O Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias

O sr. Prosser sentiu seu rosto ficar vermelho ante os sorrisos irônicos dos operadores do trator.

Apoiou o peso do corpo numa das pernas, depois na outra, mas sentiu-se igualmente desconfortável com as duas. Era óbvio que alguém havia sido terrivelmente incompetente. E ele pedia a Deus que não fosse ele.

— O senhor teve um longo prazo a seu dispor para fazer quaisquer sugestões ou reclamações, como o senhor sabe  — disse o Sr. Prosser.

— Um longo prazo? — Falou Arthur.  — Longo Prazo? Eu só soube dessa história quando chegou um operário na minha casa ontem. Perguntei a ele se tinha vindo para lavar a s janelas e ele respondeu que não, vinha para demolir a casa. É claro que não me disse isso logo. Claro que não. Primeiro lavou umas duas janelas e me cobrou cinco pratas. Depois é que me contou.

— Mas Sr. Dent, o projeto estava à sua disposição na secretaria de obras há nove meses.

— Pois é. Assim que soube fui lá me informar, ontem à tarde. Vocês não se esforçam muito para divulgar o projeto não é verdade? Quer dizer, não chegaram a comunicar as pessoas nem nada.

— Mas o projeto estava em exposição.

— Em exposição? Tive que descer ao porão para encontrar o projeto.

— É no porão que os projetos ficam em exposição.

— Com uma lanterna.”

ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. In: Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias: A trilogia de cinco em um único volume. p. 25.

 

Essa semana, esta pessoa que vos escreve completa 42 voltas em torno do sol.

Se você já conhece O Guia dos Mochileiros da Galáxia, irá entender por que falar desse livro agora, os motivos quase cabalísticos em torno da minha nova idade.

Agora, para salvar aqueles que ainda não entraram em contato com essa fantástica obra de Douglas Adams, digo que 42 é a resposta para as maior pergunta da vida, do universo e de tudo. Quer saber mais? Vai ter que ler o livro.

O Guia do Mochileiro das Galáxias (filme)

O Guia dos Mochileiros da Galáxia entra na categoria calhamaço porque são cinco livros (trilogia de cinco). A versão que tenho me foi presenteada por dois caríssimos amigos. (Obrigada, Dani e Kad!) E é o compilado de todos os volumes em uma edição lindíssima. O nome da encadernação completa é: O Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias: A trilogia de cinco em um único volume.

Por enquanto vamos conversar apenas sobre o primeiro volume.

Arthur Dent acorda em sua casa em um dia comum e dá de cara com máquinas tentando derrubar sua casa para fazer um desvio de uma via. Enquanto ele tenta impedir a demolição, seu amigo Ford Prefect o convoca para tomar cerveja em um pub. A conversa entre eles é louca. Arthur está deitado na lama em frente a sua casa para impedir as máquinas. Ele não só não quer sair como, racionalmente, não pode sair. Ford então convence o encarregado da demolição a substituir Arthur. Isso mesmo: o chefe da demolição deitou-se na lama para impedir as próprias máquinas de realizar o trabalho.

Arranjo feito, Ford e Arthur no pub, Arthur diz algo como “preciso impedir a demolição” e Ford replica que não tem importância nenhuma porque a Terra vai acabar em dez minutos.

E é isso: o mundo acaba.

Graças aos chopes e ao know how de Ford Prefect na arte de pegar carona em naves intergalácticas os dois se salvam.

Pareceu muito doido para você? Isso não é nada perto do que virá.

Ford Prefect na verdade é um extra terrestre que veio morar na Terra por um tempo para atualizar o verbete “Terra” da publicação “Guia do Mochileiro das Galáxias”. Ele próprio é um mochileiro. Esse tal Guia não é um livro de papel e Ford explica que seria impossível carregar essa publicação se ela fosse composta de páginas. O dispositivo que abriga o Guia foi como uma previsão do que viria a ser o Kindle e os demais leitores eletrônicos, coisas que ainda não existiam em 1979, ano da publicação desse livro.

Ford e Arthur vão se juntar a outros três personagens que são: Zaphod Beeblebrox (atual presidente da galáxia), Thrillian (humana que está acompanhando Zaphod há anos) e Marvin (o robô deprimido).

O humor inglês é famoso e peculiar, embora não agrade a todos. O que estamos chamando de humor inglês pode ser exemplificado pelo grupo de comediantes Monty Python ou por Mr. Bean. Douglas Adams chegou a ser roteirista do Monty Python. Eis uma amostra da surrealidade daquele grupo nessa sketch sobre a piada mais engraçada do mundo.

A coisa é tão doida que é possível achar intertextualidade entre O Guia do Mochileiro das Galáxias com filmes de humor nonsense como a comédia estadunidense Top Secret; a obra de sociologia política A Elite do Atraso, de Jessé de Souza; o ET Bilu (meme 100% nacional); o robô Bender de Futurama e a nave do Xou da Xuxa. Voltaremos a algumas dessas referências daqui a pouco.

Alguns dos itens citados acima, muito provavelmente, não tiveram inspiração nenhuma em Douglas Adams.

Mas sabe o que certamente teve sua gênese aí? Sabe o que significa Douglas Adams e O Guia do Mochileiro da Galáxia para a cultura Geek?

A toalha

O dia do orgulho Nerd é também o dia da toalha e comemora-se em 25 de maio. Essa foi a data de lançamento do primeiro filme da franquia Guerra nas Estrelas. Nosso interesse aqui não está na data, mas no adereço. Esse é um dia em que pessoas, no mundo todo, identificadas com o orgulho nerd, andam por aí com toalhas em seus ombros.

