O Som do Rugido da Onça

Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata chamando pelos seus irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca. E muito menos é a voz que foi silenciada por baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e, depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela impaciência rude das Fraülein.

Tampouco é a voz que ignorou o que diziam sobre ela os jornais e as revistas da época, as cartas escritas em letras flexíveis como o broto do cipó. Essa voz que você ocasionalmente escutará em sua cabeça e que se confundirá com a sua própria voz, ou com a voz da sua filha, ou da criança da mulher vizinha, ou até, quem sabe, com a voz de sua avó, seja ela quem for, não é a mesma voz com que Iñe-e nasceu. Não é aquela que virou pedra em sua garganta quando ela foi viver no grande castelo entre pessoas quase transparentes de tão brancas, suas carnes moles e azedas se movimentando por entre os panos coloridos e brilhantes que, embora bonitos, não poderiam disfarçar o feiume dos seus captores, seus cabelos, a maioria desbotados, carecendo da beleza esplendente que a tinta negra do huito pode dar. Também não foi aquela voz que ela escondeu, tesouro muito bem guardado, para que os inimigos não tivessem nada mais dela.”

Micheliny Verunsch. O Som do Rugido da Onça.

 

Micheliny Verunschk, minha colega de formação acadêmica, historiadora, venceu o Jabuti 2022, na categoria romance literário, com: O Som do Rugido da Onça.

Várias coisas para dizer sobre esse livro, a começar sobre o fato de que é genial.

Micheliny Verunschk e seu Jabuti

Não cheguei a O Som do Rugido da Onça pela indicação do Jabuti. Cheguei porque aqui perto da minha casa tem a livraria @circulares, que é uma livraria muito bacana de rua, tem um clube do livro. Nunca havia me interessado por clubes do livro que discutissem obras de ficção. A pandemia de Covid-19 trouxe para a internet uma profusão de clubes do livro online. Isso foi lindo porque aumentou a quantidade de leitores. Aí eu ficava olhando para aquilo e pensando, muito bom, mas não quero. A maior parte dos clubes do livro que via eram para leituras coletivas de livros enormes.

Não me entendam mal. Eu não tenho medo de livros enormes, às vezes até prefiro. Tenho dó quando me apego a um personagem e ele acaba em poucas páginas. Também gosto do meu ritmo de leitura e aí engessar um hábito que me é tão íntimo lendo apenas algumas páginas por semana para não estragar a experiência da discussão coletiva, ou pior, avançar a leitura para além da meta do grupo e saber que uma reviravolta está logo ali na história e você não pode comentar para não estragar a experiência dos colegas.

Vi a curadoria do clube da Circulares e dei uma chance. Amei. Vou voltar para o próximo. Foi bem divertido discutir um livro que eu gostei  com pessoas que tiveram diferentes ou complementares leituras da mesma obra e em formato presencial. Como o livro é curto, a discussão foi sobre o livro todo, o que eliminou minhas reservas sobre as metas de leitura coletivas.

Chega de delongas.

Spix e Martius

Talvez você já tenha ouvido falar de Martius e Spix. Se ouviu, pode ter sido de maneira elogiosa. Grandes cientistas alemães, brasilianistas. Descreveram com perícia a fauna e a flora brasileiras lá pelos idos do século XIX, e encomendaram de artistas brasilianistas desenhos tão realistas e minuciosos quanto as descrições.

Alguns dos desenhos foram de humanos, mais especificamente de indígenas. Não ficou no campo das artes ou da observação científica, essa dupla de homens brancos, estudados, bem nascidos e europeus, levou como quem leva um artesanato algumas crianças indígenas do Brasil para a Alemanha. Da Amazônia para Munique. O objetivo: expor aos seus conterrâneos a exótica população nativa do novo mundo.

Esse livro é a ficção que recriou a experiência de Iñe-e e Juri, as duas crianças que chegaram vivas após a travessia do oceano de um grupo inicial de seis. As outras quatro não resistiram à viagem e tiveram seus restos mortais lançados ao mar. Juri não é o nome do menino, mas o que lhe foi atribuído pelos raptores. Iñe-e vai ser chamada de Miranha. Os dois nomes são os nomes das tribos de que vieram.

