
Capa de O Rei de Amarelo
“Voltei para meu cavalete e acenei para que a modelo reassumisse sua pose. Depois de trabalhar por algum tempo, convenci-me de que estava estragando, o mais rápido possível, o que já havia feito, então peguei uma espátula e raspei a tinta. Os tons de pele estavam amarelados e doentios, e eu não entendia como podia ter pintado matizes tão enfermos em um esboço que antes brilhava com tons saudáveis.
Olhei para Tessie. Ela não havia mudado, e o rubor nítido da sua saúde deu cor a seu pescoço e rosto quando franzi o cenho. (…)
Falei que ela podia descansar enquanto eu passava um pano com aguarrás na área terrível em minha tela, e ela foi fumar um cigarro e ver as ilustrações do Courrier Français.
Eu não sabia se era algo no aguarrás ou um defeito na tela, mas, quanto mais eu esfregava, mais aquela gangrena parecia se espalhar. Penei tentando apagar aquilo, mas mesmo assim a doença se espalhava para outros membros do esboço à minha frente. Alarmado, esforcei-me para detê-la, mas a cor dos seios tinha mudado, e parecia que toda a figura havia absorvido a infecção, como uma esponja absorve água.”
CHAMBERS, Robert W. O Emblema Amarelo. In: O Rei de Amarelo. pg 93.
Livros de horror, não todos, mas os certos, têm o poder de incutir sentimentos e sensações de maneira diferente que dos filmes.
O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, publicado pela primeira vez em 1895, é uma obra que deixou a impressão de que, se houvesse um filme, ele seria aterrorizante, mas que o livro sempre seria perturbador em outro nível. É uma sensação de cautela. Ao revisitar minhas notas para esse texto, foi como se o cérebro dissesse: você já sabe o que vai sentir, então, tem certeza que vai abrir de novo essas notas?
Durante a leitura, essas reticências me não ocorreram. Aliás, o pensamento recorrente era: “isso não dá medo. É ótimo. É estranho. Porém, não dá medo.” Porém, agora que já conheço o conteúdo, o livro representa alguma outra coisa, um sentimento ainda não identificado que incorpora medo em alguma medida. Talvez porque o que agonia, não são monstros, que nossa razão assimilou serem inexistentes, mas os recônditos da mente humana, as possibilidades de enlouquecimento. É o medo da corrosão da psique a que todos estamos sujeitos.
O Rei de Amarelo é um livro de dez contos, onde os quatro primeiros tratam do tema título. Esses contos podem ser lidos separadamente ou em sequência. O que esses eles têm em comum é a alusão a uma peça de teatro chamada “O Rei de Amarelo”. Importa saber que a peça O Rei de Amarelo em si, não existe e não serão apresentados mais do que poucos elementos dela ao longo da obra.
O que se sabe sobre a peça? Tem alguns personagens femininos (Cassilda e Camila) e outros masculinos (o próprio rei); se passa na cidade imaginária de Carcosa; foi proibida em alguns países tendo os volumes impressos sido recolhidos das prateleiras; é construída em dois atos; as pessoas que leem o segundo ato da peça enlouquecem. E acabou. Nada de mais detalhes.
Os quatro contos se chamam: O Reparador de Reputações; A Máscara; No Pátio do Dragão; O Emblema Amarelo.
Chambers coloca easter eggs, que fazem uma muito sútil relação entre um conto e outro. Esses elementos são principalmente personagens citados displicentemente aqui e acolá.
Dos seis contos que não são sobre a peça O Rei de Amarelo, gostei de apenas um chamado Demoseile d’Ys. Também há alguns easter eggs nesses contos que remetem aos contos de O Rei de Amarelo propriamente dito.
Eu preferiria que os textos que excedem ao original de O Rei de Amarelo fossem os textos que inspiraram direta ou indiretamente a Chambers quando compôs aqueles quatro contos. Até porque houve uma certa dificuldade em encontrá-los. E é aí que está o que chamamos aqui de efeito Matrioska: um lugar histórico, inspirou um poema, que inspirou um conto, que inspirou quatro contos, que inspirou uma série de TV. Não é obrigatório ler ou assistir um para entender o outro.
