
Capa do livro Outros, Estranhos.
“Lana também sentia raiva. Raiva de não ter sido respondida, raiva de não falar, raiva de ter que falar… E também calava. Não contava nem respirava fundo, mas calava. Olhava para fora das janelas e evitava o contato – total – com aquele outro que insistentemente interpelava. Se limitava a murmurar resmungos: ‘sim’, ‘não’, ‘hm’. As três palavras, ou duas palavras e um breve mugido de ordem.
Elis começava a perder a paciência. Quase toda semana era isso, e embora soubesse que a fase tem dessas coisas, lidar com elas era uma outra. Tinha hora que a filha parecia uma… uma estranha.”
URBANO, Isadora. Outros, Estranhos.
Outros Estranhos, livro de Isadora Urbano, é construído com um recurso que eu gosto muitíssimo que é o entrelaçamento de histórias de personagens diferentes, com problemas diferentes, que se tangenciam. Elas não chegam a depender uma da outra e têm em comum o relacionamento interpessoal entre pessoas que supostamente deveriam ser íntimas, mas, que em suas complexas vidas e personalidades, acabam não sendo. Esse estranhamento pode nascer por comportamentos inesperados, que acabam revelando uma faceta desconhecida da personalidade, ou por serem inacessíveis a ponto de sempre serem estranhos aos que com eles convivem cotidianamente.
São três mulheres principais e outros tantos coadjuvantes bastante importantes. As mulheres são Larissa, uma médica, mãe solo de um filho, nunca foi casada e tem um relacionamento de longa data com um homem casado; Elis, psicóloga tem uma filha adolescente chamada Lana; Iris, estudante de Belas Artes, garçonete, descendente de gregos e recém casada.
Não se trata apenas do estranhamento em relação às pessoas que as cercam, cada uma dessas mulheres tem como próprio estranho elas mesmas. Seja porque precisam mudar de profissão, porque precisam redescobrir como elas próprias superam um trauma ou porque ainda não sabem exatamente quem elas são, do que gostam, o que sentem. Nessa jornada de autoconhecimento elas vão se envolver com outros personagens, que como mencionado anteriormente, eram supostamente íntimos.
Iris é filha de imigrantes gregos, trabalha em um restaurante enquanto estuda para ser artista plástica, ao que parece é bastante ligada à família sem grandes conflitos com as personalidades dos pais ou do namorado com quem foi morar recentemente. Na história de Iris acompanhamos a busca por seu cachorro perdido e as reflexões e mergulhos internos que essa busca trará para a personagem, mas também uma história paralela bastante familiar à muitas pessoas, que é o relacionamento entre o pai (sogro) e o namorado. Quem nunca se sentiu esquisito diante dos sogros quando foi conhecê-los ou no início do relacionamento? No caso de Camilo, o namorado de Iris, percebemos que o desconforto era de mão dupla, o pai dela também não estava nada confortável com aquela situação. Esses estranhos acabam deixando de sê-lo por força das circunstâncias.
Larissa é filha de um pai militar, autoritário, fez escolha de carreira que lhe é bastante rentável, mas que talvez não fosse a mais ajustada a seus talentos, possivelmente, influenciada pela família. O pai recente o fato de ela não ter se casado com o pai de seu filho pequeno e ainda no campo amoroso ela está bastante envolvida com um homem casado, que por sua vez tem suas questões internas para resolver.
E a minha preferida: Elis. Elis já foi casada, o ex- marido já é falecido. Tem uma filha adolescente: Lana. Elis é psicóloga e atenderá as outras duas personagens principais em seu consultório. O que foi um meio interessante para permitir que o leitor mergulhe nos pensamentos profundos dessas mulheres.
Além de si própria, outra “estranha” que faz parte da jornada de Elis é Lana, sua própria filha. Como diversos adolescentes Lana não desgruda do aparato tecnológico que a cerca e se enclausura no quarto criando uma barreira que a afasta da mãe, que, por sua vez, não consegue se aproximar da filha, quanto menos entender ou ajudar, apesar de sua larga experiência fazendo isso para pessoas aleatórias em seu consultório. À medida que a trama avança, o leitor compreende os motivos do isolamento de Lana, que ultrapassam a mera entrada na adolescência, e acompanha o desenrolar desse delicado relacionamento entre mãe e filha.

