
Pessoas Normais
“Em abril, Connell lhe disse que levaria Rachel Moran ao baile. Marianne estava sentada de lado na cama dele naquele momento, agindo com muita frieza e comicidade, o que o deixou sem jeito. Disse que não era “romântico”, e que ele e Rachel eram só amigos. (…)
Eu sei que você está puta comigo.
Não me importo, ela disse. Só acho que se você quer ficar com ela, você devia me contar.
É, e eu vou contar, se um dia quiser. Você está dizendo que essa é a questão, mas eu sinceramente não acho que seja.
Marianne estourou: Então é o quê? Ele apenas a encarou. Ela voltou a fitar as unhas, enrubescida. Ele não disse nada. Passado um tempo ela riu, pois não era totalmente desprovida de humor, e era óbvio que era meio engraçada a selvageria com que a humilhara, e sua inabilidade de se desculpar ou sequer admitir o que tinha feito. Ela foi para casa e direto para a cama, onde dormiu direto durante treze horas.
Na manhã seguinte ela abandonou a escola. Não seria possível voltar independente de como examinasse a situação. (…)”
ROONEY, Sally. Pessoas Normais. P.66.
Sally Rooney é das autoras mais lidas da atualidade. Esse é meu primeiro contato com essa escritora irlandesa que fez uma coisa que eu adoro nesse livro: acompanhar pessoas desimportantes em suas vidas desimportantes, que quando olhadas de perto têm várias nuances e problemas. Chorei um balde. Marianne, estou aí para o que você precisar!
Meu primeiro contato com essa obra não foi pelo livro, mas pela adaptação na série Normal People disponível na Starzplay. Para mim essa série beira a perfeição. Voltamos a ela daqui a pouco.
Marianne e Connell vivem em uma cidade pequena no interior da Irlanda. Ela vem de família rica, a mais rica da cidade, e ele vem de família pobre, filho de mãe solo, que trabalha como faxineira para a família de Marianne.
A história começa quando eles estão no último ano do ensino médio. Marianne é a esquisita da escola. Ela e Connell são os melhores alunos em notas da turma deles. Marianne é uma menina de aparência desleixada, que sai pouco de casa, não tem amigos, parece aérea e rebelde. Essa rebeldia está em se comportar como se ninguém importasse, como se ela simplesmente não ligasse para o que ninguém pensa. As respostas dela a professores são sempre inteligentes e cortantes. Os colegas riem das roupas, da indiferença, do comportamento dela. Connell não ri de Marianne, mas também não é amigo dela nem a defende ou coisa parecida, simplesmente não interagem.
Ele é pobre em comparação aos colegas de classe. Mas não há nele, pelo menos à primeira vista, um comportamento de submissão e de se achar inferior. Ele, além de ótimo aluno, é a estrela do time de futebol, mister popularidade.
Um dia, quando ele vai buscar a mãe na casa de Marianne, em um momento de privacidade, eles começam a conversar e vai aparecendo uma admiração mútua. Não surgida ali naquele instante, mas como se eles viessem já a algum tempo se observando. Ali surge um romance entre os dois.
Lindo, né? Quase. É a partir daí que vamos percebendo que o Connell não é tão seguro de si e que Marianne apesar de autêntica tem também suas questões. Ele não quer ser visto com a esquisita da escola e pede a ela que não conte a ninguém que eles estão se pegando. E ela, em um ato de submissão que não combina com a rebeldia aparente, topa.
As idas e vindas desse romance entre os dois é o que vai partir seu coração e te fazer pensar sobre suas próprias fraquezas e recalques. A construção psicológica deles é sensacional. A trama vai acompanhar o casal até depois da formatura da universidade, o que dá mais ou menos cinco anos de convivência. Importa informar, a título de sinopse sem spoilers, que quando os dois vão para a universidade os papeis se invertem: ela é a descolada, bem integrada e popular e ele vira o esquisito.
É uma história de apoio mútuo, de saber que tem alguém para quem se pode voltar quando a coisa aperta, é sobre desencontros por uma comunicação absolutamente falha ao mesmo tempo em que a intimidade entre eles é muito grande. Connell e Marianne poderiam ter economizado caixas e caixas de lenços de papel e muito sofrimento se conseguissem ser claros um com o outro. Só faltou uma conversa.
Nem sei para quantos momentos da minha própria vida posso aplicar essa frase: só faltou uma conversa. É inerente do ser humano embarcar em joguinhos com amores ou amigos, dizer A querendo dizer B, ou assumir que o não verbalizado ficou subtendido e tempos depois descobrir que poderia ter-se poupado muito aborrecimento colocando as coisas em pratos limpos.

João de Régis
Um filho de sobreviventes da Guerra de Canudos (1896-1897) conhecido como João de Regis (João Reginaldo de Matos – 1907-2002) disse a pesquisadores uma certa vez que a guerra só aconteceu porque faltou uma conversa. Na concepção dele, formulada com base nas memórias de seus pais, os conselheiristas não queriam restaurar a monarquia e as tropas do governo não precisavam vê-los como inimigos. Faltou sentarem as partes e entrarem em um acordo, o que segundo João de Regis, pouparia cerca de 25 mil vidas.