Matrioskas são bonecas tradicionais da Russia, muito famosas pelo mundo todo. São muitas bonecas de tamanhos diferentes. Elas se abrem e uma menor cabe dentro da boneca maior. Então á medida que vamos abrindo as bonecas outras menores vão surgindo.
Depois de ler as notas de rodapé de O Rei de Amarelo, fui obrigada, por curiosidade irrefreável a procurar o fio que chegou a Chambers e o extrapolou.
Vamos começar da Matrioska grande e ir despindo a boneca até chegar à matrioskinha, aquela pequenininha que não se divide, ou pelo menos não até que se prove o contrário.
Sendo os primeiros vestígios de ocupação humana na região datados do período Neolítico, dá para perceber que a primeira referência vai realmente longe na História. Se trata da cidade francesa de Carcassonne.

Carcassonne, sul da França
Carcassonne é uma cidade formada de duas cidadelas, sendo uma murada, cuja construção do muro e castelo remontam ao século IX, embora as primeiras construções tenham sido erigidas no século II a.C. pelo império romano.
Carcassonne é a tombada como patrimônio histórico da humanidade e é considerada a cidade medieval mais bem preservada da Europa (E isso é muita coisa!). No século XIII, um movimento religioso cristão nomeado Catarismo foi fortemente reprimido por cruzados a pedido do papa Inocêncio III. Esse movimento que tinha a simpatia dos governantes da cidade, pregava a existência de dois deuses, um bom (o do novo testamento) e um ruim (o do velho testamento). Essa linha de raciocínio sobre os textos bíblicos causou preocupação ao Papa Inocêncio III, que tentou dissolver o movimento primeiro por meio de diplomacia e depois pela força.
Outra informação interessante está na origem do nome Carcassone. Dizem que enquanto era governado pela Dama de Carcas, a cidade sofreu um cerco, que durou tempo suficiente para esgotar os mantimentos de ambos os exércitos, o que atacava e o que resistia. Nesse ponto, a governante teria lançado aos homens que cercavam os muros um porco recheado com cereais, dando a impressão de que dentro dos muros ainda havia abundância de mantimentos, o que fez com que o exército para além dos muros desistisse do cerco. Então fez-se soar trombetas anunciando o fim do conflito e o nome Carcassonne seria uma junção de Carca, por causa da Dama de Carcas que levou o seu povo à vitória, e à palavra son que em francês significa som, em alusão ao às trombetas que anunciaram boas novas.
Pois é… Carcassonne é também o nome de um poema do compositor francês Gustave Nadaud (1820–1893). Nele, uma pessoa que está com sessenta anos de idade fala de sua frustração por nunca ter estado em Carcassonne. A cidade de Carcassonne representa os sonhos, os desejos. Representa o que aquele homem que trabalhou a vida inteira, cumprindo a ferro e fogo suas obrigações, queria ter feito por si em termos de diversão, de satisfação de interesses pessoais.
O eu lírico fala como se não lhe fosse mais possível realizar esse sonho, como se Carcassonne representasse o lado bom da vida e ele já não pudesse desfrutar disso.
O poema Carcassonne lembra bastante Vou-me embora para Pasárgada, do brasileiro Manuel Bandeira. É a expectativa de um lugar onde os desejos se realizariam, onde não há dor ou sofrimento.

Gustave Nadaud
Os sonhos nos versos de Nadaut em relação a Carcassonne me pareceram ter envelhecido melhor que os de Bandeira em Pasárgada. Mas o sentido geral é muito semelhante. São homens fazendo projeções de realizações pessoais em um lugar em que seriam libertados ou pelo menos teriam um alívio do enfado e dos sofrimentos da vida.
E onde está Carcassonne, o poema, em nossa Matrioska? Bem, especula-se que essa poesia inspirou Ambrose Bierce a escrever o conto de horror Um Habitante de Carcosa. Carcosa, que seria uma cidade puramente imaginária, teria seu nome inspirado na cidade de Carcassonne idealizada por Nadaud.