Cartaz da série Years and Years
Nesse ponto, aliás, nesse conflito entre Elis e Lana, me lembrei de uma série da BBC, disponível na HBO: Years and Years.
Years and Years, que é uma distopia, conta em seis episódios bastante intensos a vida de uma família britânica ao longo de 15 anos a contar de 2019, ano em que na série Donald Trump era reeleito e a Rússia invadia a Ucrânia. A série foi ao ar em 2018 e trata de temas que já estavam em voga naquele momento e de outros que nos assolaram em pouco tempo depois, como uma pandemia, por exemplo.
Os personagens principais são os membros da família Lyons, que é composta por quatro filhos, uma nora, quatro netos e pela avó, uma senhora que é responsável por aglutinar os personagens e fazê-los se reunir, meio que obrigados, uma vez por ano em sua casa para comemorar seu aniversário. Os irmãos Lyons são: Stephen, consultor financeiro casado com Celeste e pai de duas filhas; Daniel, funcionário do governo britânico para assuntos de imigração, que está envolvido com a recepção de refugiados ucranianos; Edith, ativista política membro de uma grande ONG internacional; Rosie, trabalha em uma escola, é cadeirante e mãe solo de dois filhos. Destaca-se a interpretação, sempre brilhante, de Emma Thompson no papel de Viv Rook, uma política/empresária com ideias ultradireitistas pra lá de controversas que vai dividir a nação e provocar mudanças nas relações entre os Lyons e os que os rodeiam.
Cada Lyon é estranho para si próprio e para os outros, posto que à medida aos poucos vamos percebendo particularidades das personalidades que surpreendem. O espectador também fica aturdido com os rumos das escolhas pessoais que, em efeito dominó, mudam todo o entorno e com as semelhanças com a vida real.
Em Years and Years, a personagem Bethany é a filha de Stephen e sua esposa Celeste. Bethany, que é muito ligada a tecnologia, praticamente não interage com pessoas de carne o osso, está sempre online. Mesmo quando se junta a sua família ela o faz usando máscaras virtuais holográficas que escondem seu rosto, atitude que a família tem muita dificuldade em aceitar. À medida que Bethany se isola no mundo virtual, seus pais vão ficando cada vez mais preocupados e pensam em como podem ajuda-la ou pelo menos compreendê-la. Até que um dia, Bethany lhes dá uma explicação sobre seu comportamento e informa que tem dificuldades de se reconhecer naquele corpo, os pais aliviados pensando ser uma questão de disforia de gênero e prontamente assegurando à filha que estariam ali para dar suporte à sua transição, ficam estupefatos ao ouvir dela que não se trata disso, o que ela realmente precisa é se tornar virtual. O que Bethany quer é deixar de existir em seu corpo físico passando a habitar uma nuvem, pois não se reconhece como humana encarnada. Esse é um dos conflitos que alivia a tensão da trama. Years and Years é uma porrada na alma, embora sua conclusão deixe um gostinho de fé na humanidade.

Capa do disco Fruto Proíbido, de Rita Lee e Tutti Frutti
Sobre o isolamento para não ter que lhe dar com as questões da realidade palpável e também na interação entre os pais e a adolescente com dificuldades Years and Years se parece com a relação entre Elis e Lana.
Enfim, tanto a série quanto o livro são muito mais do que o que aqui foi exposto. Afinal o plano é indicar, sem arruinar a experiência com excesso de spoilers. Deixo-lhes com a música Esse tal de Roque Enrow, de Rita Lee e Paulo Coelho, interpretada por Rita Lee e Tutti Frutti, que trata da relação conturbada entre uma mãe e a filha marcada por um conflito de gerações.
URBANO, Isadora. Outros, Estranhos. Belo Horizonte: 2018 (link para adquirir o e-book)
JONES, Simon Cellan & MULCAHY, Lisa. Years and Years. UK: HBO, 2019.
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