Não sou uma estudiosa da Guerra de Canudos. De fato o conflito era desnecessário, mas acredito que o governo republicano, ainda filhote, não escutaria nenhum argumento de parte nenhuma.
Fico pensando em uma das histórias de amor mais famosas, se não a mais famosa do mundo ocidental: Romeu e Julieta, de William Shakespeare.
Ela uma Capuleto e ele um Montéquio. Famílias ricas e influentes da cidade de Verona. Capuletos e Montéquios são inimigos mortais, se odeiam. Os patriarcas dos clãs não se gostam, mas estão de boas, desencorajando as brigas entre os membros mais jovens e sem noção de ambas as partes. A coisa vai até indo bem, não fosse Romeu Montéquio, um romântico incorrigível, o príncipe Mercuccio, um farrista de primeira, e Teobaldo Capuleto, uma pessoa que tem bílis no cérebro, se encontrarem.
Uma festa de arromba na casa dos Capuleto, para a qual Mercuccio, filho do rei de Verona e amigo de Romeu, foi convidado. Mercuccio convence Romeu a entrar na festa de seus arquiinimigos de penetra porque a amada Rosalina estaria lá.
Aí duas coisas determinantes acontecem: Teobaldo Capuleto reconhece Romeu e fica indignado com a petulância do inimigo em vir para a festa em território Capuleto e, a segunda, Romeu bate o olho em Julieta Capuleto e como mágica esquece Rosalina e se apaixona perdidamente por ela sendo correspondido.
Daí pra frente é uma desgraceira só.
Em uma manhã, os dois se casam escondido com a conivência do padre e da ama. Deviam ter fugido, mas não… cada um voltou para sua casa. No mesmo dia, à tarde, em uma treta homérica, Romeu acaba matando Teobaldo e aí é banido de Verona. De noite, Romeu fura o banimento e volta escondido a Verona para a noite de núpcias. Tudo na surdina. Na manhã seguinte, o pai de Julieta querendo animá-la, achando que a filha está inconsolável por causa da morte do primo Teobaldo, marca o casamento dela com Páris, um partidão da cidade.
E aí amigos, é só ladeira abaixo. Para não se casar com Páris, tornando-se uma bígama, Julieta finge de morta e é sepultada. Romeu fica sabendo que sua amada “morreu” e sai desatinado com um pé de cabra para violar o túmulo e dizer adeus (Oi?). Romeu toma veneno e morre ao lado do suposto corpo sem vida de Julieta, ela acorda e vê que Romeu morreu e aí se mata também. Nessa confusão, ainda morrem Páris e Mercuccio.
Só depois disso tudo é que os Montéquios e Capuletos avaliam que é melhor fazer as pazes e parar a briga de décadas.
Olha o que uma boa conversa não faria de mudanças drásticas nessa história.
Para começar Rosalina podia ter dito claramente a Romeu que não estava interessada. Pronto. Aí já acabava tudo porque ele não iria de penetra na festa. Mas, tudo bem. Romeu era meio stalker e podia ter ignorado o não de Rosalina.
Nesse caso, ele podia ter tido a hombridade de pedir a mão de Julieta ao velho Capuletão, conforme costume da época. Se o senhor Capuleto negasse, aí sim se justificaria o casamento escondido.
Uma vez casados, mais oportunidades de agir como adultos e encarar o próprio BO foram dadas ao casalzinho apaixonado (até dá para dar um desconto para Julieta já que ela tinha apenas 14 anos). Já mencionei fugir, que não é o mais maduro, mas é melhor que fazer de conta que não se casaram. Quando o pai de Julieta anunciou o casamento com Páris, ela podia ter contado que casou. Tipo “Oh! Meu pai, sinto muito, mas contra sua vontade me casei ontem com Romeu Montéquio!”
É certo que o Senhor Capuleto ia ficar pistola, mas desse diálogo poderiam ter saído duas possibilidades: o pai Capuleto ia xingar, esbravejar e se resignar ou o ia insistir pela anulação do casamento.
Agora convenhamos que o Senhor Capuleto também podia ter perguntado à filha se ela gostaria de se casar com Páris, né?
Vejam quantas possibilidades de diálogo perdidas.
Apesar do tom debochado, Romeu e Julieta é uma das coisas mais lindas que já li. Aliás, Shakespeare não é um clichê por acaso.
Assim como em Romeu e Julieta e Pessoas Normais, tantas outras histórias de amor poderiam ter tomado outros rumos. Ainda bem que humanidade não amadurece e histórias extraordinárias sobre gente que precisa de terapia e diálogo vão sempre aparecer
Volto só um pouco para falar da série Normal People (Starzplay). O livro é muito bom, mas a série é um desses raros momentos em que o audiovisual supera o escrito. Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal ficaram perfeitos como Marianne e Connell, a fotografia é maravilhosa, os silêncios, os diálogos, tudo ficou excelente. Ainda por cima a série suavizou um pouco um período complicado da personagem Marianne, deixando lá o conteúdo, mas de um jeito mais bonito que o do livro. É uma das melhores séries que já vi. Sally Rooney também assina a adaptação do roteiro.
Normal People foi indicada a 34 prêmios, entre eles Emmys, Golden Globes, Irish Film and Television Awards. Venceu 11 das indicações.
ROONEY, Sally. Pessoas Normais. Tradução: LANDSBERG, Débora. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019.
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