
Passarinha
“Uma outra até diz, Que sorte a sua ter tantos parentes!
Não acho que eu tenha sorte mas eles continuam chegando.
Parentes que a gente mal via quando Devon estava aqui então como eles podem ajudar? Vizinhos como o sujeito que gritou com Devon para sair do seu gramado. Como ele pode ajudar?
Gente da escola. A Sra. Brook minha orientadora. A Srta. Harper a diretora. Todas as minhas professoras desde o jardim de infância menos a minha atual professora da quinta série porque ela foi embora depois do que aconteceu na escola de Devon. Eu não Captei O Sentido porque nada de mau aconteceu na Escola James Madison então por que ela tinha que ir embora? Agora a minha professora é a Sra. Johnson. Ela diz que nem mesmo conheceu Devon só o viu jogar basquete. Duas vezes. Eu já vi os LA Lakers jogando mais de duas vezes. E nem por isso tento ajudá-los.
Caitlin. Se alguma hora dessas quiser conversar sobre o que aconteceu é só falar, diz a Sra. Johnson.
É para isso que serve a Sra. Brook, digo a ela.
Que tal se nós todos nos reuníssemos?
Para quê?
Para sabermos em que pé você está.
Olho para meus pés plantados lado a lado no chão da sala. Eu estou em cima dos dois pés ao mesmo tempo.
Desculpe. Eu quis dizer para sabermos como você está se sentindo.
Ah. A Sra. Brook sabe como eu estou me sentindo então a senhora pode perguntar para ela. Eu seria supérflua. Meu Dicionário diz que suPÉRfluo significa aquilo que excede o suficiente ou necessário.
Eu só achei que seria bom nós sentarmos e batermos um papo qualquer hora dessas.
Faço que não com a cabeça. SuPÉRfluo também significa caracterizado pela inutilidade.
Então está bem, diz ela. Eu dou uma palavra com a Sra. Brook.
A Sra. Brook diz que a gente pode falar com ela a qualquer hora porque as suas portas estão sempre abertas. Na verdade ela só tem uma e está quase sempre fechada. Mas quando a gente bate ela lembra de abrir.
Obrigada Caitlin.
Ela não se mexe. Isso quer dizer que está esperando que eu diga alguma coisa. Detesto isso. Me faz sentir coceira e ficar molhada debaixo dos braços. Quase começo a chupar o punho da blusa como faço na hora do recreio mas então me lembro. Não há de quê, digo.
Ela se afasta.
Acertei! Vou até a geladeira e colo o adesivo de um smiley na minha cartela de SUA EDUCAÇÃO. Com mais sete vou poder assistir a um vídeo.”
Kathryn Erskine. Passarinha.
Que coisa mais delicada esse livro! Multicamadas.
Em Passarinha, Kathryn Erskine vai acompanhar o processo de luto da menina Caitlin lidando com a perda do irmão. Isso já é uma camada. Pronto para as próximas?

Kathyrn Erskine
Caitilin já é órfã de mãe, tem síndrome de Asperger, o irmão morreu pela ação de um atirador, assassino em massa, que invadiu seu colégio, luto coletivo. E a cereja do bolo: referências a O Sol é Para Todos, de Harper Lee, que é para mim um favorito da vida.
Eu li Passarinha no primeiro semestre. Veja que se passaram uns dias…
Por que não escrevi antes? Bem, sabia que era uma personagem Asperger antes mesmo de ler. Aí li Querida Kombini e pensei: vou ler Passarinha, porque as personagens devem ter pontos em comum. E também porque já tinha sido recomendado pela amiga Daniela, que inclusive me emprestou o dela.

