O Grande Gatsby, capa

“-Quem é ele? – perguntei – Você Sabe?

-É só um homem chamado Gatsby.

-Quer dizer, de onde ele vem? E o que ele faz?

-Quer dizer que você também aderiu ao tema? – ela respondeu, com um sorriso exausto. – Bem, ele me disse uma vez que estudou em Oxford.

Um cenário indistinto começou a tomar forma em minha mente, mas se desfez diante de seu comentário seguinte.

-Em todo caso, eu não acredito.

– Por quê?

– Não sei direito. – ela insistiu – Só acho que ele não estudou lá.

Algo em seu tom de voz me fez lembrar a frase “me disseram que ele matou um homem” da outra garota, e teve o efeito de aguçar minha curiosidade.

FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. p. 112.

 

Scott Fitzgerald escreveu essa relativamente curta e poderosa história na década de 1920.  As primeiras frases e as últimas dez páginas são impecáveis.

Durante essa leitura, a cidade em que vivo estava especialmente quente e seca. E foi num domingo de extremo calor que cheguei na passagem em que Nick Carraway, o narrador, relata uma tarde muito estranha que está coincidentemente inserida em um dia muito quente em que o calor prejudicava a razão dos personagens. O incômodo com a temperatura sentido aqui em casa, ajudou a transportar para o ambiente da história.

“- Quente! – Disse o condutor a alguns rostos conhecidos. – Que calor!… Quente!… Quente!… Quente!… Está quente demais para você? Está quente? Está…?

Ele me devolveu o bilhete com uma mancha escura de suor dos seus dedos. E pensar que nesse calor houvesse gente interessada em beijar lábios ardentes ou ter alguém para se aninhar no colo, encharcando a frente do pijama!” .p. 176.

O Grande Gatsby conta a história de um jovem homem chamado Jay Gatsby e sua obsessão por uma mulher chamada Daisy Buchanan que, por sua vez, é casada com Tom Buchanan, um ex-atleta famoso. O grande mérito desse clássico da literatura estadunidense é o modo como essa história, aparentemente trivial, de amor entre um pobre e uma rica é contada. É tão genial que o retrato das altas rodas sociais dos Estados Unidos na farta década de 1920, seus interesses e suas superficialidades, sobrepujam de longe a história de amor. Tudo feito por meio da construção dos personagens, de uma forma sutil e extremamente bem construída.

Os personagens são quase todos muito preocupados com suas reputações e aparências. Tom não tem mais a relevância de outrora, mas sempre fora rico e agora que não é mais um atleta em atividade, procura se sentir no centro das atenções sendo um bronco desagradável, arrumando uma amante e ostentando suas riquezas. Daisy casou-se com ele e o livro deixa a entender que o status de estrela esportiva e o dinheiro de Tom foram seus principais atrativos. Antes de se casar com Tom, ela teve um namorico com um oficial do exército de poucas posses que fora convocado para a Primeira Guerra, pausando assim o relacionamento. Esse homem desapareceu e voltou depois de alguns anos, extremamente rico, encontrando Daisy já casada.

A trama se passa em Nova York, em dois ambientes distintos. A ilha de Manhatan é onde Gatsby tem negócios e parceiros, Tom gosta de ir para se divertir e Nick, por sua vez, trabalha em Wall Street. O segundo ambiente é Long Island, mais especificamente nas penínsulas de West Egg e East Egg. Gatsby e Nick eram vizinhos de muro em West Egg, Nick numa casa modesta e Gatsby em uma gigantesca e luxuosa mansão. A casa de Gatsby era bem de frente para a de Daisy e Tom, que ficava em East Egg, separadas pela baia de Manhasset (na vida real os nomes das penínsulas não são esses, mas King’s Point e Sand’s Point).

O livro é sobre o cotidiano dessas abastadas pessoas. Entre os cinco personagens principais três – Daisy, Tom e Jordan – são ricos de berço que pouco ou nada fazem, um (Gatsby) é o sonho americano, o self-made man e Nick, que nasceu rico mas nem tanto e, portanto, precisa trabalhar.

Nas opulentas festas que Gatsby oferece em sua casa, a alta sociedade novaiorquina comparece em peso, mesmo que não tenham sido apresentados ao anfitrião. Nick, uma certa vez, é convidado pelo vizinho ainda desconhecido a ir a uma de suas festas e é aí, ouvindo os comentários dos convidados, que ele percebe o interesse das pessoas pelo mistério sobre a origem da fortuna e do próprio Gatsby.

Sua casa vivia lotada de pessoas em festas luxuosas, comida cara e bebidas alcoólicas abundantes em plena Lei Seca nos Estados Unidos. Alguns atribuem sua riqueza aos méritos dele como ex-aluno de Oxford, outros ao recebimento de uma herança, e muitos a atividades ilícitas. O próprio Gatsby conta sua história em pílulas, às vezes alterando pontos, de forma que só no final entendemos de onde saiu o sujeito. Genial!

Nesse ponto outros personagens de origem misteriosa podem ser evocados para demonstrar o uso desse recurso enevoado que aguça a curiosidade do leitor/expectador. Vamos a três exemplos: o velho com a pá de recolher neve de Esqueceram de Mim, Sr. Marley; o Coringa em Batman: O cavaleiro das Trevas, interpretado por Heath Ledger, e Chandler Bing, em Friends.

Pôster de Esqueceram de Mim.

