
Capa do livro Senhor das Moscas.
“- Toque a concha, Ralph.
Porquinho estava tão próximo que Ralph percebia a cintilação da única lente dos seus óculos.
– E a fogueira. Será que ninguém entende?
– Você precisa gritar com eles. E obrigar todo mundo a fazer o que você manda.
Ralph respondeu com a voz cautelosa de quem ensaia um teorema.
– Se eu tocar a concha e ninguém voltar, está tudo acabado. Ninguém mais vai manter o fogo aceso. Vamos viver feito bichos. E nunca mais vão vir resgatar a gente.
– Se você não tocar a concha, em pouco tempo a gente vai estar vivendo feito bicho, de qualquer maneira. Não consigo enxergar o que eles andam fazendo, mas estou ouvindo.”
GOLDING, William. Senhor das Moscas. P.102.
Fenomenal!
Lido a mais ou menos um mês atrás e só agora consegui escrever sobre ele, porque levei um tempo para digeri-lo.
Que livro é esse?
O título de Senhor das Moscas é uma referência a Belzebu, que seria uma junção de duas entidades Baal e Zebdu, um seria o senhor dos trovões e o segundo o das moscas e da pestilência.
Senhor das Moscas é uma distopia? Alguns dizem que sim. Para mim é como uma parábola ou uma quase fábula que usou crianças ao invés de animais. É uma história brutal que representa o comportamento humano em situações de estresse e luta pela sobrevivência, em que as crianças são os personagens, para dar uma suavizada na coisa.

Capa do livro Animal Farm (Fazenda dos Animais)
Por exemplo, A Fazenda dos Animais (ou Revolução dos bichos a depender da tradução), obra genial de George Orwell, usa animais de uma fazenda para representar o desvirtuamento de uma revolução que pretendia dar boa condição de vida a todos aqueles animais até então explorados por humanos e que tomaram a fazenda e passaram a administrá-la. Os animais como personagens foram um recurso inteligentíssimo para contar uma intricada trama política e representar ocorrências reais sem dar nome aos bois (opa! Foram dados nomes aos bois), sem dar nome a personagens humanos reais e realçando todo o horror que o poder absoluto pode acarretar quando concentrado em apenas um indivíduo ou um grupo. Uma das lições é que o poder pode corromper as melhores intenções.
Nesse sentido, quando William Golding usa crianças tendo que sobreviver a uma longa estada em uma ilha até então deserta, ele representa o comportamento humano em geral, com situações do universo infantil, outras levadas a níveis extremos para garantia de sobrevivência e outras de organização e representação política.
Se os personagens fossem adultos, o grau de brutalidade da história seria muito maior. Por outro lado, sendo as crianças improváveis tiranos, isso fez com que a história ficasse num nível de crueza impressionante. Sendo contado do ponto de vista de pessoas inicialmente inocentes, acompanha-se o desenvolvimento do aparato persuasivo e do desenvolvimento delas para se chegar àquelas conclusões e feitos.

Pôster do filme Senhor das Moscas de 1963
Basicamente a trama é a seguinte: um avião deixa muitos meninos à própria sorte em uma ilha deserta. Eles estavam, aparentemente, a caminho de casa. No primeiro dia o impulso é de nadar naquelas águas quentes e límpidas e aproveitar o dia e se divertir, até que percebem que não vão ser resgatados tão cedo. Então surge a necessidade de tomar providências em dois eixos: sobrevivência (comida, água potável e abrigo) e atrair embarcações para resgatá-los.
As crianças eram todas do sexo masculino, muitos eram pequenos, com cerca de 6 anos de idade, e outros poucos eram grandes, sendo o mais velho com doze anos de idade.
Os mais velhos e com maior espírito de liderança são Ralph e Jack. De cara já se percebe a personalidade mais autoritária de Jack, então há uma votação e Ralph vira o líder de todas as demais atividades enquanto Jack vira o líder da caça, posto que havia porcos na ilha e as crianças não poderiam sobreviver só com frutas.
A primeira e mais importante regra imposta por Ralph é a de que eles se dividiriam em turnos para manter acesa, no alto de uma colina, uma fogueira. Essa fogueira faria fumaça suficiente para que navios ou outras embarcações percebessem que eles estavam ali e os resgatasse.
Jack discordava dessa premissa. Entendia que a atividade mais importante era a caça, e para isso precisaria de mais meninos em seu grupo.
Então tem-se início o conflito político que é simplesmente uma das coisas mais geniais que já li. A construção da escalada do conflito é maravilhosa, angustiante e visceral.
Além de A Fazenda dos Animais, que é protagonizada por animais de fazenda, esse livro lembra a estrutura de personagens e trama de um filme de 1976: Quando as Metralhadoras Cospem (título original: Bugsy Malone).

