“– Agora, não se trata disso. Escute bem e lembre: tome estes setecentos florins italianos aqui e vá jogar, ganhe para mim, na roleta, o máximo que puder; agora, estou precisando muito de dinheiro, a qualquer custo.
Dito isso, ela chamou Nádienka e seguiu para o cassino, onde encontrou todo o nosso grupo. Já eu tomei a primeira vereda que apareceu à esquerda, pensativo e admirado. A ordem para eu ir jogar na roleta me deu a sensação de uma pancada na cabeça. Que estranho: eu tinha tantas coisas para me preocupar e, em vez disso, eu me afundava na análise das impressões dos meus sentimentos em relação a Polina. Na verdade, nessas duas semanas de ausência, foi mais fácil para mim do que está sendo agora, no dia de meu regresso, embora na viagem eu tenha sofrido como um louco de tanta saudade, tenha andado para lá e para cá, como se algo me queimasse, e até em sonhos, a todo momento, eu a via na minha frente. Certa vez (aconteceu na Suíça), peguei no sono no trem e parece que falei em voz alta com Polina, o que fez rir todos os passageiros que viajavam comigo. E mais uma vez, agora, me fiz a pergunta: será que eu a amo? E, mais uma vez, não fui capaz de responder, ou seja, melhor dizendo, de novo, pela centésima vez, respondi para mim mesmo que eu a odeio. Sim, eu a achei detestável. Há momentos (exatamente, toda vez, no final de nossas conversas) em que eu daria metade da minha vida para estrangular Polina! Juro, se houvesse a possibilidade de enfiar no seu peito, bem devagar, uma faca afiada, eu, é o que me parece, empunharia essa faca com satisfação. Entretanto, juro, por tudo o que há de sagrado, que se em Schlangenberg, nessa pointe tão na moda, ela de fato me dissesse: “se jogue lá embaixo”, eu me jogaria na mesma hora, e até com satisfação. Sei disso. De um modo ou de outro, a questão teria de ser resolvida. Tudo isso, Polina compreendia de forma admirável, e a ideia de que tenho inteira certeza e clara consciência de que ela é inacessível para mim, de que é absolutamente impossível a realização de minhas fantasias — essa ideia, estou convencido, lhe proporciona um prazer extraordinário; do contrário, como é que ela, cautelosa e inteligente como é, poderia se permitir tantas intimidades e franquezas comigo? Parece-me que, até agora, ela olhava para mim como uma imperatriz da Antiguidade que se despia na frente de seu escravo, pois não o considerava um ser humano. Sim, muitas vezes ela não me considerava um ser humano…
No entanto, afinal, ela havia me incumbido de uma missão: ganhar na roleta, a todo custo. Eu nem tive tempo de analisar para que e com que rapidez era preciso ganhar, e que novas reflexões estariam brotando naquela cabeça que não parava de fazer contas. Além do mais, nessas duas semanas, obviamente, havia se acumulado uma profusão de fatos novos, dos quais eu ainda não tinha noção. Tudo isso, era preciso adivinhar, depreender, e o mais rápido possível. Mas agora, por enquanto, eu não tinha tempo: precisava tomar a direção da roleta.”
Fiódor Dostoiévski. O Jogador.
Fiódor Dostoievski despensa apresentações, né?
O Jogador é um livro curto, escrito depois de Crime e Castigo, que foi redigido em um mês: outubro de 1966. Creem? Ao que parece Dostoiévski tinha umas dívidas e andava precisando de um extra. Apenas um rapaz russo sem dinheiro no banco? Não. Dostô era ele mesmo um viciado em jogos.

Fiódor Dostoiévski
Confesso que ainda não li Crime e Castigo, embora saiba em linhas gerais do que se trata. Li outras coisas menores como Noites Brancas ou Sonho de um Homem Ridículo. Tudo muito sério.
O Jogador, por sua vez, é uma comédia. Dei gargalhadas lendo esse livro. Pensei em várias coisas. É claro que é um mergulho na decadência humana, tem personagens que intrinsecamente são diferentes mas orbitam em torno da mesma vontade de enriquecer e do cassino de Roletemburgo.
Roletemburgo é uma cidade imaginária alemã que vive do turismo dos jogos de azar. O Cassino da cidade é frequentado diariamente por pessoas que querem só se divertir, outras que jogam “profissionalmente” e são habitués, outras que ficam à espreita para tirar vantagem de jogadores inexperientes e ingênuos.
Existe o jogo das aparências naquela sociedade reletemburguense e as pessoas que querem se casar por questões financeiras.
Esses tipos estão quase todos representados em um grupo de hospedes permanentes de um hotel: o genereal, seus dois filhos, sua irmã e sua enteada Polina (russos); mademoiselle Blanche, sua mãe madame la Contesse, seu primo De Grieux (franceses); Mister Astley (inglês).
O narrador e personagem principal é o também russo Alexis Ivânovich, que é preceptor dos filhos do general e tem uma propensão para as roletas.
Alexis é apaixonado por Polina Aleksándrovna, ela não é uma moça refinada, é linda, é misteriosa e usa de seus encantos para conseguir favores de Alexis. Polina por sua vez tem uma relação complicada com De Grieux e uma amizade com Mr. Astley. Tanto o inglês como o francês parecem ser seus pretendentes e apesar de amá-la Alexis entende que o melhor negócio para ela seria optar por Mr. Astley.
