“Pois, embora estes não sejam assuntos sobre os quais o biógrafo possa proveitosamente se estender, eles ficam claros para aquele leitor que participou, a partir de sugestões esparsas aqui e ali, da construção dos limites e contornos de um ser vivo; que pode ouvir uma voz naquilo que apenas murmuramos; que pode ver exatamente aquilo que ele parece, mesmo quando não dizemos nada; que sabe, sem uma palavra para guiá-lo, precisamente o que ele pensava — e é para leitores como este que escrevemos — é claro, então para tal leitor, que Orlando era estranhamente composto de muitos humores — de melancolia, de indolência, de paixão, de amor à solidão, sem falar em todas aquelas sinuosidades e sutilezas de temperamento que foram indicadas na primeira página, quando ele açoitava a cabeça de um negro morto; derrubava-a; pendurava-a cavalheirescamente de volta, longe do seu alcance, e depois dirigia-se para o banco junto à janela com um livro. Seu gosto pelos livros era antigo. Quando criança, fora encontrado muitas vezes à meia-noite ainda lendo uma página. Tiravam-lhe a vela e ele criava vaga-lumes para essa finalidade. Tiravam-lhe os vaga-lumes e ele quase queimava a casa inteira com um morrão. Em resumo, deixando ao novelista a tarefa de alisar a seda amarrotada e todas as suas implicações, ele era um nobre angustiado pelo amor à literatura. Muita gente do seu tempo, mais ainda, de sua classe, escapou desse mal e tinha, assim, liberdade para correr ou cavalgar ou fazer amor quando desejasse. Mas alguns foram precocemente infectados por um germe que, diziam, se alimentava do pólen do asfódelo, soprado da Grécia e da Itália, de natureza tão mortífera que fazia tremer a mão erguida para golpear, nublava o olho que procurava a presa e fazia gaguejar a língua que declarava amor. Era da natureza fatal desta doença substituir a realidade por fantasmas, de modo que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons — baixelas, linhos, casas, criados, tapetes, camas em profusão —, tinha apenas que abrir um livro para que todos esses bens se reduzissem a pó.”
Virginia Woolf. Orlando.
Virginia Woolf é uma escritora muito querida por aqui. Muito querida mesmo. Das melhores.
Li Orlando pela segunda vez e confesso que a primeira vez não foi tranquilo.
Não é mesmo o livro mais sussa de ler do mundo. Virginia Woolf não é sussa. Se quer se embrenhar pela obra dela (e recomendo muitíssimo que se embrenhe), tem que estar na disposição certa.
Antes que apavoremos geral e todo mundo desista de ler esse livro que é muito bom, preciso dizer que ela também não é um bicho de sete cabeças. Esse lugar James Joyce pegou para si. Basta ler com calma. Sem pressa para terminar.

Virginia Woolf
Orlando é um adolescente muito bonito (Virginia destaca as pernas como particularmente chamativas), que vive em um palacete de trezentos quartos no interior da Inglaterra. A Família dele é de nobres com quinhentos anos de linhagem. Um dia, a família de Orlando recebe a comitiva da Rainha Elizabeth (reinou de 1558 a 1603). Quando todos são postos em fila para reverenciar a monarca, Orlando fica com o papel de oferecer água de rosas para que ela lavasse as mãos. Então, Elizabeth bate o olho no rapaz decide levá-lo consigo para a corte e torná-lo seu protegido.
Depois do falecimento de Elizabeth e ascensão do Rei James (1603 a 1625) Orlando se torna um cortesão cobiçado pelas moças casadoiras, estava de casamento marcado quando conheceu uma princesa russa, que visitava a corte inglesa e se apaixonou perdidamente. Estava disposto a fazer loucuras para não se separar dela e… deu ruim. Não vou dizer como deu ruim só digo que essa decepção enclausurou um Orlando deprimido naquela casa nada modesta que pertencia à família dele no interior.
Anos depois, quando ele saiu da fossa foi: servir como embaixador na Turquia, dormir homem e acordar mulher (a partir daí passam a se referir a ela como “a Orlando”), correr mundo em aventuras, voltar para a Inglaterra reassumindo sua condição de nobre.
Não contei os detalhes, só o grosso. Nada de spoilers.
Orlando viverá tudo isso e muito mais porque teve tempo de sobra. Embora aparentasse apenas trinta e seis anos ao final do livro, viveu desde o reinado de Elizabeth no século XVI até Jorge V, no século XX (Tudors, Stuarts, Hanôvers, Saxe-Coburgo-Gota e Windsor). O livro se encerra no ano de 1928.
Nessa trajetória, Orlando vai refletir ao longo do tempo sobre os costumes ingleses, a situação da literatura e dos escritores, imperialismo britânico, nobreza e linhagem, liberdade, avanços sociais e tecnológicos e, principalmente, sobre um assunto muito caro a Virginia Woolf: a diferença de tratamento entre mulheres e homens.
E isso tudo na escrita maravilhosamente poética dessa escritora que tanto influenciou outras autoras e autores.
Já falamos dela aqui quando discutimos Mrs. Dalloway (até hoje meu Woolf preferido) e quando falamos da obra ensaística Um Teto Todo Seu, nos textos das obras de Elena Ferrante: A Filha Perdida e As Margens e o Ditado.
Porque foi mais difícil ler Orlando lá pelos idos de 2013 do que foi agora em 2023?
Maturidade como leitora. De lá para cá deu para ler muita coisa e isso certamente me amadureceu enquanto leitora o que traz bagagem para ler com tranquilidade livros considerados complexos.
Tradução. Descobri Orlando quando minha amiga Janaína, que tinha lido e gostado, me deu de presente um exemplar, que por sua vez tinha sido lhe dado pela filha dela.
Essa era uma edição mais antiga, de 1978, traduzida pela maravilhosa Cecília Meireles.
Inegável o talento de Cecília como poetisa, mas nem sempre os grandes escritores são grandes tradutores. Talvez, Cecília Meireles tenha imprimido um pouco de seu estilo na tradução. O fato é que achei essa tradução que usei agora em 2023 mais fluída e mais fiel ao estilo Woolf. A versão em questão está no box Grandes Obras: Virginia Woolf (2018) e foi feita por Laura Alves.
Os dois livros lidos são da editora Nova Fronteira. Existem opções em diversas edições, editoras e traduções, escolha a que mais lhe aprouver.
Outros personagens, obviamente ficcionais, também tiveram vidas diferenciadas em relação à contagem do tempo.
Estamos falando de vampiros em geral e mais especificamente a turma de Lestat de Entrevista com o Vampiro, o filme de 1994, baseado no livro homônimo de Anne Rice. Sabe quem mais viveu muito sem envelhecer, Robert Gadling.