Só por aí já deu para entender que os heróis da ciência foram pessoas capazes de atos horríveis.

Miranha e Juri

No romance, Martius teria comprado cinco crianças, que eram prisioneiras de guerra da tribo Juri e estavam aprisionadas na tribo Miranha da qual o pai de Iñe-e era chefe. Ela foi dada de brinde. Porque o pai acreditava que era muito próxima às onças e que isso era um mau agouro. Iñe-e era uma “princesa”, renegada por seu pai “rei” apesar dos protestos da mãe e do avô que interpretavam um acontecimento envolvendo aquela criança e uma onça como  bom presságio.

Tudo é muito bem escrito. Os cientistas na Amazônia, a vida na tribo, a travessia de navio do Brasil para a Europa, a chegada e as impressões das crianças indígenas sobre os alemães.

E como esse livro dá conta da cosmogonia indígena… que lindeza! Não vou ficar dando detalhes para não estragar a experiência, mas o papel dos animais, dos rituais da tribo de Iñe-e e das águas, especialmente as do rio que corta a cidade de Munique, é primoroso.

Em paralelo, Micheliny criou a personagem Josefa, que é nossa contemporânea e está no processo de reconhecer suas raízes. Talvez a palavra não seja reconhecer, mas assumir. É uma mulher moderna, que tem um trabalho moderno em uma grande cidade e que fica tão impressionada com os desenhos e a expressão de desalento nos rostos dos indígenas desenhados pelos cientistas que começa a puxar um fio que a levará a Munique em busca de mais informações  sobre aquelas crianças que foram brutalmente retiradas de seu lugar e levadas à uma realidade completamente distinta. Ao mesmo tempo que é uma busca para fora, inclusive para fora do país, Josefa empreende uma busca para dentro, para sua própria constituição tanto física quanto histórica.

Dá para escrever uma tese. Certeza que estou deixando muitos aspectos de fora.

Também dá para comparar por diversos vieses bastante diferentes entre si e com obras das mais variadas. Optamos por falar de duas que tratam da criação de tudo, a partir de cosmogonias diferentes, pero no mucho : Moana e As Crônicas de Nárnia.

As Crônicas de Nárnia

As Crônicas de Nárnia foram escritas pelo escritor C.S. Lewis, nascido em Belfast, Irlanda do Norte, Reino Unido e parça de J.R.R. Tolkien. C.S Lewis foi capaz de criar um mundo sensacional e abordar assuntos paralelos como ninguém. Nárnia não se parece nada com o padrãozinho cultural urbano brasileiro. Tem elementos da Europa mitológica, medieval e moderna e ainda assim Nárnia em si é um mundo ficcional único.

São ao todo sete crônicas. A primeira publicada foi O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950), na sequência da trama essa é a segunda.

Vamos nos ater à primeira crônica seguindo a cronologia do enredo e a sexta a ser publicada: O Sobrinho do Mago (1955).

Esse texto, teve a função de explicar o início de tudo e introduzir alguns dos personagens que aparecem na segunda. Alguns personagens só aparecem em O Sobrinho do Mago, como o Tio André.

Não é o mago do título quem vai criar Nárnia. O mago é o tio André do menino Digory. Ele descobre como ir para um mundo paralelo. A principal característica do tio André é o egoísmo.

Um dia, Digory e sua amiga Polly inventam subir ao sótão da casa dela para ir passando de casa em casa por seus últimos andares supostamente ligados.

Acontece, que no meio do caminho eles param em um lugar que era mobiliado e cheio equipamentos estranhos. Depois de observar, concluem que é o sótão da casa em que Digory vive com os tios. Aquele lugar era proibido para as crianças, era o laboratório do tio André. E outra: esse cômodo não tinha ligação que permitisse continuar a pular para as outras casas.

Alguns anéis brilhantes verdes ou amarelos chamam a atenção das crianças.

Levando os amarelos nos bolsos, elas põe no dedo os anéis verdes e desaparecem, indo parar em um lugar que os deixa letárgicos. Um lugar lindo, cheio de lagoas, todas independentes entre si.

Os dois, depois de pensar e testar algumas coisas, entendem que as lagoas levam a outros mundos. É nessa que vão conhecer a Feiticeira. Depois vão chegar a um lugar que é um nada.

