
Os Vestígios do Dia
“Fico contente de poder lembrar numerosas ocasiões em que a prataria de Darlington Hall teve um impacto agradável sobre observadores. Por exemplo, lembro-me de Lady Astor observando, não sem uma certa amargura, que nossa prataria era ‘provavelmente sem rival’. Lembro-me também de ver Mr. George Bernard Shaw, o renomado dramaturgo, examinando de perto, uma noite, durante o jantar, a colher de sobremesa à sua frente: levantava-a para a luz e comparava sua superfície com a do prato ao lado, sem se importar com as pessoas à sua volta. Mas talvez o exemplo de que me lembre com maior satisfação hoje em dia seja o da noite em que um certo personagem muito distinto – ministro de gabinete que logo depois seria secretário do Exterior – fez
uma visita muito “extraoficial” à casa. Na verdade, agora que os frutos subsequentes dessas visitas já foram bem documentados, parece não haver mais razão para não revelar que estou falando de Lord Halifax.
O que aconteceu foi que essa visita em particular veio a ser, simplesmente, a primeira de toda uma série de reuniões “extraoficiais” entre Lord Halifax e o embaixador alemão na época, Herr Ribbentrop. Mas, naquela primeira noite, Lord Halifax chegou num estado de grande aborrecimento. Praticamente, suas pimeiras palavras ao entrar foram:
‘Realmente, Darlington, não sei por que foi que você me meteu neste caso. Sei que vou me arrepender.'”
Kazuo Ishiguro. Os Vestígios do Dia.
Coisa linda esse livro! Cinco estrelas, favoritado!
Antes de tudo recomendo como trilha sonora para esse texto as canções Enterlude e Exitlude, da banda The Killers, que habitaram minha mente durante essa leitura. Essas músicas são a cara da hospitalidade inglesa.
Kazuo Ishiguro, autor japonês que vive na Inglaterra desde os 5 anos de idade, escreve obras bastante diferentes entre si. Tem Não me Abandone Jamais que é ficção científica (pretendo ler. Já vi o filme rsrs), tem O Gigante Enterrado que é cavalaria e… Os Vestígios do Dia, que é um drama bem introspectivo, um livro que chega no fundo da alma e desnuda um ícone inglês: o mordomo.
Deve ser, além da qualidade da escrita, a versatilidade que tornou Ishiguro um laureado pelo Nobel de Literatura em 2017.
Esse livro específico venceu o Booker Prize.
Os Vestígios do Dia é agora o meu Ishiguro preferido. O leitor vai questionar os rumos da própria vida, das crenças, das suas causas. Vai também questionar o personagem principal e alguns outros personagens por suas escolhas e suas condutas. Vai rir, se revoltar e chorar.
O personagem principal, o mordomo Mr. Stevens, é o narrador. Os Vestígios do Dia é um romance epistolar. O que o leitor lerá são entradas de diário do personagem principal enquanto faz uma viagem para visitar uma velha amiga, com a desculpa de estar indo por questões de trabalho.
O universo dos mordomos e governantas vai se descortinando e esses seres que devem ser fiéis, prestativos e praticamente invisíveis aos olhos de seus patrões, na verdade têm ambição e plano de carreira. Existe a hierarquia da criadagem e ainda existe uma hierarquia entre os mordomos. Os mais bem sucedidos trabalhavam nas casas/palacetes de aristocratas.
Aposto que você pensou em Downton Abbey. Sim, há várias similitudes. A diferença principal é a perspectiva. Os patrões são apresentados segundo os valores, costumes, pretensões e até preconceitos do mordomo.
Para além da questão da carreira dos mordomos, governantas, valetes, lacaios e arrumadeiras, a trama vai evoluindo enquanto acompanhamos a viagem de Mr. Stevens pelo interior da Inglaterra, o que também o proporciona uma viagem para dentro de si.
Entre os temas podemos citar: a participação de aristocratas britânicos na consolidação do nazismo durante o entre guerras; como pessoas mudam de opiniões políticas e sociais e acabam enredados em causas criminosas; o quanto vale a pena abdicar da vida pessoal para ascender na carreira, o lugar que o trabalho ocupa na nossa vida; choque cultural entre ingleses e americanos ricos que compravam as mansões dos aristocratas falidos.
Os Vestígios do Dia tem como tempo presente o ano de 1956, é um diário de viagem, com passagens em que Mr. Stevens relembra fatos que ocorreram em Darlington Hall desde a década de 1930.
Vamos primeiro ao panorama histórico. O personagem fictício Lord Darlington era um aristocrata inglês com bastante influência sobre outros aristocratas, não só ingleses, mas também de outros países europeus e com contatos importantes entre figuras políticas. O mordomo fala de vários banquetes suntuosos em Darlington Hall em que temas importantes para a geopolítica mundial eram tratados.
Esse status de pompa e influência durou até meados da segunda guerra mundial (1939-1945) quando Lord Darlington cai em desgraça acusado de ajudar a erguer o nazismo.
Na vida real, após a primeira guerra mundial, o Tratado de Versailles impôs severas penas e restrições à Alemanha. Claro que essas penas dificultaram o reerguimento dos germânicos no pós guerra, que estava sendo mais lento que a recuperação dos demais países europeus envolvidos no embate.

