
Odisseia
” ‘Vem até nós, famoso Ulisses, Glória maior dos Aqueus!/ Para a nau, para que possas nos ouvir! Pois nunca/ por nós passou nenhum homem na sua escura nau
que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;/ depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor. Pois nós sabemos todas as coisas que na ampla Tróia/
Argivos e troianos sofreram pela vontade dos deuses;/e sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil.’
Assim disseram e projetando suas belas vozes; / e desejou o meu coração ouvi-las: aos companheiros/ ordenei que me soltassem indicando com o sobrolho;
mas eles caíram sobre os remos com mais afinco/ de imediato Perimedes e Euríloco se levantaram/ para me atar com mais cordas, ainda mais apertadas;
Depois que passamos a ilha e já não ouvíamos a voz, nem o canto, das Sereias, os fiéis companheiros
tiraram a cera com que os ouvidos lhes besuntara/ e a mim libertaram-me das amarras.”
HOMERO. Odisseia. p. 325.

Homero
Homero. O maior poeta da Grécia antiga, fundamental para entendermos a mentalidade, costumes, organização política e a construção mitológica, entre muitos aspectos do antigo império grego.
O problema é que dizer que ele foi um poeta é inespecífico. Dizem que Homero não escreveu uma linha sequer. Existe ainda quem discuta se Homero de fato existiu. Ilíada e Odisseia, clássicos dos clássicos, obras das mais importantes do mundo de todos os tempos, são compilações. Organizações em forma de versos de histórias transmitidas oralmente. A Homero, se existiu, é atribuída a autoria de tais poemas nas versões que hoje conhecemos. Ele teria vivido no século VIII a.C.
Odisseia é a sequência da Ilíada. Ilía é a mesma coisa que Tróia, cidade que foi palco de uma guerra que durou dez anos, na qual vários heróis lutaram incluindo Aquiles e o nosso Odisseu, também conhecido como Ulisses.
Aff… precisa de um poema de vinte e quatro cantos e cerca de quinhentas páginas para falar como um dos heróis foi embora para casa depois de terminada a guerra? Precisa.
Precisa porque esse infeliz levou dez anos para completar o trajeto de Tróia a Ítaca, ilha onde ele era o rei.
Vamos a um pouco de geografia moderna. Ítaca permanece com o mesmo nome e é uma ilha grega. Tróia era uma cidade-estado inserida na cultura grega. Hoje, o local onde era Tróia, é o sítio arqueológico de Hisarlik, na Turquia.

Hisarlik – ruínas de Tróia
Tróia que foi tratada por muito tempo como lugar mitológico deixou de sê-lo quando suas ruínas foram descobertas em 1873 pelo arqueólogo Heinrich Schiliemann, na região da Anatólia. A distância entre elas, considerando uma viagem parte por mar e parte por terra, é de mais ou menos 1100 km. Digamos que Ulisses tivesse ido a pé e a remo nos trechos de água ele levaria, indo com calma, um mês.
O problema é a treta grega. As expressões “tragédia grega” e “drama homérico” fazem jus a suas origens. Meo Deos, você não depende só das velas ou dos remos ou dos seus pés para voltar para casa.Você depende disso e ainda de não ter monstros no caminho, não desacatar nenhum deus ou ninfa ou górgona ou sereia ou ciclope e por aí vai. Essas ofensas que podem te lançar em uma odisseia interminável podem ser cometidas por atos que vão de cegar o único olho de um ciclope até cair nas antipatias de um deus mais vaidoso totalmente de graça.
No caso de nosso Ulisses, o problema maior foi com Poseidon, que era pai do ciclope que ele atacou. Juntando os dez anos de guerra mais os dez que os deuses o impuseram como castigo ele ficou vinte anos fora de casa.

