Capa do livro O conto da Aia.

“O resto das mulheres esta sentada de pernas cruzadas no tapete, há uma porção delas, todo mundo deste distrito deve estar aqui. Devem haver vinte e cinco, trinta, nem todo Comandante tem uma Aia: algumas das Esposas têm filhos. Que cada uma dê, diz o slogan, de acordo com sua capacidade; para cada um de acordo com suas necessidades. Recitávamos isso, três vezes, depois da sobremesa. Era da Bíblia, ou pelo menos diziam que era. Sao Paulo de novo, em Atos.

Vocês são de uma geração de transição, disse tia Lydia. É muito mais difícil para vocês. Sabemos os sacrifícios que são esperados de vocês. É duro quando homens as insultam. Para as que vierem depois de vocês, será mais fácil. Elas aceitarão seus deveres de boa vontade como acordo de seus corações.

Ela não disse: Porque elas não terão lembranças de nenhuma outra maneira.

Ela disse: Porque não quererão coisas que não podem ter.”

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. pg.125.

Distopia é dos meus gêneros literários favoritos, embora seja um tanto assustador pensar que a inspiração para muitas daquelas sociedades medonhas vieram da extrapolação de processos em curso na nossa sociedade, levados ao extremo pela imaginação de seus autores. O que pode também ser chamado de ficção especulativa, posto que boa parte das distopias se originam de observações da realidade acompanhada da pergunta “e se tivesse acontecido de outra forma?”

Margareth Atwood, autora de O Conto da Aia, que sempre dá entrevistas deliciosas para o público que gosta de literatura, disse em repetidas ocasiões que O Conto da Aia e Os Testamentos são inspirados em fatos reais. Segundo a autora, sua mente não teria a maldade suficiente para criar o horror de Gilead. Todo o sofrimento e despotismo narrado naquela nação distópica ocorreu na vida real em algum país do globo terrestre em algum momento da História ou consta de alguma escritura considerada sagrada.

O Conto da Aia é narrado em primeira pessoa na forma de depoimento gravado por uma mulher que teria sido aia em Gilead e lá respondia pelo nome de Offred.

Offred uma designação de propriedade, o nome verdadeiro, pré-Gilead, da personagem nem é mencionado no livro. As aias são assim nomeadas: o prefixo “Of” que em inglês quer dizer “De” seguido do nome do comandante da casa. No caso da nossa heroína, era o Comandante Fred.

Mapa de Gilead

Esse depoimento foi registrado em gravações de fita K7 que foram descobertas por historiadores especialistas no tema muito tempo após o final de Gilead.

A trama de O Conto da Aia se passa nesse país distópico que corresponderia a quase todo o território dos Estados Unidos, que estaria dominado por uma ditadura teocrática.

As mulheres do planeta Terra passavam por uma crise de fertilidade, poucas delas eram capazes de gerar filhos e, ao que o livro deixa entrever, os homens também, mas hipocritamente preferem nem cogitar essa possibilidade, visto ser mais simples colocar a carga do insucesso nas costas das mulheres.

Naquele país de sociedade claramente estratificada, as castas são marcadas pelas cores de suas vestimentas. O exército (Guardiões), os espiões do regime (Olhos) e os comandantes (chefes de família e do Estado, numa espécie de comando colegiado) se vestem de preto. As mulheres casadas com o os comandantes se vestem de azul, as famílias que não têm membros importantes são chamadas econo-familias, essas pessoas se vestem de listrado.

E há três categorias, que são as mais características da sociedade de Gilead e que são parte fundamental da trama: as Marthas, servas e se vestem de verde escuro; as tias, se vestem de marrom, e as Aias que se vestem de vermelho, com um chapéu branco de abas muito largas que envolvem a cabeça e dificulta que elas olhem para os lados.

As Marthas são as mulheres encarregadas do trabalho doméstico e cuidados com as crianças. As tias são as treinadoras e guias das aias. E as aias são mulheres férteis que Gilead considerou indignas para serem esposas ou econo-esposas, porém valiosas demais para serem executadas, pois a humanidade está desesperada para garantir a perpetuação da espécie.

O regime fundamentalista concede a cada comandante que não consegue ter filhos com a própria esposa, uma aia. E essa mulher, que é privada de qualquer conforto ou liberdade, será estuprada todo mês durante seu período fértil para dar filhos ao comandante. Não entraremos em detalhes sobre como é essa “cerimônia” e nem nas outras dezenas de detalhes revoltantes do dia a dia em Gilead.

Isso relatado acima é sim espantoso e revoltante, mas não é spoiler. Acreditem, é o básico.