Em 1990, o filme infanto-juvenil Esqueceram de Mim foi uma das maiores bilheterias do cinema. Alçando, o então menino, Macaulay Culkin ao estrelato. O filme é sobre uma família que está saindo dos Estados Unidos para passar o natal em Paris e no meio da confusão de primos, tios, irmãos, malas e horários acaba esquecendo o menino Kevin McAlister em casa.  Antes disso acontecer, Kevin em uma conversa com seu irmão mais velho e um primo veem um senhor de idade com uma pá recolhendo neve do lado de fora de sua casa. Esse senhor é vizinho dos McAlister e, apesar disso, eles nunca conversaram. O irmão de Kevin, Buzz, pode ser considerado um adolescente valentão, desses que fazem bulling com os mais novos, e ele conta ao irmão e ao primo que o velho vive sozinho porque teria cometido assassinato e que ele anda com aquela pá para matar pessoas  e esconder os corpos, deixando Kevin apavorado. No decorrer do filme, Kevin, já sozinho em casa, vai passar por várias situações com esse senhor, de nome Marley, até descobrir que ele não era nada daquilo que Buzz disse.

 

A outra referência já é bem mais sombria e o mistério sobre sobre sua origem é agravado pelo próprio personagem que tem mais de uma versão sobre porque teria ele aquela cicatriz enorme na boca. Essas explicações sempre incluem a “Why so serious?”, Por que tão sério?, em tradução livre. Trata-se do antológico Coringa interpretado por Heath Ledger, em Batman: O Cavaleiro das Trevas, que rendeu a ele o Oscar póstumo de melhor ator coadjuvante. O filme recebeu outros 27 prêmios entre eles outro Oscar, o de melhor edição de som. O Coringa, nesse filme tem uma maquiagem medonha de palhaço, com uma boca vermelha enorme pintada num formato de sorriso sobre uma cicatriz de boca rasgada. Pelo que o próprio coringa diz o autor do ferimento em seu rosto pode ter sido ele próprio ou o pai que abusava de bebidas alcoólicas. Esse é considerado por muitos o melhor filme do Batman de todos os tempos.

Chandler Bing, é o personagem de Matthew Perry na série Friends. Ninguém inventou histórias sobre ele, nem ele mesmo. O problema é que apesar de ser muito próximo dos amigos e não fazer segredo sobre seu trabalho, nenhum deles consegue entender o que ele faz. Sendo assim, a profissão de Chandler é um grande mistério da série.

Um personagem que passa quase desapercebido durante quase todo o livro é o dono do posto de gasolina, Senhor Wilson. Não vou entrar em detalhes para não estragar a experiência, apenas farei a comparação com um dos personagens do musical Chicago, que inclusive é ambientado na mesma época de O Grande Gatsby: o Mr. Cellophane.

Pôster de Chicago

Chicago é sobre duas mulheres, que cometeram assassinato, cada uma matou seu respectivo amante. Elas não se conheciam. Em comum entre elas duas coisas: o sonho de ser a maior estrela do Jazz e o advogado de defesa. A primeira, Velma Kelly, já é a maior estrela do Jazz. Velma teve uma  queda em sua  popularidade, que, curiosamente, subiu depois que ela se tornou uma assassina. Roxie Hart, é uma mulher comum, porém talentosa, que quer a todo custo ser a nova estrela dos musicais. Ela é casada com   Amos Hart e assassina seu produtor e amante que a estava enganando sobre conseguir um espaço no show Bizz para ela. Uma vez presa e ainda obstinada em ser uma estrela do Jazz, Roxie faz muitos truques para chamar a atenção da imprensa, travando a partir daí uma guerra contra Velma Kelly.

O interesse aqui é Amos Hart. Ele fica fiel a Roxie mesmo depois de sua prisão. E ela, assim como o advogado, usam da ingenuidade, amor e boa vontade de Amos para auxiliar nos argumentos no caso de que Roxie é acusada. Quando ele se dá conta de que está apenas sendo usado, ele canta a música Mr. Cellophane, cuja letra fala de uma pessoa invisível, transparente como celofane, por quem as pessoas passam como se ele não estivesse ali. Wilson marido de, Myrtle Wilson, tem para O Grande Gastby, importância semelhante à de Amos Hart para Chicago.

Chicago pode ser visto montado como musical em teatros, aliás é um grande sucesso da Broadway, e também no filme Chicago, de 2002.

Pôster de O Grande Gatsby.

A única adaptação para o cinema que assisti de O Grande Gatsby foi a de 2013, protagonizada por Leonardo Di Caprio, Carey Muligan e Tobey Maguire. O diretor e produtor Baz Luhrmann é conhecido por dar uma repaginada em temas de época e incluir músicas modernas com arranjos novos. Por exemplo, são dele o musical Moulin Rouge (2001) e o filme Romeu + Julieta (1996).

Para efeitos de dramatização, esse filme fez algumas alterações na história escrita por Fitzgerald, entretanto, a essência está lá. Além do mais vale a pena pela estética lindíssima e pela trilha sonora que ficou ótima. Talvez não seja ainda a versão cinematográfica definitiva de O Grande Gasby, que deve ser bem difícil de fazer dada a sutileza e a complexa composição dos personagens do livro.

Essa produção venceu os Oscars de Figurino e Design de Produção e o People`s Choice Awards de ator de filme dramático, que foi concedido a Leonardo Di Caprio.

 

 

FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. Tradução: TANNER, Tony. São Paulo: Penguin Companhia, 2011.

HUGHES, John. Esqueceram de Mim. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1990.

NOLAN, Christopher. Batman: O Cavaleiro das Trevas. EUA e Reino Unido: Warner Bros., 2008.

MARSHALL, Rob. Chicago. Estados Unidos: Miramax, 2002.

KAUFMAN, Martha & CRANE, David. Friends. EUA: Warner Bros, 1994-2004.

LUHRMANN, Baz. O Grande Gastby. EUA & Austrália: Warner Bros., 2013.