o ponto mais forte do livro, é, por outro lado, o mais fraco como literatura de ficção. Na última parte, há um excesso de descrição de bastidores sem ligação bem amarrada com a vida da personagem e aí o livro ficou cansativo e me perdeu. O que tinha sido uma leitura legal até meados da página 700 se tornou uma leitura arrastada.
Quem já leu 700 páginas de 900, vai ler o resto. Valeu a pena ler? Sim. Leria de novo? Inteiro não, mas talvez consulte alguma parte como referência. Entendo a autora ter se apegado às pesquisas que, obviamente, deram imenso trabalho a ela, mas em termos de construção literária, sobrou informação e faltou ficção nas últimas 200 páginas. O tamanho ideal talvez fosse umas 750 páginas. E isso porque a Ana Maria Gonçalves já disse que a versão inicial tinha 1400 páginas, ou seja, já teve corte aí.
Abolida a escravidão no dia 13 de maio de 1888, aquela massa de pessoas foi para o dia seguinte com uma mão na frente e outra atrás.
Além do nada que ocupava seus bolsos, essa população que serviu, contra sua vontade, aos senhores brancos por séculos, ainda foi preterida na hora de disputar empregos remunerados com outros brancos “importados”, como se não houvesse mão de obra disponível no Brasil.
Nesse ponto, volto a um livro sensacional que já foi tratado nesse blog: Torto Arado, de Itamar Vieira Jr. Esse ficou empatado com outros 16 títulos em 33º lugar na lista da Folha. Entre os 16 está Casa de Alvenaria, também de Carolina Maria de Jesus.
Torto Arado, deItamar Vieira Jr., acompanha a história de uma família que vive em condições análogas à escravidão na zona rural, na região da Chapada Diamantina (MG/BA). Torto Arado venceu o prêmio Jabuti de 2020 e o Leya de 2019.
Uma família começa a procurar lugar para ficar imediatamente após a libertação dos escravizados em 1988 e, por falta de condições e opções, acaba aceitando ficar na fazenda em que eram escravos, trabalhando em troca de moradia e de um roçado, sem a permissão de construir casa de alvenaria, porque o dono da fazenda tinha medo de que se eles construíssem casas definitivas, posteriormente, o governo entendesse que era deles a posse daquele pedaço de terra. É triste de cortar o coração. É lindo. Não digo que é perfeito porque nada é perfeito, mas que não achei defeito, não achei. Ele basicamente vai contar por meio da história emocionante das irmãs Belonísia e Bibiana, em literatura de altíssima qualidade, como se formaram várias das comunidades quilombolas que hoje lutam por reconhecimento de seus territórios e de seus costumes como povos tradicionais. A trama vai desde o day after do 13 de maio de 1888 até dias mais atuais. Tudo em uma perspectiva da população do campo.
Então, aqui encaixaremos Quarto de Despejo, que trata da realidade dos descendentes de escravizados no contexto urbano do século XX, e o ultrapassaremos com o brutal, sensacional, sufocante: Olhos D’àgua, de Conceição Evaristo.
Olhos D’água ficou na lista da Folha em 25º lugar, empatado com outros 8 livros, sendo alguns sobre temáticas correlatas, ainda que em estilos diferentes, são eles: O Abolicionismo (Joaquim Nabuco), A Integração do Negro na Sociedade de Classes (Florestan Fernandes), Por um Feminismo Afro-Latino-Americano (Lélia Gonzalez; Flavia Rios e Márcia Lima), Rebelião escrava no Brasil: História da Revolta dos Malês (João José Reis); Sobrevivendo no Inferno (Racionais MC’s).

Olhos D’Água
Esse não é um romance. É um livro de pequenos contos. São pouco mais de 100 páginas, mas que tive que ler à prestação porque me tiraram o fôlego. Todos os contos são sobre personagens afrodescendentes, nem todos de classe baixa, a maioria deles brutais. O mais estarrecedor é que aquelas coisas podem estar acontecendo nesse momento em alguma cidade do Brasil porque são totalmente plausíveis. Como os contos são pequenos, não comentarei nenhum deles porque qualquer coisa pode ser spoiler. Vale muito a pena ler! Muito mesmo! Largue o que está fazendo e vá ler Olhos D’água. Você será uma pessoa melhor depois.
Claro que muitas outras obras podem e devem ser lidas para entendimento da realidade da população preta no Brasil. Infelizmente, tive que escolher apenas esses, primeiro porque no meu entendimento eles se complementam formando uma linha do tempo, segundo por serem escritos por autores negros, terceiro por uma questão de limitação de espaço. Isto não se trata de um estudo de literatura comparada ou de qualquer outro recorte acadêmico, é apenas uma sugestão de leituras que impactaram esta leitora de alguma forma.
Para encerrar com trilha sonora, cuja letra compõe o livro Sobrevivendo no Inferno (Racionais MC’s), que a folha também indicou, e que empatou com Olhos D`Água: ouça Periferia é Periferia, e depois o resto do disco todo.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Ática, 2014.
VIEIRA JR., Itamar. Torto Arado. Rio de Janeiro: Todavia, 2019.
EVARISTO, Conceição. Olhos D`Água. Rio de Janeiro: Palas, 2021.
GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro: REcord, 2020.
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