Nosferatu
O Drácula, de Bram Stocker, tinha a vida eterna desde que não lhe enfiassem estaca no coração, mas ele envelhecia. Para manter a cutis em bom estado, precisava de sangue humano. Nosferatu, sabe-se lá como se tornou vampiro, tinha aquela cara estranha, com dentinhos permanentemente alongados como os de morcegos. Não era jovem nem velho, era uma criatura inumana.
Mas, em Entrevista com o Vampiro a coisa era diferente. Lestat de Lioncourt (Tom Cruise) é o vampiro que curte essa onda de vida eterna e quando fica meio precisando de companhia vai lá e transforma outro humano em vampiro. Foi isso que rolou com Luis de Pointe du Lac.
Quem concede a entrevista ao jornalista é Louis (Brad Pitt). Naquela ocasião, ele tinha 200 anos num corpinho de 24. Esses vampiros não terão vivências de mudança de gênero, só de longevidade e vão precisar consumir sangue humano vez ou outra.

Gary Oldman no filme Drácula , dirigido por Francis Ford Copolla
Inclusive Lestat vai morder uma criança tornando-a vampira e oferecê-la como companhia a Louis. Claudia (kirsten Dunst) passa a ser “filha” de Lestat e Louis.
O ponto é que os vampiros de Anne Rice ficam para sempre com a aparência que tinham quando se tornaram vampiros. Por isso têm idades variadas.
E Robert Gabling? Quem é essa pessoa? Bem, Robert Gabling é realmente uma pessoa, que vai comer comida como qualquer humano e não pode transmitir a vida eterna. Ele conseguiu essa dádiva quando em 1389, cruzou o caminho de dois irmãos: Sandman, o senhor dos sonhos e a Morte.
Robert estava tomando umas com os amigos, quando os dois eternos entraram na mesma taverna. Sabe aquele bêbado que fala alto? Era ele. E ele dizia que queria viver para sempre porque o mundo é grande e tem muita coisa para ver e fazer e tals.
Aí Sandman fala para sua irmã que duvida que aquele homem não estaria implorando para morrer em menos de um século. Aí, para ver o que acontece, a Morte (aquela traquinas) concede esse desejo a Robert.
Sandman e Robert combinaram de encontrar-se naquele mesmo lugar onde era a tal taverna, naquele mesmo dia a cada 100 anos.
Era só admitir que queria morrer e Robert estaria livre da vida eterna, mas isso não aconteceu. O homem teve uns séculos gloriosos outros terríveis e nunca se cansou ou se entediou querendo sempre ver o que a vida lhe reservava mais adiante.
Robert também não envelheceu. Permaneceu com a mesma carinha que tinha em 1389 .
Isso acontece na série The Sandman, no episódio 6 da primeira temporada, que está disponível na Netflix.
Assim como Orlando, os vampiros e Robert terão uma vida enorme, passando por eras distintas, acompanhando o desenvolvimento do mundo e da humanidade ao longo de séculos. Entretanto, apenas Orlando teve a oportunidade de vivenciar a vida como homem e como mulher e assim refletir sobre o que isso implica de bom ou de ruim.
Orlando, segundo biógrafos e estudiosos da vida e obra de Virginia Woolf, tem traços autobiográficos e foi inspirado no romance da escritora com a poetisa Vita Sackville-West.
Este livro foi transformado em filme em 1992. A triz Tilda Swinton fez o papel principal. Não consegui assistir ainda. Orlando: A mulher imortal faz parte do catálogo do streaming Mubi.
WOOLF. Virginia. Orlando. Tradução: Laura Alves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
JORDAN, Neil. Entrevista com o Vampiro. EUA: Warner Bros., 1994.
GAIMAN, Neil & outros. The Sandman. EUA: Netflix, 2022.
POTTER, Sally. Orlando: A mulher imortal. UK, Itália, França, Países Baixos e Rússia: Sony Pictures, 1992.
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