Nesse ponto é que vem o que une, pelo tema da cosmogonia,  O Sobrinho do Mago e O Som do Rugido da Onça.

As crianças, o tio André, a Feiticeira e o cocheiro (vai ter que ler para saber de onde vem o cocheiro), começam a ouvir um lindo canto, que vai aumentando de volume e enquanto essa música é executada começam a surgir árvores, plantas, animais, até que eles percebem que a criatura que canta é um enorme leão. Esse leão nem tenta ataca-los e prossegue cantando até que Nárnia esteja devidamente criada. Então, ele se aproxima dos outros animais e conversa com eles, sendo respondido por todos. Em Nárnia os animais falam. O tempo no planeta Terra passa bem mais devagar que em Nárnia. Enquanto eles vivem dias inteiros naquele novo local, se passam minutos em sua terra de origem. Animais, mesmo os considerados domésticos em nosso mundo, são criaturas tratadas e demandantes de tratamento igual ao dos humanos, pois desempenham as mesmas funções.

Aslam é o nome do leão. Ele tem poderes de criação e outros mais que vão sendo revelados nas próximas crônicas. A única coisa que põe os humanos ligeiramente acima dos outros animais é o fato de que Aslam escolhe seres da nossa espécie para governar Nárnia por ele. Digo ligeiramente, porque o leão sempre estará acima dos governantes. É tipo o leão ser o dono e os humanos os gerentes. A constituição de Nárnia, as regras, os rituais, o modo como se integram todos os elementos e o respeito entre as espécies é lindo de ler.

Outra obra, cujo meio de vida dos personagens me lembrou os indígenas de O Rugido da Onça, foi Moana, filme de animação produzido pela Wall Disney Studios lançado no Brasil em 2017.

Moana é a filha do chefe da tribo que habita a ilha de Motu Nui e está sendo preparada para assumir o lugar do pai. Desde criança Moana entende que tem uma ligação especial com o oceano. Ela era uma escolhida pelo oceano. O pai abomina a ideia de a filha se aventurar em mar aberto. E a avó, mãe dele, incentiva que a neta siga o sonho.

Quando uma praga começa a destruir os recursos naturais da ilha, Moana compreende que precisa ir além da barreira de corais, procurar por Maui, o semi-deus transmorfo que roubou o coração de Te Fiti, que por sua vez é a deusa da criação.

Esse coração é uma pedra que confere a capacidade de criação da deusa. Te Fiti desapareceu ao mesmo tempo que surgiu Te Ka, um monstro furioso que está provocando a tal praga.

Nessa aventura, que se passa nas ilhas da Polinésia, muitas certezas serão questionadas ou mesmo quebradas para dar lugar a novas perspectivas.

Um elemento que me chamou a atenção foi a avó que tinha uma tatuagem de arraia nas costas e a expectativa de se transformar em uma quando falecesse.

Infelizmente não posso contar como exatamente essa arraia e os personagens de O Som do Rugido da Onça se misturaram na minha cabeça, pois seria um baita spoiler, tanto do desenho animado quanto do livro. E essa experiência não merece ser estragada.

Antes de ler O Som do Rugido da Onça, li A Pequena Coreografia do Adeus, de Aline Bei. Quando li “A Pequena”, apelido carinhoso dado pela autora à sua obra, pensei: tem estilo e é um livro realmente digno de um Jabuti.

Aí li “A Onça” e fiquei tão impressionada que passei a torcer para os dois, mas no fundinho entendi que o livro de Micheliny, tinha um Je ne sais quoi, que é raro aparecer.

Enfim, recomendo todas as obras citadas aqui, com uma forte predileção pelos livros. Sempre!

O Som do Rugido da Onça vai te dar outras perspectivas. É daqueles livros que nos deixam melhores como seres humanos depois que os lemos.

VERUNSCHK, Micheliny. O Som do Rugido da Onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

LEWIS, C. S. O Sobrinho do Mago. In: As Crônicas de Nárnia.Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009.

CLEMENTS, Ron & MUSKER, John. Moana: Um Mar de Aventuras. EUA: Wall Disney Studios, 2017.