Ítaca – Tróia = 1100 km aproximadamente.
Outros personagens importantes são a esposa e o filho de Ulisses: Penélope e Telêmaco.
Penélope adotou uma estratégia discutível em relação a um possível novo casamento diante do fato de que Ulisses foi “comprar cigarros” e sumiu por vinte anos. Ela nem dispensava nem aceitava os pedidos de casamento de dezenas de pretendentes. Ficou tecendo uma mortalha para seu sogro Laertes com a desculpa que precisava terminar suas obrigações de nora antes de se casar novamente. Essa criatura tecia a veste de dia e de noite desmanchava. O objetivo era ganhar tempo para que Ulisses voltasse para casa e essa artimanha durou três anos até que ela foi pega com a boca na botija e teve que terminar as vestes do sogro.
De sua parte, os pretendentes, que deveriam estar em casa aguardando a resposta da moça, decidiram ficar por ali mesmo no palácio de Ulisses em Ítaca, comendo, bebendo e estragando as coisas. Pura inconveniência.
Telêmaco, coitado, já estava desesperado para por um fim naquela situação com os prentendentes. Claro que ele ansiava pela volta do pai, mas os senhores inconvenientes estavam dilapidando todos os bens de Ulisses e Ítaca precisava de um rei. Ele vai ser fundamental para a retomada das rédeas de Ítaca.
Achou complicado? Isso não é nada. É praticamente a sinopse sem spoilers.
Existem várias traduções para o português, li a de Frederico Lourenço que sai pela editora Penguin-Companhia. Em uma pesquisada rápida constatei que é das mais palatáveis, até porque ele não se prendeu à métrica, fez a tradução em versos livres, o que deu liberdade para escolher palavras e composições, tendo compromisso com o estilo homérico, mas sobretudo com a mensagem.
Gostei muito. Foi muito mais fácil do que pensava. Estou enrolando para ler a Odisseia desde 1999 quando fiz a disciplina de História Antiga na universidade. A disciplina era muito menos sobre mitologia e mais sobre política, organização social, estrutura urbana e rural… aspectos históricos não ficcionais. Mitologia só a medida para entender o funcionamento da Grécia antiga e a recomendação do professor sobre a leitura das obras de Homero.
Homero também é a recomendação do podcast maravilhoso Noites Gregas. Que indica a Ilíada e a Odisseia como fundamentais juntamente com a Teogonia de Hesíodo.
Esses são textos fundadores. Assim como textos considerados sagrados tipo a Bíblia, o Corão e o Bhagavad Gita. Também podem ser incluídos nesse hall as peças e sonetos de Shakespeare, por exemplo. São escritos tão importantes e exercem tanta influencia que as comparações com eles tem de se remeter ao que eles influenciaram o que não faria muito sentido aqui ou produziria listas intermináveis.
Então comentarei o que me ajudou a encarar um texto de milhares de anos de idade e ainda achar que foi delicinha de ler. O que pode ter facilitado essa experiência?
Em primeiro lugar o podcast mencionado acima: Noites Gregas, do professor Claudio Moreno e do produtor Felipe Speck. Já ouvi tudo do que é disponível no spotfy. Eles têm modalidades de assinatura, em que o apoiador tem episódios e textos extras como recompensa. O professor também organiza excursões guiadas para os cenários dessas aventuras todas (acredito que guia melhor não há).

Os doze trabalhos de Hercules – volume 1
Outra ajuda, foi ter lido para minha filha os dois volumes de “Os Doze Trabalhos de Hércules” de Monteiro Lobato. Não é a mesma história, mas ajuda muito a entender alguns personagens como a deusa Palas Atena, que ajuda tanto a Hércules quanto a Ulisses, cada um a sua hora.
Sobre esses livros, eles são muito legais. As crianças vão amar. Entretanto é preciso ter cuidado e por muitas vezes problematizar as coisas e contextualizar. Existem termos e conceitos racistas salpicados pelo texto. Monteiro Lobato era um entusiasta declarado do “darwinismo social” e da supremacia branca. Tem que cuidar para que as crianças entendam que isso não é aceitável e que o autor escrevia muito bem, mas comungava de crenças execráveis.

Os doze trabalhos de Hércules – volume 2
Palas Atena, Hefesto, Hercules, Apolo, as Pitías (pitonisas) do oráculo de Delfos e outros tantos interagem com Emília, Visconde de Sabugosa e Pedrinho nessa aventura infantil.
Recentemente li Ulysses do autor irlandês James Joyce. Não estou aconselhando que se leia Ulysses como leitura de apoio para Odisseia e nem que se leia a Odisseia como apoio para Ulysses. Existem obviamente paralelos homéricos em Ulysses, mas dá tranquilo para ler sem ter passado por Odisseia. O que na verdade ajudou nas duas leituras foi o guia que usei para entender a saga joyceana: Ulysses: Um Estudo, de Abdon Franklin de Meiroz Grilo. Lá o autor demonstra os paralelos joycianos e homéricos e é possível entender o que ou quem são Lotófagos, Lestrigones, Circe, Nausicaa, Ítaca e tantos outros que aparecem nos versos e que deram nome aos capítulos de Joyce.
Enfim, foi assim que involuntariamente me preparei para a leitura da Odisseia a ponto de achar fácil. Se quiser apenas uma dessas referências, recomendo fortemente o Noites Gregas. É perfeito! E vai dar a base mitológica indispensável para entender Homero.

Ulysses
Claro que dá para ler Ilíada e Odisseia sem consultar os apoios apresentados aqui. basta buscar referências quando se deparar com algum personagem mítico ou termo que não se entenda na hora. O legal da minha experiência foi que deu para ler com fluidez, não precisei recorrer a fontes externas.
Só a título de paralelo entre textos fundadores: Ulisses demorou dez anos para completar percurso que faria em um mês e o povo judeu, guiado por Moisés levou quarenta anos indo do Egito à terra prometida. Outro trajeto que indo a pé, no deserto, poderia ser feito em um mês.
HOMERO. Odisseia. Tradução: LOURENÇO, Frederico. São Paulo: Penguin, 2011.
JOYCE, James. Ulysses. Tradução: GALINDO, Caetano. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
GRILO, Abdon Franklin de Meiroz. Ulysses: Um Estudo. https://ulissesjoyce.wordpress.com/
LOBATO, Monteiro. Os doze trabalhos de Hercules. Volumes 1 e 2. São Paulo: Globinho, 2018.
Deixe um comentário