Descendência de Jacó

Vamos às origens da Gilead de Margaret Atwood, de onde veio essa ideia? Da Bíblia, do Antigo Testamento, mais especificamente do capítulo 31 do Gênesis. Nesse capítulo, Jacó, que era casado com Raquel e Lia se muda para uma terra que se chama Gilead, onde Jacó terá muitos filhos. Inicialmente, Raquel era estéril, então Jacó começou sua prole com a esposa Lia (que era irmã de Raquel. E isso é outra história sensacional, mas não será pormenorizada aqui). Raquel era a mulher preferida de Jacó e por isso, como compensação por ser a menos amada, Deus concedeu a fertilidade apenas a Lia. Raquel, para não ficar em dívida com Jacó, ofereceu a ele sua aia, sua serva, para que dormisse com ele e gerasse filhos, esse bebê nasceria no colo de Raquel e seria então filho dela com Jacó. O plano saiu como esperado e Deus, compadecido do “sacrifício” de Raquel, concedeu a ela a fertilidade e ela também gerou filhos para Jacó. Aí Lia, vendo aquilo tudo, resolve também oferecer sua aia ao marido, que também gera filhos dele e Deus fica muito satisfeito.

Dessa árvore genealógica complexa é que se originam as famosas doze tribos de Jacó ou de Israel, como foi chamado Jacó posteriormente.

Os comandantes de O Conto da Aia se autodenominam “Os filhos de Jacó” e o centro onde são treinadas as aias se chama “Lia e Raquel”.

O que é preciso para que um governo autoritário se estabeleça? Convencimento e controle. Convencimento de boa parte da população, sobretudo a parcela com poderio bélico, e controle das mentes de toda a população, principalmente a parcela que não está bem convencida daquela solução imposta. Essa é a fórmula dos regimes totalitários independente do espectro político em que se enquadram. E assim foi com a Gilead de Margaret Atwood.

Os olhos, espiões do regime, talvez o único medo dos comandantes, estavam por toda parte, infiltrados, a única coisa que se sabe deles é que são homens. Não há certeza sobre quem e onde estão.

Olhos são o órgão responsável pela visão em seres vivos, sem eles não saberíamos com precisão o que nos rodeia. São também símbolo da percepção intelectual, da onipresença e até de poderes psíquicos, quando por exemplo se atribui má sorte a mal olhado, como se o olhar de inveja ou cobiça fosse capaz de estragar algo belo ou benéfico.

Em inúmeras religiões, talvez todas, os olhos têm importância simbólica bem marcada. Aqui não falaremos de todas, até porque seria impossível. Nesse campo religioso vamos nos ater ao terceiro olho de Shiva (ou Xiva), deus hindu. Ele faz parte da tríade Brahma, Vishnu e Shiva, que são a expansão do Deus Krishna, Essas divindades da trindade hindu são respectivamente responsáveis pela criação, manutenção e destruição do que existe.

Na mitologia hindu, Shiva praticava yoga na intenção de ultrapassar a completude e se tornar sem limites quando Kama, deus da luxúria, se esconde atrás de uma árvore e lança uma flecha em Shiva. Nesse momento, Shiva abre o terceiro olho e incinera Kama transformando-o em cinzas.

O terceiro olho, olho do fogo, se refere a uma espécie de sexto sentido, a uma percepção sobrenatural, que não é física. Os olhos físicos seriam voltados para fora ao passo que o terceiro olho se volta para dentro, para o interior de quem se conecta com ele. Shiva não poderia ter visto Kama com os olhos que já estavam abertos, pois Kama estava escondido atrás da arvore.

O terceiro olho é capaz de enxergar as coisas além das aparências, ele não é influenciado pelas memórias, proporciona um nível transcendental de discernimento e percepção e não pode ser enganado.

Assim como a mitologia está cheia de olhos em seu cardápio simbólico, muitas obras de ficção se valeram desse símbolo, inspirados direta ou indiretamente pelos mitos, e incorporaram o olho em suas tramas.

Capa do livro 1984

A comparação mais óbvia talvez seja o olho de 1984, obra de George Orwell, que já foi comentada nesse site. O Grande Irmão, comandante supremo daquele universo distópico, vigia seus governados por meio das teletelas e dos olhos dos demais habitantes que podem delatar caso percebam em seus vizinhos, familiares e colegas comportamento divergente do que o Estado espera. Em 1984, os olhos estão por toda parte, sejam eles humanos ou câmeras de vigilância. Logo na primeira página da história o personagem principal se sente observado por um cartaz enorme. Existem cópias desse cartaz em cada andar de prédio de Winston, e eles foram desenhados com aquele recurso que dá a impressão que os olhos da pessoa retratada seguem as que passam em sua frente, além disso, eles também tinham a frase: O Grande Irmão Está de Olho em Você (no original: The Big Brother is Watching you.).