O Guia do Mochileiro das Galáxias diz que o acessório indispensável para esse tipo de viajante é a toalha. Você pode esquecer de levar tudo, menos a toalha. A toalha pode te servir de agasalho, forro para dormir por cima, para se enxugar, arma e ainda garante que se você esquecer o resto do kit de higiene pessoal alguém irá emprestar xampu e sabonete para você de bom grado, porque ele ou ela irá pensar “quem lembra de carregar uma toalha é organizado, se está sem itens de higiene provavelmente não é culpa dele”.

Outra obra que bebeu n’ O Guia do Mochileiro das Galáxias e que marcou uma transição na carreira da banda Radiohead para uma fase mais experimental e criativa, foi o disco Ok Computer. O título do disco e de uma das faixas (OK Computer) vem do trecho: “Zaphod: ‘Ok Computer, I want full manual control now.’ ‘ You got it,’ said the computer.” Na tradução que estou usando isso está na página 103:

“– Era o que eu imaginava – disse Zaphod – Está bem. Computador, quero controle manual imediatamente. 

– É todo seu – disse o computador.”

Outra correspondência no álbum Ok Computer é a faixa Paranoid Android que obviamente vem do Marvin, o Androide Paranoide. A música fala sobre pessoas ranzinzas e tem uma frase de fundo murmurada várias vezes: “I may be paranoid, but no android”.

Bender, robô de caráter duvidoso da animação Futurama, também pode ter suas origens aí. Aliás Futurama, que do mesmo criador de Os Simpsons, Matt Groening, só pode ter um pezinho em O Guia dos Mochileiros das Galáxias.

O Bender foi o que mais chamou a atenção porque se trata de um robô com personalidade marcante assim como Marvin. Enquanto o primeiro é um fanfarrão, Marvin é depressivo, pessimista e reclamão. Nenhum dos dois é apenas uma máquina que cumpre ordens.

Bernder – Futurama

E o ET Bilu? Aquele escondido numa moita, que deu inestimável conselho à humanidade: “Apenas que… que busquem conhecimento!”

ET Bilu

Suspeito que Bilu seja do mesmo tipinho de alienígena classificado por Ford Prefect como “gozadores”:

Normalmente é um filhinho de pai rico que não tem o que fazer. Fica zanzando por aí procurando planetas que ainda não fizeram nenhum contato interestelar e vai lá pirar as pessoas. (…) Vai a um lugar bem isolado, onde tem pouca gente, aí pousa ao lado de um pobre infeliz em que ninguém jamais vai acreditar e fica andando na frente dele, com umas antenas ridículas, fazendo bip-bip e outros ruídos engraçados.”

Por fim a referência séria: A Elite do Atraso. Um dos argumentos mais importantes dessa obra do sociólogo Jessé de Souza é que a corrupção da classe política é imoral e execrável, mas que toda a atenção midiática voltada a ela serve principalmente para tirar atenção dos desvios de dinheiro e ganhos astronômicos da classe dominante: banqueiros, mega empresários, corporações, multimilhonários, que sempre detiveram o controle da política e da economia e pretendem continuar a tê-lo.

Decidi colocar essa referência aqui para tocar no ponto de que a comédia, mesmo a aparentemente nonsense, costuma trazer em seu bojo reflexões sérias, filosóficas, comportamentais.

Sobre A Elite do Atraso, eu tendo a concordar com o principal dos argumentos do autor que vai construir um raciocínio sobre como a “classe A” brasileira mantém o país em desenvolvimento eterno e quais seriam seus interesses nisso.

Entretanto, devo pontuar que fiquei um tanto incomodada com duas coisas. Primeiro, por ser Jessé um acadêmico e ainda ter sido presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), achei que o livro podia ter mais dados para corroborar a tese. O outro ponto está quando ele trata de intelectuais brasileiros como Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Prado, por exemplo, ou dá tons conspiratórios à fundação da Universidade de São Paulo (USP).

A Elite do Atraso

Entendo que os autores que cunharam o mito das três raças, em que se credita aos índios, africanos e portugueses a formação da população brasileira e ainda atribui à miscigenação a responsabilidade pela mentalidade nacional e o nosso arcabouço cultural, podem e devem ser contestados e discutidos. Porém, o conhecimento histórico e sociológico, assim como qualquer área do conhecimento é construído paulatinamente. As obras desses intelectuais tem muitos aspectos importantes e relevantes assim como tantos outros que já não nos servem mais, porque o entendimento sobre a sociedade brasileira evoluiu.

É isso, Jessé é importante, Sérgio Buarque era o cara, Paulo Prado e Gilberto Freire também são importantes. Todos contribuíram para a caminhada na interpretação da brasilidade, que aliás está longe de estar entendida em sua plenitude, se é que isso é possível.

E o que tem a ver com Douglas Adams? Assim como Jessé aponta os escândalos políticos como cortina de fumaça para a corrupção bruta, que assalta o país com efeitos muito mais nocivos, Adams fala sobre a função do Presidente da Galáxia, no caso o personagem Zaphod Beeblebrox: “Talvez até não fizesse muita diferença se eles soubessem exatamente quanto poder exercia o Presidente da Galáxia: absolutamente nenhum. Apenas seis pessoas na galáxia sabiam que a função do presidente não era exercer poder, e sim desviar a atenção do poder.” (p.45).

Por hoje é só, pessoal! Voltaremos daqui a um tempo, que talvez seja breve, com os próximos livros da trilogia de cinco. Aqui nesse texto não tem um trisco dos detalhes da obra. Diria que é inestragável, um livro anti-spoiler. Fundamental!

ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. In: Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias: A trilogia de cinco em um único volume.

Tradução: COSTA, Carlos Irineu da. Rio de Janeiro: Arqueiro, 2020.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão á Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017

GROENING, Matt. Futurama. EUA: Fox, 2003-2013.