O leitor vai ter que ler e ir saboreando as revelações e reviravoltas do livro para ir entendendo quem é quem ali naquele ninho de cobras. Todos têm suas tretas, mas que tretas cada um tem? Quais os interesses desses personagens? Haverá algum honesto nesse meio? Digo que sim a essa última indagação, porém não revelarei quem.
O General está falido. Aguarda o falecimento da avó, senhora Antonida Vassilievna, que reside em Moscou e é uma senhora muito rica. Recebeu uma carta há seis meses dizendo que a senhora Antonida estava doente, replicou tempos depois perguntando se já tinha morrido e aguardava a resposta. Essa perspectiva da herança seria a salvação não só do general, mas também de Polina, que teria direito a uma parte que pretendia usar como dote para se casar.
É um show de reviravoltas. Cada um no seu jogo, analisando as variáveis, traçando estratégias, passando a perna uns nos outros. Vão ter que ler para saber como se saíram em seus intentos.
Tem uma reflexão sobre os russos e suas desvantagens em relação aos franceses que é muito engraçada.
Um livrinho muito bom, leve, divertido. Amei!
Embora existam algumas adaptações de O Jogador, não fiquei com vontade de ver nenhuma delas. Aceito indicações.
Guy Richie, nunca te pedi nada. Pensa nesse livrinho como roteiro de um filme seu.
Esse livro tem a mesma vibe de filmes como Snatch: Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.
É aquele clima de um grande jogo, com regras, burlas e interesses ocultos que dirigem as ações e as manipulações de cada jogador. E assim como em O Jogador o jogo acontece em uma mesa e continua fora dela. Nem só de fichas, roletas e baralhos essas tramas são feitas, sendo justamente aí que residem suas genialidades.
Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (1998) causou em mim um superimpacto. Causou no mundo do cinema um blasterimpacto. A estréia de Guy Ritchie como cineasta trouxe a ele reconhecimento imediato, alguns prêmios comparações com os irmãos Coen e Quentin Tarantino (e parece mesmo uma junção do estilo deles batidos no liquidificador) e ainda conseguiu ser bem original.
Esse filmaço está disponível no Lionsgate (antigo Starzplay), na Amazon Prime e no Globoplay.
São oito histórias independentes que se cruzam formando uma confusão gigantesca. Assim como Alexis só percebeu em que buraco estava a família do general depois de ir se envolvendo com os outros moradores do hotel, os quatro amigos que iniciam a primeira treta do filme não faziam ideia do tamanho da arapuca em que entraram quando resolveram juntar suas economias e apostar em uma mesa de poker clandestina da cidade de Londres.
Nem preciso dizer que eles perderam feio esse jogo. Se perderam ou foram enganados aí é outra conversa. Tem que ver o filme.
Só para dar o gosto: eles terão uma semana para levantar 500mil libras esterlinas e quitar sua dívida de jogo, a cada dia passado perderam um dedo da mão; o dono da banca clandestina de jogo é um gangster carniceiro e vai aparecer outro gangster carniceiro, plantadores de maconha e ladrões de galinha…. aff! Sem limites! Tudo perfeitamente costurado no final. Até Sting apareceu atuando nesse filme.
Antes de ser cineasta de longas metragens, Guy Ritchie era produtor de videoclipes para importantes músicos. Dá para perceber a influência do universo dos videoclipes na obra de cinema dele. Aliás… as trilhas sonoras… meo DEOS… sensacionais.
Pronto. Logo de cara Guy Ritchie emplacou um excelente filme. Aí arrumou um orçamento maior, aprimorou a fórmula e em 2000 lançou Snatch: Porcos e Diamantes (o título original é simplesmente Snatch. Devia ter continuado assim sem o complemento.).
Tem gente que prefere o primeiro e tem gente que prefere o segundo. Eu gosto dos dois igualmente. Tô nem aí para as semelhanças entre eles e nem para a semelhança com outros filmes de outros diretores, como os já mencionados Tarantino e os Coen e do Trainspotting de Danny Boyle.
A primeira treta: um ladrão de diamantes rouba “O Diamante” (uma pedrona gigante) e tem que levar essa belezinha de Londres para Nova York para seu chefe. Mas… uma vez no Reino Unido, esse senhor conhecido como Franky Quatro-Dedos (Benício Del Toro), resolve fazer uma fezinha em um ringue clandestino de boxe. Aí vai ter gente p roubar o diamante, outros apostadores nas lutas, gangsteres que jogam corpos para os porcos comerem e vira um mafuá dos infernos.
O elenco de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes está em peso de novo em Snatch. Alguns acréscimos merecem nota, como Benício Del Toro e Brad Pitt (que faz um boxeador cigano e é para mim o melhor personagem desse longa).
Uma pequena crítica a Guy Ritchie nesses dois filmes: cadê as personagens femininas? Dostoiévski lá em 1826, criou Polina, Blanche e Antonida Vassilievna, que não devem nada aos personagens masculinos em O Jogador.
É isso, se gostar de O Jogador, vai de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e, se gostar desse filme, vai gostar de Snatch.
Delicinha. As três obras nos dão momentos ótimos de gargalhada nervosa.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. O Jogador. Tradução: FIGUEIREDO, Rubens. São Paulo: Penguin-Companhia, 2017.
RITCHIE, Guy. Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. UK: Universal Studios, 1998.
RITCHIE, Guy. Snatch: Porcos e Diamantes. UK: Columbia Studios, 2000.
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