
O Hobbit
“Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca desagradável, suja e úmida, cheia de restos de minhocas e com cheiro de lodo; tampouco uma toca seca, vazia e arenosa, sem nada em que sentar ou o que comer: era a toca de um hobbit, e isso quer dizer conforto.
A toca tinha uma porta perfeitamente redonda como uma escotilha, pintada de verde, com uma maçaneta brilhante de latão amarelo exatamente no centro. A porta se abria para um corredor em forma de tubo, como um túnel: um túnel muito confortável, sem fumaça, com paredes revestidas e com o chão ladrilhado e atapetado, com cadeiras de madeira polida e montes e montes de cabides para chapéus e casacos – o hobbit gostava de visitas. O túnel descrevia um caminho cheio de curvas, afundando bastante, mas não em linha reta, no flanco da colina – A Colina, como todas as pessoas num raio de muitas milhas a chamavam -, e muitas portinhas redondas se abriam ao longo dele, de um lado e do outro. Nada de escadas para o hobbit: quartos, banheiros, adegas, despensas (muitas delas), guarda-roupas (ele tinha salas inteiras destinadas a roupas), cozinhas, salas de jantar, tudo ficava no mesmo andar, e, na verdade, no mesmo corredor. Os melhores cômodos ficavam todos do lado esquerdo (de quem entra), pois eram os únicos que tinham janelas, janelas redondas e fundas, que davam para o jardim e para as campinas além, que desciam até o rio.
Esse hobbit era um hobbit muito abastado, e seu nome era Bolseiro”
TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit: ou lá de volta outra vez. p .13.
J. R. R. Tolkien, escreveu para seus netos muitas histórias. Algumas obviamente infantis como Sr. Boaventura e outras mais complexas e com potencial para agradar adultos que curtem boas aventuras. Esse segundo caso se aplica a O Hobbit.
Algumas pessoas podem se chatear quando consideramos O Hobbit como literatura infanto-juvenil, como já vi alguns comentários na internet, mas é fato que O Hobbit (1937) foi pensado para os netos do autor e é uma prévia de uma das sagas mais celebradas no mundo da literatura: O Senhor dos Anéis (1955).
O personagem principal é uma criatura mítica da espécie dos hobbits, que vai ajudar anãos a recuperarem extenso tesouro roubado por um dragão, Smaug.
Como já expliquei em outro texto, essa grafia está correta: anãos. Tolkien a usa para diferenciar seus personagens mágicos dos humanos. Além dos anãos também fará parte do time fixo de aventureiros o mago Gandalf.
Aliás, foi Gandalf que meteu nosso Hobbit, Bilbo Bolseiro, nessa enrascada/aventura.
É a típica jornada do herói.
Bilbo vive em sua casa confortável e pacata junto com os outros hobbits e um dia Gandalf bate a sua porta e o convoca para uma missão. Ele diz não.
No dia seguinte, anãos esfomeados aparecem naquele endereço outrora pacato e as coisas acontecem de um jeito que Bilbo acaba topando auxiliá-los.
Hobbits são criaturas ainda menores que os anãos e dotadas de menos força física. Então em que diabos Bilbo poderia contribuir com os outros doze anãos e um mago? Gandalf entende que o outro lado da família de Bilbo, os Tûk, eram aventureiros, além do mais os hobbits são silenciosos, astutos e ágeis, excelentes gatunos. O que poderia ser útil para os anãos brutos e barulhentos.
Juntos, eles seguem e fazem paradas na cidade dos elfos, sem querer na caverna dos gobelins, depois junto ao homem/urso Beorn, elfos da floresta, homens e (ufa!) a caverna ocupada pelo dragão. Tecnicamente, não é bem uma caverna, mas uma mina, cavada e construída por anãos. Ancestrais desses anãos foram reis sob a montanha. E essa geração pretende que sejam novamente os anãos os governantes da montanha.
Em pagamento, Bilbo receberia um catorze avos do tesouro recuperado. No caminho ele ganhou, ou melhor, roubou uma coisinha que fez toda a diferença nas ações desses aventureiros: o anel. Encontrado por acaso, com dono identificado (Golum) e larapiado sem dó pelo hobbit gatuno.
A saga de Bilbo com os anãos é a pura fórmula da jornada do herói. O herói começa não querendo, acaba convencido, se arrepende, passa maus bocados, entra na batalha, o time começa ganhando, acontece uma coisa inesperada e grandiosa que faz o time começar a perder e aí como um milagre eles se recuperam a tempo de vencer a batalha.
Por que essa fórmula tão batida ainda hoje gera tão boas histórias? Porque somos humanos e gostamos de heróis e de histórias que encham nossos coraçõezinhos de esperança na vitória do bem. E também porque teorias literárias dão conta de que só existem 36 possibilidades de roteiro, o que faz a diferença é como preencher esse roteiro.
Cara, é a terra média! Tem detalhes escritos em runas nesse livro, tem elfos, tem uma das descrições mais interessantes de espaços e cenários de todas logo na abertura do livro e é belamente escrito.
Quase todos os desenhos da Disney seguem esse padrão. Vamos usar dois exemplos de jornadas do herói que são sensacionais cada um a seu modo: Esquadrão Relâmpago Changeman e Valente.
