O Lugar

“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha. Afinal, essa maneira de viver constituía, para nós, a própria felicidade, mas era também a barreira humilhante de nossa condição (consciência de que “em casa as coisas não estão lá tão bem assim”). Eu gostaria de falar ao mesmo tempo dessa felicidade e de sua condição alienante. Sensação de que fico oscilando de um lado para o outro dessa contradição.

Perto dos cinquenta anos, ainda com todo vigor, a cabeça erguida, o ar preocupado, como se temesse que a foto ficasse ruim, está vestindo um conjunto, calça escura, jaqueta clara por cima de uma camisa e gravata. Foto tirada em um domingo, pois durante a semana ele usava o macacão azul-escuro. Seja como for, as fotos eram sempre tiradas aos domingos, tínhamos mais tempo e todos se vestiam melhor. Estou ao lado dele, com um vestido de babado, os dois braços esticados no guidom da minha primeira bicicleta, um pé no chão. Uma das mãos dele está solta e a outra na cintura. Ao fundo, a porta do café aberta, as flores no parapeito da janela e, debaixo dela, a placa de licença para vender bebida alcoólica. Gostávamos de tirar fotos com os pertences que nos enchiam de orgulho: o café, a bicicleta, mais tarde o Citroën 4cv, no qual ele apoia a mão, levantando um pouco, com esse gesto, o casaco. Em nenhuma foto ele aparece sorrindo”

Annie Ernaux. O Lugar.

 

Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura de 2022. Merecido?

Confesso que já tinha visto os livros dela na prateleira das livrarias, achei lindas as capas e o projeto gráfico da Fósforo Editora, peguei na mão e dei uma olhadinha, mas não tinha comprado. Se não tinha comprado, não tinha lido.

Aí, veio o Nobel. Pensei, vou comprar um para ver qual é a dela.

Comprei O Lugar, que foi o primeiro livro que fez de Annie Ernaux uma escritora de sucesso na França. Que coisa mais linda! Intimista, preciso, sem excessos de nenhuma espécie. Só o necessário para provocar todas as reflexões possíveis, despertar remorsos e te fazer se perdoar e perdoar seus familiares. Uma coisa maravilhosa. Catártica.

Fiquei desesperada para ler os outros livros dela que têm tradução para o português brasileiro.

O Lugar é a história do pai de Annie. A capa da edição brasileira é uma foto dele ao lado de seu Citroën.

Quem não lembrar do próprio pai em pelo menos uma passagenzinha tem que voltar e ler de novo. Não deve ter feito direito a leitura.

A história vai desde o início do século XX e segue por uns 80 anos, passando pelo nascimento da autora ali pelos anos 40. O foco, como já foi dito, é o pai. Um homem simples. Dono de uma mercearia/café, que fazia dinheiro para o necessário em casa. Sem luxos.

Ela vai descrever o cotidiano da família, o esforço para que ela estudasse e quebrasse o ciclo de pobreza, o modo simples com que os pais falavam em um dialeto chamado patoá e como se esforçavam para falar em francês, pois tinham vergonha daquela linguagem do interior. Dos comércios que atrapalharam a prosperidade do negócio da família. De como queriam ser e o que conseguiram ser. Da preocupação do pai em não envergonhar a filha e de como a filha se sentia em relação a isso.

Não há muito o que dizer. Não é um livro que se descreva em sinopse. O melhor conselho que posso dar em relação a O Lugar é, simplesmente: leia e tire suas próprias conclusões.

Achei mais que merecido esse Nobel pela originalidade da autora e pelo estado em que esse livro curtinho me deixou.

Com base nessa única experiência, posso dizer que a escrita dela nessa obra é uma mistura de Proust com Elena Ferrante e Juan Rulfo ou Nicolai Leskov.

Proust pela autobiografia ficcional, pela cultura francesa lindamente descrita, pela óbvia influência na escolha de palavras. Elena Ferrante pela capacidade de descortinar sentimentos pouco nobres com precisão cirúrgica, sem fingir que aquele nível de humanidade passa a largo de nossa pretensa nobreza. Todo o tempo o leitor tem aquela sensação de “isso é feio, mas eu já senti”.

Elena Ferrante, em sua obra mais vendida e conhecida gastou quatro volumes de quatrocentas páginas cada, para construir duas das melhores personagens que eu já li: Lenu e Lila. Estou falando da Tetralogia Napolitana, ou como é mais conhecida essa série de quatro livros: A Amiga Genial (nome do primeiro livro da série). Ferrante tem outros livros curtos e também sensacionais, mas estamos falando dos sentimentos esmiuçados na série de quatro livros. Meu Deus, que capacidade de enfiar o dedo no olho do leitor!

E Proust? Vinte anos para escrever sua única obra: Em busca do Tempo Perdido. Uma série de sete livros, que a depender da diagramação pode chegar a quatro mil páginas fácil.

Provavelmente, Annie Ernaux discordaria de mim quanto a essa comparação com Proust. Inclusive porque ela mesma menciona o estranhamento que lhe causava ler Proust e perceber que ele escreveu sobre a mesma época em que o pai viveu e que seu progenitor teria levado uma vida praticamente medieval se confrontada com a realidade abastada do outro.

Quando digo que vejo semelhanças estou me referindo ao lirismo, à escrita e à França. Obviamente, dei conta de perceber que se tratavam de regiões e de classes econômicas absolutamente distintas.

Mas, se tem um aspecto em que Ernaux não tem nada a ver nem com Proust nem com Ferrante, é a capacidade de síntese.

Ernaux é econômica. Ela cria a ferida emocional no leitor com apenas umas poucas páginas. O Lugar tem apenas setenta e duas páginas. Seu livro mais longo, Os Anos, não passa de duzentas e cinquenta. E aqui chegamos a um impasse.

Seria a bibliografia de Annie Ernaux uma série, considerando que alguns dos livros são o que estamos aqui chamando de autobiografia ficcional ou seriam livros independentes?

Pedro Páramo

Acredito que agrupá-los e tratá-los como sequência não desmereceria a capacidade de síntese da autora. O Lugar é um livro que tem só o osso. Só o necessário para se manter de pé causando os efeitos que causa. Assim como foi capaz de sintetizar Juan Rulfo em Pedro Páramo, seu único romance, e Leskov, considerado por Walter Benjamin um escritor exemplar no quesito cortar o superficial, neste site já comentamos Lady Macbeth do Distrito de Mitzensk.

Tanto o mexicano quanto o russo, escreveram histórias curtas, complexas e enxutas. Obras primas, que influenciam autores por todos os cantos do mundo até hoje.

Annie deu conta de tudo isso: profundidade, intimidade, tom confessional e síntese. Achei perfeito! Não tenho nada a criticar.

 

ERNAUX, Annie. O Lugar. Tradução: GARCIA, Marília. São Paulo: Fósforo, 2022.

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. Tradução: PY, Fernando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

FERRANTE, Elena. Tetralogia Napolitana (A Amiga Genial). Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014-2017.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017.

LESKOV, Nikolai. Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.Tradução: BEZERRA, Paulo. São Paulo: Editora 34, 2017.