Tanto O conto da Aia quanto 1984 se passam em mundos distópicos em que governos totalitários tentam ter controle absoluto sobre os corpos e mentes da população. Cada um com seus métodos e ambos tendo os olhos como símbolo da vigilância ininterrupta.

Para fugir desse gênero literário, gostaria de introduzir um exemplo de uso do olho que tudo vigia na literatura infanto-juvenil.

Capa do livro Desventuras em Série: Mau Começo

A obra de Lemony Snicket, Desventuras em Série, é  composta por treze livros que narram a saga dos órfãos Baudelaire para se livrar do parente que fora nomeado como seu tutor após a morte trágica de seus pais: o Conde Olaf.

A a irmã mais velha, Violet, tem o dom de construir coisas. O irmão, Klaus, tem o dom de saber encontrar nos livros a resposta para tudo, pois é muito estudioso. A bebezinha, Sunny, tem dentes muito fortes, podendo roer cordas ou se pendurar pelos dentes.

O conde era um parente distante, nomeado tutor pelo preguiçoso administrador do testamento dos pais das crianças, que escolheu o parente mais próximo para cuidar delas. A esperança de do tal Olaf, era por as mãos na fortuna dos Baudelaire, entretanto, o testamento exigia que o dinheiro só fosse ser gasto quando Violet fizesse dezoito anos.

Basicamente as tramas dos livros são as tentativas do conde, que tenta os mais loucos subterfúgios para conseguir gastar a fortuna dos Baudelaire consigo mesmo. Ele é um ator e será ajudado por sua trupe, composta de pessoas tão desprezíveis quanto ele. Por sorte, os Baudelaire contarão com suas habilidades extraordinárias e pessoas boas (e excêntricas) que cruzarão seus caminhos.

Pôster da série Desventuras em Série

E o olho? Bem… O conde Olaf tinha uma obsessão por olhos. No primeiro livro da série que se chama “Mau começo” as crianças, vão morar na casa do Conde e descobrem que ele tem uma tatuagem de olho no tornozelo e que sua casa é repleta de olhos desenhados nas paredes ou quadros de olhos ou esculturas de olhos em todos os cômodos. O excesso de olhos incomoda principalmente a Violet que se sente vigiada por eles.

Essa história de fantasia, se passa em um mundo de personagens e situações pouco convencionais e o Conde Olaf embora não tenha poderes mágicos ou sobrenaturais sempre dá um jeito de descobrir onde estão as crianças, não importa onde elas se escondem.

Adoro o parágrafo de abertura desse livro que é o seguinte: “Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. E isso porque momentos felizes não são o que mais encontramos na vida dos três jovens Baudelaire cuja história está aqui contada. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes, encantadoras e desembaraçadas, com feições bonitas, mas com uma falta de sorte fora do comum, que atraía toda espécie de infortúnio, sofrimento e desespero. Lamento ter que dizer isso a vocês, mas o enredo é assim, fazer o que?”

Pôster do filme Desventuras em série.

Apesar de ser verdade que a história deles é uma verdadeira coleção de desventuras em série, os livros são escritos num tom de ironia que o torna leve e até engraçado.

Desventuras em Série foi transformado em filme no ano de 2004, com Jim Carey interpretando o Conde Olaf. E depois em série pela Netflix, com três temporadas, iniciadas em 2017. Ambos bem feitos e bastante divertidos e de estética interessantíssima.

O conto da Aia é um dos melhores livros que já li e tem muitos, mas muitos aspectos a serem explorados. Infelizmente, vários deles com correspondência na realidade atual. Como disse a própria  Margaret Atwood em algumas de suas entrevistas: “a distopia de uns é a utopia de outros”. Isso deve explicar por que as ficções especulativas fazem tanto sucesso, alguns leem para imaginar a desgraça que pode suceder uma má ideia e outros porque entendem que aquela mesma ideia é, em suas concepções, um rumo benéfico para a sociedade trilhar.

Gilead voltará a ser discutido em breve, quando conversaremos sobre Os Testamentos, obra cuja história se passa quinze anos depois do depoimento de Offred, e então comentaremos a série que leva o mesmo nome do livro O conto da Aia e que tem também elementos de Os Testamentos.

 

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Tradução: DEIRÓ, Ana. São Paulo: Rocco, 2017.

ORWELL, George. 1984. Tradução: JAHN, Heloísa & HUBNER, Alexandre. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SNICKET, Lemony. Desventuras em Série: Mau começo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SILBERLING, Brad. Desventuras em Série. EUA: Paramount, 2004.

SONNENFELD, Barry. Desventuras em Série. EUA: Netflix, 2017-2019.