Changeman fez muito parte da minha infância. Meu primo Rafael tinha as máscaras e a gente brincava muito de changeman. Ele era sempre o Change Dragon e as meninas sempre queriam ser a Change Mermaid, porque a Phoenix, que era a outra mulher, era mais apagadinha.
Foram 55 episódios produzidos entre 1985 e 1986, que foram exibidos à exaustão pela extinta TV Manchete. Eram cinco heróis cujos nomes eram precedidos pela palavra change: Dragon, Pegasus, Griffon, Mermaid e Phoenix. Eles eram adolescentes comuns que mudavam de uniforme e iam combater os monstros e outros vilões comandados pelo líder da estrela Gozma, Senhor Bazzo.
Vamos ao rorteiro de todos, todos, todos os episódios em apenas um parágrafo: os maus criavam um monstro para destruir Tóquio, então os Changeman eram avisados e se preparavam para o combate. Eles eram destemidos e grandes lutadores, também tinham veículos e armas especiais. Eles começavam a luta perdendo, depois destruíam o monstro, aí um ser da estrela Gozma, chamado Gyodai era convocado para usar seus poderes e chegava gritando: “Gyodai daidaidaidai”. O monstro ressuscitava com 10 vezes o tamanho original. Então, o supermonstro saia destruindo Tóquio ainda com mais eficiência. Quando tudo estava perdido os Changeman gritavam: “Change Robô!” E vinha um robô gigante. Na cabeça dele cabia os cinco heróis confortavelmente sentados. O robô lutava contra o monstro anabolizado por Gyodai e salvava o mundo.
É sério. Todos os episódios eram assim. E a gente amava!
Já tratamos de um herói masculino (Bilbo Bolseiro), de um grupo de heróis com meninos e meninas (Changeman) e agora vamos à uma heroína: Merida.
Valente (ou Brave, título original), é uma animação da Diney/Pixar. Ela é uma princesa rebelde, livre, excelente arqueira e, segundo as tradições medievais escocesas, estava em idade de se casar para manter a aliança entre os clãs da região. A parada é que ela não queria se casar, pelo menos não com aqueles mancebos que lhe foram apresentados como opção.
Merida vai brigar com sua família e nesse processo de tentar se livrar do casamento ela acha uma feiticeira na floresta que promete fazer um encanto para mudar a ideia de sua mãe. Era apenas a mãe, Elinor, comer um bolinho.
O plot da história é que a mãe se transforma em urso. A tal da feiticeira fazia isso da vida, transformava pessoas em urso para que elas fizessem uma jornada interior e resolvessem suas questões. O problema maior é que não tendo sucesso na tal da reforma íntima até o próximo nascer do sol os enfeitiçados se tornariam ursos para sempre.
Recapitulando: o problema de Merida é mudar a cabeça da mãe, ela consegue um feitiço que lhe promete esse resultado, a mãe cai na conversa dela e vira um urso, Merida se arrepende e tenta consertar a caca a todo custo. A coisa vai se complicando muito porque o pai dela odeia ursos. Um urso enorme e famoso na região, conhecido como Mor’du, tinha arrancado uma perna dele tempos atrás.
Então a batalha começa sendo perdida, aí chega o ursão Mor’du do nada e isso une os homens que queriam matar a ursa/mãe da Merida, a Merida e a própria ursa Elinor e eles derrotam o inimigo e ainda desfazem a mandinga.
Outra coisa que Valente tem em comum com O Hobbit é o urso. Um dos personagens que mais ajudou a trupe do Bilbo a vencer o dragão foi Beorn. Que era um homem de dia e se transformava em urso a noite. Esse personagem foi bastante útil tanto em sua forma humana quanto na forma ursa.
Sobre o filme O Hobbit, dividido em três partes – Uma Jornada Inesperada, A Desolação de Smaug, A Batalha dos Cinco Exércitos – lançadas respectivamente em 2012, 2013 e 3014: é visualmente lindo, a história é interessante, mas não quis ver de novo para escrever detalhadamente sobre ele aqui porque é demasiadamente longo para uma adaptação de uma obra de trezentas páginas. Acabou ficando chato. Uma coisa é partir uma saga em três filmes quando elas advém de três livros que somados têm 1202 páginas outra é esticar à exaustão uma história curta para render bilheteria por três anos seguidos. Achei bonito esteticamente, mas chato por ser demasiado longo. Cenas eternas de luta para encher linguiça.
Enfim, não tem problema usar a fórmula do herói desde que a execução seja interessante. Outras tantas jornadas do herói serão contadas por todo o sempre agradando milhões de pessoas.
TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit: ou lá de volta outra vez. Tradução: LOPES, Reinaldo José. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019.
JACKSON, Peter. O Hobbit (Uma Jornada Inesperada, A Desolação de Smaug, A Batalha dos Cinco Exércitos). Nova Zelândia & EUA:Warner Bros. Pictures, 2012-2014.
HORI, Nagafumi. Esquadrão Relâmpago Changeman. Japão: Toey Company, 1885-1986.
CHAPAMAN, Brenda & ANDREWS, Mark. Valente. EUA: Walt Disney Motion Pictures, 2012.
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