Passarinha. Capa e títilo original: Mockingbird
Depois que li Passarinha em uma linda tarde de domingo (tipo comi com angu), veio a ideia de ler Precisamos Falar Sobre o Kevin e juntar os dois. Resultado… Precisamos falar sobre o Kevin está ali lindinho na fila dos comprados e não lidos. E também a perspectiva de Passarinha sobre o tema dos assassinatos em massa é tão delicada, que o Kevin ia pesar, desvirtuar.
Voltemos ao que interessa: Passarinha.
Um dia, um atirador entrou na escola de Devon e ele foi uma das vítimas fatais. Devon era um adolescente e a irmã Caitlin ainda uma criança. Devon era muito próximo da irmã e ela por sua condição de Asperger diagnosticado, se refugiou nos livros e dicionários em busca de explicações. Explicações manualizadas, que lhe conferiam alguma estabilidade e direcionamento. Nessas buscas por explicações inequívocas, ela se depara o verbete “desfecho” e conclui que é disso que ela e o pai precisam para seguir com a vida sem Devon. Pronto: primeiras lágrimas derramadas com sucesso.
Caitilin decide que o desfecho é terminar um projeto que Devon começou.
Aí tem um tanto de simbolismos que não vou detalhar porque seria spoiler. Aliás, recomendo que leiam as notas da tradução que vêm no início do livro, mas só depois que lerem o livro, tem umas informações que podem contar mais do que o necessário sobre o enredo.
Seria suficientemente triste essa menina e o pai lidarem com a perda de um ente tão querido. Mas o assassinato de Devon nas condições em que se deram, foi uma perda pessoal para a família dele, uma perda pessoal para todas as famílias que perderam pessoas nas mesmas condições, no mesmo evento, e ainda uma perda coletiva para a escola, a cidade, um crime que choca e comove quem dele toma conhecimento. Caitilin não terá que dar conta só da perda do irmão, terá que lidar o o luto coletivo, que tem características diferentes, que vão impactar o processo de Caitilin.
O título Passarinha já é uma referência a O Sol é para Todos (pior tradução de título ever), cujo nome original é “To Kill a Mockingbird” ou, em tradução livre “Matar um passarinho”. Esse livro maravilhoso, foi adaptado para o cinema em 1962 e foi um sucesso estrondoso, ganhando três Oscars: roteiro adaptado, ator (Gregory Peck) e Direção de Arte. Era o filme preferido de Caitilin e Devon.
To Kill a Mockingbird, vai falar de dois irmãos Jem e Jean Louise Finch, filhos do advogado viúvo Atticus Finch. Os dois irmãos são inseparáveis e o apelido da menina Jean Louise é Scout, ou escoteira em português. Devon chamava Caitilin de “Scout”.
Assim como a Scout em O Sol é para Todos, a narradora de Passarinha é Caitilin.
O nome do livro/filme To Kill A Mockingbird é uma referência à injustiça de se matar uma criatura inocente, como um passarinho. na obra de Kathryn Erskine temos a morte real de um inocente, o irmão assassinado, e uma “passarinha”, uma criatura também inocente, tentando lidar com a dor da perda. No título original, em inglês, Passarinha se chama Mockingbird.
Passarinha, venceu o National Book Award de 2010 e outros muitos prêmios em categorias infanto-juvenis.
Acredito que uma boa classificação indicativa seja 12 anos. Crianças menores vão achar o livro muito forte. Adultos vão perceber mais camadas e se deliciar com essa leitura. Preparem o Kleenex.

O Sol é para Todos (To Kill a Mocking Brid)
Vou falar um pouco mais de O Sol é para Todos, porque esse livro merece. Aliás, eu gosto tanto que vou falar dele quantas vezes for necessário.
Harper Lee, jornalista estadunidense. Escreveu esse romance vencedor do Pulitzer.
Só a título de curiosidade, Harper Lee era conterrânea e amiga de Truman Capote e o ajudou nas pesquisas que culminaram em outro livro favorito da vida: À Sangue Frio.
O livro se passa no Alabama na década de 1930. Atticus Finch, homem branco, advogado renomado, vai defender um homem negro acusado injustamente de estuprar uma menina branca. Logo, deu para perceber que a história desse julgamento é bem pesada. Entretanto, assim como em Passarinha, a narração pela perspectiva de uma criança faz o vocabulário e as construções serem muito suavizadas. O leitor não será poupado dos detalhes horrendos, mas terá uma experiência de leitura muito fluída e agradável na medida do possível, em se tratando de racismo no sul dos Estados Unidos na primeira metade do Século XX. Esse livro para mim beira a perfeição.
Estão aí, dois livros maravilhosos e mais o filme O Sol é para Todos, como fortíssimas recomendações de como a perspectiva infantil pode ajudar a digerir temas muito pesados, sendo Passarinha inclusive adequado para crianças acima de 12 anos.
ERSKINE, Kathryn. Passarinha. Tradução: LEAL, Heloísa. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.
LEE, Harper. O Sol é para Todos. Tradução: HORTA, Beatriz. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
MULLIGAN, Robert. O Sol é para Todos. EUA: Universal Studios, 1962.
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