O conto em primeira pessoa trata de um homem fazendo observações em um lugar isolado. Parece ter acordado naquele lugar, não fica claro se é por uma rápida perda de consciência ou por ter desmaiado. Fala das coisas que vê, algumas soam ligeiramente sobrenaturais, fala de pedras, da vegetação.
Então dá a informação de que está doente, da deterioração de sua condição mental, da sua debilidade física e de sua família lidando com ele naquele contexto. E vai rememorando e narrando o que vê, enquanto tenta chegar a Carcosa, que ele chama de célebre cidade e julga estar longe de onde está agora. E é nesse ambiente medonho e estranho que esse personagem chegará a descobertas e conclusões surpreendentes.
Agora, chegamos à boneca que representa O Rei de Amarelo dentro desse fio a que estamos chamando de Matrioska.
A mitologia que envolve o rei de amarelo vem sem dúvida de elementos apresentados em Um Habitante de Carcosa, visto que Carcosa nunca existiu, tendo sido criada por Ambrose Bierce.
Além do nome da cidade, Chambers também pegou emprestada a aura de mistério do conto, aquela sensação de estar tateando o desconhecido. Também pega para si a questão da saúde mental do personagem de Um Habitante de Carcosa, para constituir os perfis dos personagens que serão enlouquecidos pela leitura da peça O Rei de Amarelo. Essa é a penúltima boneca.

Cartaz da primeira temporada de True Detective
Muitas pessoas chegaram ao livro O Rei de Amarelo, depois de ter contato com a nossa última Referência, que também está fartamente comentada em blogs ou vídeos na internet: a primeira temporada de True Detective, série policial da HBO, iniciada no ano de 2014.
Só assisti a primeira temporada, porque ouvi dizer que ela aludia a O Rei de Amarelo. É uma série muito interessante, apesar de policial não ser meu gênero favorito, estou até considerando assistir às outras temporadas, que são histórias independentes da primeira.
Nessa primeira, dois detetives, Rust Cohle e Martin Hart, interpretados respectivamente por Mathew McConaughey e Woody Harrelson, tentam desvendar um assassinato. À primeira vista pareceu aos investigadores um sacrifício satânico. Porém, o desenrolar da investigação esbarra em uma seita que cultua uma entidade chamada o rei de amarelo e se reúne em um lugar chamado por eles de Carcosa.
O que há em comum entre Um Habitante de Carcosa, O Rei de Amarelo e True Detective é a loucura humana. Em todas essas tramas há a loucura, seja ela uma deterioração natural das faculdades mentais ou induzidas por uma seita ou uma peça de teatro.
A primeira temporada de True Detective é toda filmada com um filtro amarelado e em muitas locações escuras.
A cor amarela foi para a Belle Époque, e ainda é em certos contextos, usada representar o mal, a decadência, a decrepitude. True Crime, O Rei de Amarelo e, o já comentado nesse site, O Papel de Parede Amarelo, são exemplos do uso da cor amarela ou de tons amarelados para denotar horror, deterioração mental, doenças, raciocínios sombrios e tortuosos.
O Rei de Amarelo foi um livro diferente do que já tinha lido e o pós leitura revelou que é daquelas histórias que ficam voltando aos pensamentos do leitor por uns dias. Dá para entender o motivo de ter influenciado tantos escritores.
A influência e a presença de elementos de O Rei de Amarelo em outras obras de terror ou mistério, é notada especialmente em produções mais tardias de H. P. Lovecraft. O texto introdutório dessa edição da Intrínseca, cita que autores como Neil Gaiman, Stephen King e Robert Shea já usaram elementos de O Rei de Amarelo em suas obras.
CHAMBERS, Robert W. O Rei de Amarelo. Tradução: BARREIROS, Edmundo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
NADAUT, Gustave. Carcassonne.
BIERCE, Ambrose. Um Habitante de Carcosa.
PIZZOLATO, Nic. True Detective. Estados Unidos: HBO, 2014 – atual.
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