Joachim Von Ribbentrop
O livro inclui em sua trama, personagens reais como H. G Wells, Lord Halifax, Bernard Shaw, Winston Churchill e Joachim von Ribbentrop. Esse segundo, aparece como conhecido de um amigo de longa data de Lord Darlington, chamado Herr Herman. Herman e Ribbentrop teriam, no período do entre guerras, conduzido o “ingênuo” aristocrata ao erro. Ribentropp foi Embaixador da Alemanha no Reino Unido entre 1935 e 1938, quando foi promovido Ministro das Relações Exteriores do terceiro Reich.
O erro cometido por Lord Darlington foi usar sua influência e promover encontros em Darlington Hall para burlar a diplomacia britânica, bem como a francesa, estadunidense e etc., auxiliando o partido nazista alemão a ganhar espaço e benesses no continente europeu e dentro do próprio território alemão. Essas conversas iniciaram propondo afrouxamento do Tratado de Versailles.

Ex-Rei Edward VIII e sua esposa Wallis Simpson
Ao que parece, fora da ficção, muitos membros da aristocracia britânica tiveram simpatia pelo terceiro Reich, entre eles, o mais ilustre foi o Duque de Windsor, ex-Rei Edward VIII.
A reconstrução desse cenário conspiratório que ia na contra mão da política exterior oficial do Reino Unido das décadas de 1930 e 1940 é muito bem construída em Os Vestígios do Dia, bem como a repercussão do envolvimento de Lord Darlington e a percepção da criadagem durante os conluios e depois da Segunda Guerra.
Voltando ao drama pessoal de Mr. Stevens, o pai dele tinha sido um mordomo memorável que o ensinou a ser um mordomo memorável, cuja principal característica deveria ser a dignidade.
Como dignidade leia passar por cima dos próprios sentimentos, engolir alegria e tristeza, não se divertir nunca e ser um poste bem vestido pronto a atender o patrão.
As duas vezes que desidratei de tanto chorar com esse livro foram em situações assim. Não vou dar detalhes, mas uma foi quando uma dor, do tipo facada na alma, foi categoricamente suprimida para manter a tal da dignidade e terminar o serviço impecavelmente. Digno da música The Show Must Go On, da lendária banda Queen.
Se a tradição de formar esse tipo de funcionário robô vem de tempos imemoriais, tendo inclusive sido citado na Bíblia, o treinamento e o formato que conhecemos hoje vem da Inglaterra da idade moderna. Sejam eles os assassinos de histórias policiais, funcionários de hotéis luxuosos ou até mesmo de residências que empregam muitos funcionários.
Esse gerente infalível, sóbrio e eficiente se espalhou pelo mundo.
Lembra do Jaime da propaganda dos sucos Tang, que era mandado levar suco para um menino esnobe e o fazia como ordenado, embora pensasse sem deixar transparecer que o menino não era digno do refresco.
Nesse ponto, indicamos dois filmes: O Mordomo da Casa Branca (The Butler) e Vestígios do Dia, adaptação do livro que discutimos aqui.
Em O Mordomo da Casa Branca, Forest Whitaker interpretou Cecil, um homem de origem humilde, que consegue um emprego na Casa Branca se torna mordomo, posto que ocupou por trinta e quatro anos, 1952 a 1986. Esse filme é baseado na história de real de Eugene Allen.

Eugene Allen
Assim como Os Vestígios do Dia, a história principal em O Mordomo da Casa Branca é a vida do mordomo tanto a pessoal, quanto à profissional, entretanto, ele não serviu em uma casa qualquer.
Se Mr. Stevens presenciou conchavos pró Hitler, Mr. Allen presenciou fatos importantes para a histórias estadunidense e mundial ao trabalhar diretamente com oito presidentes: Truman, Eisenhower, Kennedy, Lyndon Johnson, Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter e Ronald Reagan.
Percebe? Temos aí eventos como: Revolução Cubana, Guerra Fria, luta pelos direitos civis dos negros, assassinatos de JFK e Martin Luter King Jr., alternância entre republicanos e democratas.
Além de Forest Whitaker tem também todo o resto do elenco que contou com Oprah Winfrey, Vanessa Redgrave, Cuba Goding Jr., Lenny Kravitz, Robin Williams e Jane Fonda.
Vestígios do dia, o filme, foi indicado a 8 Oscars. É bem fiel ao livro, embora mais acelerado e menos introspectivo, até porque não há narrador em primeira pessoa. Outro ponto é que coisas que vamos desvendando aos poucos al longo da leitura são bem mais explícitas no filme. Ou seja, para a surpresa de ninguém, o livro é melhor. O que não quer, de jeito nenhum, dizer que o filme seja ruim. Aliás, superrecomendo.
Vestígios do Dia trouxe Anthony Hopkins no papel de Mr. Stevens e ainda Emma Thompson, Christopher Reeve, Hugh Grant e James Fox.
“We hope you enjoyed your stay. It’s good to have you With us even if it’s just for the day”

Errdig Hall, País de Gales
ISHIGURO, Kazuo. Os Vestígios do Dia. Tradução: SIQUEIRA, José Rubens.São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
DANIELS, Lee. O Mordomo da Casa Branca. EUA: The Weinstein Company, 2013.
IVORY, James. Vestígios do Dia. EUA & UK: Columbia Pictures. 1993.
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