Persépolis

Marjane Satrapi é uma autora, quadrinhista e cineasta iraniana radicada na França. Seu maior sucesso é sem dúvida Persépolis, HQ autobiográfica, em que Marjane conta sobre sua vida no Irã desde a infância (1980) passa pelo período em que foi para a Áustria para estudar durante a adolescência, o regresso ao Irã depois de ter vivido na Europa enquanto o país de origem passava pela revolução fundamentalista e pela guerra do Irã contra o Iraque, o retorno ao Irã seguido do choque sobre as atuais condições de seu país e a constatação de que precisava novamente se afastar de sua terra natal indo viver na França.

Por que o nome Persépolis? Persépolis é o nome da capital do antigo Império Persa. Marjane  deixa bem claro que o Irã, diferentemente do Iraque, não tem ascendência árabe, mas persa. Inclusive apenas 2% da população do Irã fala árabe, sendo o persa ou farsi a língua oficial.

A autora e personagem principal da HQ nasceu em 1969, tinha então dez anos na época em que o Xá Reza Pahlevi foi deposto e o Aiatolá Khomeini assumiu a República Islâmica. Os pais dela e outros tantos iranianos eram favoráveis à deposição do Xá. A queda do Xá era um objetivo comum, mas o que o sucederia ainda estava em aberto. Os pais da autora e seus correligionários esperavam que se instalasse uma república democrática. O que aconteceu foi o que ficou conhecido como a Revolução Iraniana ou Revolução Islâmica.

Se o Irã era um país livre e moderno, porque depor o Xá e mudar o regime de governo? Porque não era bem assim. O Xá era um monarca autoritário, que colecionava denúncias de violação aos direitos humanos. A disparidade entre as classes sociais iranianas na época era muito grande. As regras para a vestimenta das mulheres eram mais liberais, e elas tinham mais direitos em todos os setores da vida pública e privada, entretanto havia uma imposição da vestimenta ocidental. Hijabs (véus) eram arrancados à força das que ousassem usá-los. Para a maior parte das mulheres, as roupas à moda ocidental era bem-vindas, se sentiam à vontade, como é o caso das mulheres da família de Marjane. Entretanto isso não se aplicava a todas as iranianas e certamente era um ponto de discordância entre os homens mais religiosos. Esses grupos fundamentalistas não eram minoria, como ficou claro no pós revolução.

Marjane Satrapi

A negação de parte dos costumes muçulmanos, criou nos religiosos mais fervorosos o propósito de acabar sim com o reinado do Xá, mas para implementar um governo fundamentalista. Mudando o autoritarismo de lado.

Esse momento da história do Irã inspirou parte da ficção distópica de O Conto da Aia, da autora Margareth Atwood.

Mulheres Iranianas década de 1970

Usar calças jeans, maquiagem, mostrar os joelhos passaram a ser falta grave.

A menina que até os dez anos estudou em salas de aula mistas e laicas, convivendo igualmente com meninas e meninos, de repente se viu em uma escola só para meninas e obrigada a andar completamente coberta. A primeira parte de Persépolis é a narração de um período de profundas transformações culturais e políticas vistas pelos olhos de uma criança.

Uma das coisas mais legais da obra é como Marjane relata as brechas, os escapes que as famílias iranianas não alinhadas ao fundamentalismo encontravam para fazer o que gostavam. Continuar velhos hábitos, porém clandestinamente era uma forma de resistência. Essas escapulidas das leis do Aiatolá não eram nada absurdas aos olhos ocidentais. Estamos falando de convidar amigos para jogar cartas, tomar um vinho, ouvir determinadas músicas.

Fazer o que lhes dava prazer, também significava viver com medo de ser dedurado pelos vizinhos.

Enquanto Marji e sua família ainda se adaptavam às novas regras, eclodiu a guerra do Irã x Iraque se sobrepondo à já complicada realidade. Esse conflito durou oito anos (1980 a 1988).

Iranianas atualmente

Os pais que, segundo seus próprios princípios e valores, não queriam para a filha uma vida tão cheia de restrições, arrumaram para ela a possibilidade de continuar seus estudos colegiais em um liceu francês na Áustria.

E aí ela foi feliz, certo? Errado.

Ela era grata pela oportunidade e realmente se esforçou. Teve muita dificuldade em se adaptar. Era tratada com discriminação por ser iraniana num período em que o mundo estava de olho na guerra.

Teve um período extra complicado que não vou falar do que se tratou. Se foi tão duro de ler, nem imagino como foi para ela viver. Essa fase difícil foi o estopim para a volta para casa, para o Irã.

Aí se inicia um outro momento, que é a perspectiva de uma jovem inteligente que acaba de voltar de três anos na Áustria e pega o país ainda em guerra. É muito interessante a perspectiva de Marjane e dos pais sobre a lavagem cerebral feita, sobretudo, nos pais de filhos que não voltaram vivos do fronte. O leitor vai perceber a dificuldade daquela peixinha fora d`água se inserir em um Irã completamente diferente do que ela conhecia antes de partir. Era europeia demais para o Irã e iraniana demais para a Áustria.

Cara, a mulher é uma lutadora, os pais dela e a avó devem ser pessoas maravilhosas e essa HQ é muito tocante. Fundamental, eu diria. Ainda mais para quem, como eu, tem pouco contato com a cultura persa.