Capa do filme Quando as Metralhadoras Cospem.
Quando as metralhadoras cospem tem o elenco cem por cento infantil e foi vencedor de cinco prêmios Bafta: melhor roteiro; atriz estreante (Jodie Foster); atriz coadjuvante (Jodie Foster); design de produção e melhor som. É possível assistir ao filme inteiro no Youtube. Jodie Foster tinha apenas quatorze anos quando atuou como Talulah, uma showgirl do jazz. É um musical/comédia e a história é sobre os conflitos de gangsters nos Estados Unidos dos anos 1920, mesma época de O Grande Gatsby, que já teve texto aqui. Lembrando que era o período de Lei Seca.
Ou seja, se não fossem as crianças e as metralhadoras que atiram chantilly, o filme seria brutal como qualquer outro filme de gangsters.
As atuações são maravilhosas e as músicas também, com destaque para My name is Talulah cantada por Jodie Foster.
O número de passagens que lembram outras obras ou fatos reais em Senhor da Moscas é bem grande, por isso nos ateremos a apresentar apenas mais um, até para não revelar demais da trama.
Em um dado momento, o líder Ralph começa a se incomodar com a sujeira e o estado de desfazimento de suas roupas rotas. Ele estava com os cabelos enormes, atrapalhando sua vista, já dormia em palha no chão há muitas semanas, comia mal, enfim, estava desprovido de todo o conforto que sua vida na Inglaterra o oferecia. Nesse momento ele reflete sobre como seria maravilhoso se tivesse a oportunidade de ir a um banheiro novamente ou de cortar os cabelos, coisas simples que lhe faziam toda a falta naquele momento.
Em Testamentos, de Margaret Atwood, que também já teve seu próprio texto nesse site, a Tia Lydia, líder das tias no mundo distópico de Gilead, narra como se tornou uma tia. As tias são mulheres encarregadas de manter as Aias cumprindo o papel destinado a elas e de definir os papeis das filhas dos comandantes e das mulheres recrutadas em outros países. Resumindo, o papel das tias e oprimir outras mulheres para que os comandantes tenham seu mundo perfeito.

Capa de Testamentos.
Como as tias se tornavam tias? Bem, uma das fases dessa seleção onde ou você se torna tia ou morre é ficar muitos dias ao relento, sem comer direito, sem beber água, usando um banheiro coletivo em péssimas condições. Ah! Nada de trocar de roupas ou tomar banho.
É depois dessa sessão tortura compartilhada com dezenas de outras mulheres, com todos os cheiros, angústias, menstruações e necessidades das mais elementares, ir ao banheiro e os confortos básicos da vida adquirem novo sentido e valor. Tia Lydia, quando sai do ginásio onde estava presa junto com as outras mulheres e entra em um quarto com cama e banheiro, limpos, ainda que modestos, descreve o prazer de se limpar, comer decentemente, dormir em um colchão de espuma. Essa cena é muito marcante no livro, Atwood fez um excelente trabalho.

Pôster do filme Senhor das Moscas de 1990
Senhor das Moscas não é um livro complexo em termos sintáticos. A escrita é muito fluida. O que torna muito reais as cenas e elas não são triviais. Ao terminar o livro, o leitor tem a sensação de ter se livrado de um engasgo. É um superlivro, recomendado para estômagos fortes.
Essa história foi adaptada para o cinema duas vezes, uma em 1963 e outra em 1990, ambos os filmes se chamam Senhor das Moscas e estão disponíveis na íntegra no Youtube. Se for assistir a apenas um dos dois, recomendo o de 1963, o de 1990 tomou muitas liberdades. No primeiro filme, a essência da história foi preservada.
William Golding foi laureado com o Nobel em 1980, também naquele ano recebeu o Booker Prize pela obra Ritos de Passagem. Se tornou cavalheiro Britânico em 1983, pela rainha Elizabeth II.
GOLDING, William. Senhor das Moscas. Tradução: FLAKSMAN, Sergio. Rio de Janeiro: Alfaguarra, 2014.
ORWELL, George. Animal Farm. Buenos Aires: Biblos, 2010.
PARKER, Alan. Quando as metralhadoras cospem. EUA e Reino Unido: Goodtimes Enterprises, 1976.
ATWOOD, Margaret. Testamentos. Tradução: CAMPOS, Simone. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
HOOK, Harry. Senhor das moscas. EUA: Metro Goldwing Meyers, 1990.
BROOK, Peter. Senhor das moscas. Reino Unido: British Lion, 1963
20/09/2021 at 09:22
Que ótima análise do “Senhor das moscas”, livro que tive a oportunidade de ler no original em inglês e que ressoa no meu ouvido até hoje com a entoação inesquecível: “kill the pig, cut his throat”… O tema de que a civilização é barbárie é, para mim o ponto alto do livro e que, em tempos de identitarismo, nos faz pensar se as crianças deixadas na ilha fossem todas meninas, se o resultado seria muito diferente?
24/09/2021 at 19:04
Não tinha pensado nisso. No que seria da vida na ilha se os personagens fossem meninas. Alguém devia escrever isso rsrs.
Não sei se o resultado seria o mesmo, mas que ia ter uma “Ralph” e uma “Jack”, ah ia.
11/09/2023 at 22:43
verygood the website i like it so much
gostei muito do seu site parabéns