É uma oportunidade e tanto de se colocar em outra pele. Sendo brasileira, essa coisa de receber olhadas tortas vindas da turma do “primeiro mundo” não me é exatamente estranha, a oportunidade aqui esteve em enxergar por um ponto de vista ainda diferente do meu. Recomento demais.

Outro ponto forte são os personagens que moldam a perspectiva da menina sobre o mundo e seu país: os pais, a avó, o tio comunista. É graças à conversa deles que percebemos como os países ocidentais capitalistas interviram na região em que se insere o Irã, primeiro para manter o regime do Xá, depois para tentar barrar a revolução iraniana por meio do financiamento e do fornecimento de armas para o Iraque. O Irã foi financiado pela URSS, que também tinha interesses nada louváveis.

Quando criança, Marjane tinha o sonho de ser a última profeta do islamismo e ela batia altos papos com Deus, que, naquele contexto, era um amigo imaginário.

Ela contava para Deus suas preocupações, planos futuros e ouvia o reforço de que era sua escolhida. Em um momento, quando ela entra em contato com as teorias marxistas, o Deus que conversava com ela chega a debater com outro amigo imaginário que era Marx.

Jojo Rabbit

Lembrei-me do filme Jojo Rabbit, que é uma dramédia, uma sátira sobre a segunda guerra mundial e o regime nazista.

Jojo Betzler (Roman Griffin Davis) é um menino de dez anos, doce e inocente. Absolutamente mergulhado no imaginário nazista, Jojo é um mini fanático que acredita em todos os preceitos e preconceitos do partido.

Assim como muitas crianças, Jojo cria para si um amigo imaginário que faz por ele o que os amigos imaginários de Marjane fizeram por ela na HQ. Acontece que enquanto ela é amiga de Deus o amigo dele é Hitler, interpretado por Taika Waititi, que também é o diretor.

A mãe de Jojo, Rose (Scarlett Johansson), parece, à primeira vista, incentivar que o filho faça parte da juventude hitlerista. Aos poucos vamos entendendo que o pai de Jojo é um desertor, que o menino ele sofre bulling por isso e que a mãe é na verdade uma reblede, que incentiva o entusiasmo nazista do filho para que ele não vire alvo.

Um dia, Jojo percebe uma parede falsa em sua casa. Futicando na parede, descobre uma menina escondida, uma judia chamada Elsa (Thomasin McKenzie).

Nesse ponto, ele é encurralado por suas crenças fascistas, os conselhos do amigo imaginário, a descoberta de que aquela menina não é o monstro que se pinta e a de que a mãe é na verdade contrária ao nazismo assim como o pai.

Uma coisa que pesa para que ele decida conviver com a “inimiga” judia é que  denunciar a menina implica necessariamente em denunciar a mãe.

Elsa é uma personagem muito boa. Ela vai fazer Jojo confrontar e questionar suas certezas. A convivência transformará o menino.

Eu achei lindo e diferente. O filme conseguiu a proeza de tratar por outro viés um tema exaustivamente explorado.

Ainda sobre o amigo imaginário de Marjane, como já foi dito, aquela criança criativa e contestadora cria um debatedor para ele, Deus vai bater papo com Karl Marx.

Como não lembrar dos quadrinhos de Um Sábado Qualquer ?

Um Sábado Qualquer

O quadrinhista Carlos Ruas, que também é o criador de Cães e Gatos (minha filha ama!) e Mundo Avesso, desenha as tirinhas de Um Sábado Qualquer (USQ).

USQ é divertidíssimo. Humor muito inteligente de sátira religiosa, que usa personagens míticos como deuses de toda parte do mundo e de todas as religiões, demônios, cientistas, filósofos e tantos outros. Muito engraçado.

Nesse caso as figuras humanas ou divinas representadas não o são como amigos imaginários. Persépolis lembrou USQ pelo diálogo em pé de igualdade entre Deus e Marx.

Embora Marx não seja figura recorrente nas tirinhas de Ruas, outros pensadores são habitués, como Nietsche e Darwin. Também aparecem outros artistas e personalidades das mais diversas áreas. As conversas entre Deus e Darwin sempre remetem à teoria da evolução das espécies e ao criacionismo e são hilárias.

Persépolis foi adaptado para o audiovisual em 2007 na forma de longa de animação. Recebeu prêmios como dois Césares (melhor filme de estreia e melhor roteiro adaptado) e prêmio do Júri em Cannes. Foi indicado ao Oscar de melhor animação.

Persépolis (filme)

A animação é bem fiel ao livro, Marjane Satrapi foi roteirista e diretora junto com Vincent Paronnaud. Ficou excelente!

SATRAPI, Marjane. Persépolis.Tradução: WERNECK, Paulo. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2007.

WAITITI, Taika. Jojo Rabbit. Estados Unidos: Fox Searchlight Pictures, 2019.

SATRAPI, Marjane & PARANNAUD, Vincent. Persépolis. Sony Pictures: França, 2007.

RUAS, Carlos. Um Sábado Qualquer. Brasil: 2011-atual. https://www.umsabadoqualquer.com/tirinhas/um-sabado-qualquer